Fernando Pessoa, em sua enigmática literatura, operou um trabalho de reinvenção do parlar materno só comparável ao realizado por Mallarmé com a langue d’oeil em poemas como Hérodiade e L’aprés-midi d’un faune. Para efetuar essa aventura prometeica, que une a lírica trovadoresca e a herança quinhentista às notas dissonantes de Orpheu, Pessoa adotou o emblema dos antigos navegadores portugueses: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Renunciou ao gozo da vida “fútil, quotidiana, tributável” para executar uma ars poética rigorosa, matemática, e imbuída do “misticismo da raça”, a loucura messiânica, sebastianista. Ele é, sem dúvida, o nome mais importante da poesia portuguesa depois de Camões; e talvez supere Camões. Isso não significa pouca coisa. Portugal é uma terra de poetas; basta pensarmos em Camilo Pessanha, Cesário Verde, Sá-Carneiro, sem irmos muito para trás, em busca dos cancioneiros de Martim Codax e Afonso X, o Sábio. Portugal é sementeira de uma vasta lírica que se expressa justamente na melopéia (o português luso, ao contrário do brasílico, é melódico, soa “cantado”, como o francês). E nessa língua complexa e intimista, cisterna de pastores, verde mar de caravelas, Pessoa fez sua operação de linguagem, subvertendo verbos e pronomes em construções insólitas, alçando vôos metonímicos entre arquipélagos de elipses e rochedos de hipérbatos, numa sintaxe laminar. Ele é o autor de uma gramática onírica, “imenso e possível oceano” idiomático, que soa como uma cantata barroca. Não vamos nos ocupar aqui do teatro de heterônimos desse poeta singular que se fez vários, nem do ficcionista, do tradutor de Poe ou do dramaturgo experimental; o que nos interessa, neste ensaio, é o poeta épico moderno, que desejou criar os Lusíadas da Hora Morta no único livro que publicou em vida.
Mensagem é um poema longo formado por 43 peças breves, escritas entre 1913 e 1934; é uma espécie de antologia visionária, catálogo de epifanias. Recorda, também, o conceito de the long poem, de Edgar Allan Poe. Sua estrutura narrativa é dividida em três partes: Brasão, Mar português e O encoberto. O assunto do livro é a história mítica de Portugal; o poeta entoa um canto de louvor à navegação, ao ideal cristão-monárquico e à língua portuguesa, em plena Idade Industrial. Diferentemente de Cassiano Ricardo (Martim Cererê), Pessoa não fez um anacrônico libelo edulcorado, mas sim uma abordagem mitológica do passado imperial, transformando os personagens históricos em símbolos, arquétipos da condição humana, do Ápice à Queda e à inelutável solidão (onde há, porém, a promessa de um retorno circular ao ponto de partida). O drama ritualístico encenado em Mensagem não é exclusivamente português, mas universal. O livro pode ser visto, hoje, como uma epopéia da linguagem, em que o herói é o idioma metamorfoseado em poesia. Surpreende, nessa obra extemporânea, a síntese verbal, a objetividade dos substantivos, tratados como palavras-coisas (“a árvore, a praia, a flor”), a precisão logopaica dos verbos compostos (o “desejar querer poder”) e a quase ausência de adjetivos. Nessa obra, para citarmos novamente Poe, Fernando Pessoa alcançou a “construção precisa do impreciso”, numa dialética em que o concreto se torna abstrato e o abstrato, concreto (“a bênção como espada, a espada como bênção”). Mensagem é um autêntico tratado da arte do verso, algo como o que o Cravo bem-temperado é para os pianistas. O poeta utiliza quase todos os tipos de metro — o alexandrino, o decassílabo, a oitava, a redondilha, entre outros — e por vezes intercala dois ou três metros no mesmo poema. O ritmo é ora binário, ora ternário, e as rimas são distribuídas em diferentes seqüências: emparelhadas (A-A-B-B), intercaladas (A-B-A-B) e outras, mais complexas. A mesma variedade encontra-se nas divisões estróficas, que vão do terceto à nona.
Mensagem é um balé em polirritmia, rapsódia de danças, em que Pessoa experimentou as possibilidades coreográficas da poesia tradicional. Sua linguagem arcaizante, barroquista, lembra os croquis verbais de Oswald de Andrade em Pau-brasil (“Vem tam puros e coados”); mas, ao contrário da bufoneria dessacralizante do “antropófago de cadillac”, Pessoa arcaíza o discurso como antífona, ou canto dialogado. Ele responde, pela paródia, à escritura quinhentista, para revivê-la de modo cênico, teatral. Não faz a caricatura do passado — “futuro do presente” — mas o recupera como símbolo de um ideal ético e espiritual mais elevado. O tom épico concentra-se na força prosódica dos versos, que empregam recursos como a antítese (“O mytho é o nada que é tudo”) e a anáfora (“Louco, sim, louco”). Suas raras faianças léxicas, imbricadas de conceptismo (“O corpo morto de Deus, vivo e desnudo”) avizinham-se de Góngora. Aqui estão, simplesmente, alguns dos mais belos versos da língua portuguesa, de qualquer época.
Brasão é o primeiro ato desse drama simbólico, e tem como epígrafe a sentença latina Bellum sine bello. Seus 18 poemas estão divididos em cinco seções, que funcionam como cenas teatrais: Os campos, Os castelos, As quinas, A coroa e O timbre. Os temas-chave expostos aqui são a formação do Império, a saga do herói, o destino e a graça divina. Numa seqüência de flashes arquetípicos, o poeta utiliza máscaras dramáticas, ou personae, para falar na primeira pessoa, à maneira de Ezra Pound nos Cantos. Citaremos, como exemplo, o poema D. Fernando, Infante de Portugal:
DEU-ME DEUS o seu gladio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me em honra e em desgraça
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
(…)
E eu vou, e a luz do gladio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
Quando Pessoa não usa a máscara dramática para reviver os titãs da Outra Margem, faz pequenas hommages, breves como inscrições tumulares, num estilo imagético que concilia a técnica dos cromos futuristas de Blaise Cendrars a uma escritura extemporânea:
V. O Timbre
A Cabeça do Grypho / O Infante D. Henrique
EM SEU THRONO entre o brilho das espheras
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
O único imperador que tem deveras
O globo mundo em sua mão.
Como Circe, na Odisséia, que convoca os heróis mortos a saírem do Hades para dar testemunho de suas penas a Ulisses, Pessoa, em sua necromancia poética, traz à tona os templários do Império — D. Dinis, D. Henrique, D. Fernando, entre outros — para um confronto com a mediocridade de nossa época. Ou, como diz no poema D. Sebastião, Rei de Portugal:
LOUCO, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Porisso, onde o areal está
Ficou o meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Dom Sebastião é o herói secreto deste livro. Usando a máscara do soberano enlouquecido, Pessoa abala nossa comodidade, nossa vida tacanha, laborial e fútil, mostrando o exemplo do herói trágico, aquele esquecido-de-si que se imola por algo maior do que ele, transcendendo o mero existir; ele adentra o oceano, o areal, e perde a vida efêmera pela eternidade. O mesmo tema aparece na terceira parte do livro, O encoberto, no poema inicial:
I. Os Symbolos
Primeiro / D. Sebastião
SPERAE! Cahi no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervallo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É o que eu me sonhei que eterno dura
É Esse que regressarei.
Na concepção trágica do poeta, o herói cumpre, contra o Destino, o seu dever, e o momento mais sublime da jornada coincide com o do aniquilamento: “Os deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória com desgraça”. A ação heróica, ao projetar o guerreiro para fora de si, destrói o seu ego, liberando a essência imortal para o Nirvana.
Mar Portuguez, o segundo ato do drama, tem por epígrafe a sentença possessio maris e é composto de 12 poemas numerados, sem divisões internas. Esta é a glorificação do oceano, da navegação, das descobertas; é a epopéia dos argonautas lusitanos — Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, Bartolomeu Dias. O mar é o símbolo da aventura, do esforço titânico contra o Destino; mas é também o “mar interior”, “mar que não tem tempo ou espaço”, metáfora aquosa do Santo Graal. Aqui, novamente, o poeta usa máscaras, como neste poema:
III. Padrão
O ESFORÇO é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Esse padrão ao pé do areal moreno
E para deante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita;
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês
Que o mar com fim será grego ou romano;
O mar sem fim é portuguez.
E a cruz ao alto diz que o que me ha na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
O uso da persona, assim como ocorre com os heterônimos, opera uma despersonalização do poeta, que deixa de ser ele mesmo para se tornar mito e linguagem. Em poemas como Os Colombos (“Outros haverão de ter/ o que houvemos de perder”), Pessoa amplia o eu lírico num sujeito coletivo oculto, o povo português; em outros poemas, transforma em personagens de prosopopéia o Mar, a Vontade e o Destino. De rara beleza é este poema, dedicado ao Mar:
II. Horizonte
(excerto)
Ó MAR anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mysterio,
Abria em flor o Longe, e o Sul siderio
Splendia sobre as naus da iniciação.
No poema X, que dá título à série, a “grandeza épica de um povo em formação” (Caetano Veloso) se confunde com o próprio oceano, em um mesmo destino:
X. Mar Portuguez
Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu.
O final do segundo ato não é melancólico; o poeta lamenta o fim da Idade Áurea, mas, na Prece, faz menos o epitáfio do passado que o presságio do futuro: “E outra vez conquistemos a Distancia — Do mar ou outra, mas que seja nossa”.
O Encoberto, terceiro e último ato do drama, tem por epígrafe Pax in Excelsis e é dividido em três seções: Os symbolos, Os avisos e Os tempos, reunindo 18 poemas. Este é o canto do regresso de D. Sebastião, cumprindo a saga circular, e a celebração do Quinto Império espiritual (Vieira), que viria a suceder os anteriores — “Grécia, Roma, Cristandade, Europa…”. É o hino da utopia, da redenção, do eterno retorno, que tem sua expressão mais bela em As ilhas afortunadas:
QUE VOZ VEM no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos falla,
Mas que, se escutarmos, calla,
Por ter havido escutar.
E só se, meio adormecido,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ella nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter logar
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos dispertando,
Calla a voz, e ha só o mar.
Essa utopia visionária trazia oculta em seu interior uma vertente política. Mensagem, diga-se, é dedicada ao “presidente-rei” Sidônio Pais, governante autocrático de Portugal por um curto período, que foi o João Batista da ditadura de Salazar. As teses políticas que levaram Pessoa — como Ezra Pound — a ver no moderno Estado totalitário a restauração da cultura clássica européia envelheceram muito, assim como suas confusas idéias místicas, baseadas em doutrinas teosóficas e rosacrucianas. Porém, não é a leitura ideológico-circunstancial que nos interessa aqui, nem é a única ou principal abordagem da obra. Mas, num plano mais atual, o poeta tem muito a nos dizer. Pessoa questiona a situação existencial do homem moderno, sua orfandade metafísica, seus fáceis e falsos paradigmas vivenciais, ditados pela sociedade de consumo, põe em xeque a própria cultura da modernidade, do homo faber. Mensagem é uma das mais densas e complexas obras literárias de nosso idioma, e sua beleza trágica, instigante, desafiadora, nos inquieta, deslumbra e ilumina.
A Companhia das Letras está relançando toda a obra de Fernando Pessoa e de seus heterônimos. O último lançamento é Poesia, de Álvaro de Campos.