Panelas políticas

Antonio Prata faz crítica e autocrítica em "Por quem as panelas batem", mas exagera no uso do traumático 7 x 1 da Alemanha sobre o Brasil
Antonio Prata, autor de “Por quem as panelas batem”. Foto: Renato Parada
01/09/2023

Seleção das crônicas políticas de Antonio Prata publicadas na Folha de S. Paulo entre junho de 2013 e dezembro de 2021 — período de crescente polarização no Brasil, que cobre Lava (e Vaza) Jato, impeachment e bolsonarismo —, Por quem as panelas batem (o título é uma paródia velada de Por quem os sinos dobram, romance de Ernest Hemingway, publicado em 1940) recorda os panelaços contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Na crônica que dá título à coletânea, Prata questiona, em 2015:

Temos toda a razão de bater panelas quando a presidente aparece na TV dizendo que a culpa por nossa pindaíba é da crise internacional. Mas por que não batemos panelas quando Eduardo Cunha […] vai em rede nacional dizer que trabalha “para o povo”, “sempre atento à governabilidade do país”?

Panelas batem ou não — e aí é que está — também em A solução para a crise, de 2016, sobre o tabagismo. “O Jornal Nacional divulga grampos de Lula, batem panelas: fumo um cigarro. Policial mata criança com tiro de fuzil, não batem panelas: fumo um cigarro.” Nada é dito explicitamente, contudo, sobre os panelaços contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), registrados a partir de 2020, durante a pandemia de covid-19, quando a esquerda se apropriou desta forma de protesto até então praticado pela direita.

“Meio intelectual, meio de esquerda”
Há mais de uma década, Antonio Prata se define como “meio intelectual, meio de esquerda” (título de sua coletânea publicada pela Editora 34, em 2010). Essa posição fica evidente já na introdução de Por quem as panelas batem (não julgue o livro pela capa, cuja impressão é de uma obra de catálogo juvenil). “Estou longe de ser um especialista em política”, admite o cronista, capaz de citar, em compensação, o filósofo russo Mikhail Bakhtin, o historiador francês Paul Veyne e o escritor austríaco Stefan Zweig, entre outros pensadores.

Prata é esclarecido, crítico, moderado, conciliador. “Se aqueles que, como eu, se identificam com muitos ideais da esquerda fizermos vista grossa pros descalabros petistas, não teremos moral para acusar o Ministério Público de fazer vista grossa para os descalabros da oposição”, pondera em Crítica e autocrítica, de março de 2016, no contexto da Lava Jato e das “panelinhas” pelo impeachment de Dilma. “Ou dialogamos com os que têm formas diferentes de amarrar o Kichute ou abriremos uma avenida para a turma do empalamento [Bolsonaro]”, alerta em Menos piquete e mais Piketty, de dezembro do mesmo ano.

“A mesma burrice totalizante está nas trincheiras da esquerda e da direita. Acontece que a direita, para variar, é muito mais organizada”, ele observa em Pacote Master Burro, de setembro de 2018, às vésperas da eleição de Bolsonaro (o cronista prefere que o chamem de “esquerda-caviar” a “petista ressentido”).

Prata volta a criticar a esquerda em Passeata do MBL, de setembro de 2021, já na pandemia:

[…] a única maneira de a minoria do #ELENÃO reverter o desmantelo civilizatório e evitar um golpe é convencendo parte da maioria #ÉBOMJAIRSEACOSTUMANDO a saltar do barco autoritário. […] De 2016 pra cá, no entanto, uma parte bem barulhenta da esquerda se dedica a impedir qualquer um que foi a favor do impeachment ou votou no Bolsonaro a vir para o seu lado.

Ele testemunha, com o próprio exemplo:

No domingo vou à manifestação na Paulista contra o Bolsonaro, convocada pelo MBL […]. É juntar forças contra um inimigo comum e poderoso.

Cotidiano, política
Se a crônica — gênero que faz fronteira entre o jornalismo e a literatura — trata essencialmente das miudezas do cotidiano, a crônica política não é uma traição ou, no mínimo, uma contradição?

“O que existe para o cronista é a gaveta de meias, a lancheira do filho, o boteco da esquina”, Prata afirma em É uma crônica, companheira, de 2017. “Mas sob o peso desses dias, qualquer leveza soa leviana. Sento para escrever a crônica e me sinto fazendo um origami no ringue do UFC.”

O sumário de Por quem as panelas batem, com a organização cronológica dos textos, indica que Prata passou a dedicar-se com mais afinco à política — tornou-se engajado ou militante, por assim dizer — a partir de 2016 (com a Lava Jato e o impeachment) e sobretudo em 2018 (com a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro). Para comparação: são três crônicas em 2013, três em 2014, sete em 2015 e 13 em 2016; nove em 2017, 17 em 2018, 15 em 2019, 13 em 2020 e 15 em 2021.

“Bolsonaro é um buraco negro”, ele anota em As crônicas não escritas, de 2020. “Este espaço aqui, outrora dedicado à crônica, é mais uma vítima do ralo cósmico.” Um exemplo:

Em junho, nos meus dez anos de casado, não escrevi a crônica sobre a noite de 2007 em que me apaixonei pela mãe destas crianças [seus filhos], no mezanino do Bar Balcão.

“Eu combaterei o fascismo botando almofadas de pum nos tronos dos imbecis”, diz em Menos inferno, mais piano, de 2021. Quer dizer, suas armas são o insight, a ironia, a piada e a sátira — que “matam” de rir.

Ou o silêncio. Em Minha opinião: não tenho opinião, de 2018, o cronista se cala, como estratégia retórica e filosofia de vida que lhe asseguram alguma paz: “[…] contra os sabres argumentativos, as baionetas do sofismo e o napalm da execração pública, ofereceremos nosso zen-mutismo.”

Educação, paternidade
Em A educação pela treva, de 2019 (o título é uma paródia velada de A educação pela pedra, livro de poesias de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1966), Prata trata da “dissonância entre a realidade brasileira” e o que seu filho “aprende em casa e na escola”. É uma crônica testemunhal, pedagógica, desiludida e autoirônica, que evidencia como o cotidiano é atravessado profundamente pela política.

Eu queria muito ter que responder a perguntas simples do tipo “Como os bebês são feitos?”, mas no Brasil o tabu é mais embaixo. “Por que ela dorme na rua?” “Por que ela é pobre?” “Por que ela não tem trabalho?” “Por que ela não foi pra escola?” “Por que a mãe dela também não foi pra escola?” “Por que as pessoas pobres são sempre marrons?” O que balbucio à guisa de resposta tem a eficácia de um saquinho Floc Gel sobre a lama da Vale: “Elas não são marrons, elas são negras”.

7 x 1
Fã de futebol, Prata pisa na bola com o 7 x 1 sofrido pelo Brasil para a Alemanha na Copa do Mundo de 2014, em território nacional. Até Bem rápido e bem devagar, de janeiro de 2018, são 11 usos do placar com fins humorísticos ou retóricos, distribuídos em sete crônicas, o que revela certa fixação ou obsessão com o marcador. “Se eu tivesse nascido na Somália ou na Maré talvez não estivesse surpreso, para a maioria esmagadora da população mundial a vida sempre foi um 7 x 1 constante”, ele anota em Janela, de 2017.

Após a Copa do Mundo de 2018, o recurso é empregado ainda em duas ocasiões: “O placar atual é 7 x 1 para a direita”, diz em The problematizando show, de 2019; e “não foi por falta de aviso que o corona penetrou na humanidade como a Alemanha na defesa brasileira do 7 x 1”, em Preocupados com os próprios narizes, de 2020.

Está combinado que o acontecimento foi mais ou menos traumático para toda a população brasileira, mas o argumento ou piada, quando repetido à exaustão, perde a graça, “tem a eficácia de um saquinho Floc Gel”…

Bacon
Com seu bacon, cachorro-quente, “churrasco com pagode […] na laje ou na varanda gourmet” e “hamburguismo”, o cronista ofende vegetarianos e veganos (este crítico se inclui recentemente nesta minoria), sem falar nos bois, frangos e porcos, que sofrem na própria pele — com o perdão do trocadilho — para a satisfação de sua dieta carnívora. Em Bacon: direita ou esquerda?, de 2020, ele faz uma ode ou ensaio — ou piada de mau gosto — ao toucinho, em que conclui que “urge politizarmos o bacon. Talvez o bacon seja o famigerado terreno comum diante do qual direita e esquerda darão as mãos”, considera. “Que deleite é este pedacinho suíno. […] Ó, nobre animal!”, refestela-se, com sua panela em mãos.

 

Por quem as panelas batem
Antonio Prata
Companhia das Letras
320 págs.
Antonio Prata
Nasceu em São Paulo (SP), em 1977. É autor de Nu, de botas (2013) e Trinta e poucos (2016), entre outros livros, e colunista da Folha de S. Paulo, desde 2010.
Adriano Cirino

É jornalista graduado pela UFMG. Foi repórter trainee do Estadão e colabora com a revista piauí.

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