Pampas mágicos

Luiz Horácio completa sua Trilogia alada mantendo o Rio Grande do Sul como personagem e palco para o desfile das emoções humanas
Luiz Horácio, autor de “Pássaros grandes não cantam”
01/01/2011

Chegar ao fim de uma trilogia literária é trabalho para poucos. Esse é um dos motivos pelos quais devemos saudar o gaúcho Luiz Horácio que, com seu Pássaros grandes não cantam, encerra a sua Trilogia alada, inaugurada em 2005 com Perciliana e o pássaro com alma de cão, e que teve sua continuação em Nenhum pássaro no céu, em 2008. O mais interessante nessa trilogia é que o autor não lança mão de um personagem condutor para os três livros — não um personagem humano, porém, visto que os pampas gaúchos é que estrelam as três obras. Ao escolher um lugar e a maneira de ser de um lugar como protagonistas, Luiz Horácio consegue se manter fiel a esse fio condutor ao longo de seus três trabalhos e dá uma unidade difícil de ser conquistada ao conjunto.

Em Pássaros grandes não cantam, temos um personagem principal homônimo do autor, Horácio, que é um senhor de estância gaúcho e preconceituoso — contra negros principalmente, mas também contra mulheres fortes e aqueles a que chama de comunistas —, e que prefere a solidão ao convívio humano. Horácio só conversa mesmo com o seu cachorro Timóteo, sendo que as outras conversas, com seus empregados, servem para tratar da vida prática e das necessidades do dia-a-dia da estância ou falar mal de seus vizinhos. Nesse caso, a questão não é a fofoca, mas sim um preconceito arraigado contra toda e qualquer pessoa que não pense como ele — que mantenha amizade com negros, defenda algum direito social ou, ainda, que reivindique seus direitos trabalhistas. Horácio é contra o mundo.

Ao longo do livro, vamos conhecendo muitos outros personagens, cada um contribuindo de alguma maneira para conseguirmos conhecer a história do local onde está a estância de Horácio. Conhecemos sua vizinha Elvira, mulata desprezada por Horácio, e sua família. Descobrimos que ele teve um caso com uma espanhola, Pilar, e com ela uma filha, Rocío, mas que por alguma razão elas não moram com ele. Conhecemos um pouco Amâncio, uma pessoa misteriosa de quem pouco descobrimos ao longo do livro, mas que tem papel fundamental em toda a trama. Em cada personagem, Luiz Horácio, o escritor, revela algum traço da maneira de ser do pampeano gaúcho que ainda hoje está presente na personalidade daquele povo. Um aspecto que ganha especial atenção por parte do autor é o racismo. Luiz Horário voltou a Porto Alegre 18 anos depois de ter ido morar no Rio de Janeiro, e sofreu em sua pele negra a rejeição dos conterrâneos. Para ele, essa é uma característica da propensão natural do gaúcho para o conflito.

Sobrenatural
Um dos traços mais fortes de Luiz Horário é imprimir nos pampas um caráter mágico em que a natureza também fala, em que o sobrenatural é comum para aqueles que mantêm abertos os canais de comunicação com outros mundos. Em Pássaros grandes não cantam, porém, Luiz passa um pouco do ponto ao inventar morcegos com cara de gente para simbolizar momentos históricos de dois países — Brasil e Espanha, ligados por conta de Horário e Pilar — e seu reflexo nos dias de hoje. Ainda que simbólicos, a explicação da existência dos morcegos, que aparece nos instantes finais do romance, acaba sendo meio ingênua. Eu concordo com o autor que os momentos históricos têm nos morcegos um personagem-símbolo, mas a maneira como eles foram colocados ali ficou meio estranha.

A maneira de Luiz Horácio transpor a fala do gaúcho para o papel se manteve em Pássaros grandes não cantam, mas dessa vez o autor conseguiu manter os diálogos sem tantas cacofonias como havia em Nenhum pássaro no céu, onde a profusão de pessoas que falavam simultaneamente prejudicava o entendimento do trabalho. Outro ponto positivo é que a realidade fala um pouco mais alto nesse último trabalho da trilogia, e temos mais gente de verdade com dramas de verdade, em que pesem os morcegos e as referências ao fantástico. Até mesmo Perciliana, protagonista do primeiro romance, é relembrada pelo que dizia e sentia, sem reaparecer como espírito.

No entanto, o autor, ao criar dentro de seu trabalho um personagem-autor de quem não conhecemos o nome mas que aparece de tempos em tempos para relembrar o leitor do que ele viu ou escutou, é um toque desnecessário à obra. Desde o início do livro queremos saber quem é Horácio de verdade, quem é Pilar, Rocío, Elvira, Amâncio e tantos outros que vão aparecendo pelo livro, o que são os morcegos, e por que atacam uns e não outros. Enfim, começa-se o livro e não se tem vontade de largá-lo antes do fim. Mas as interrupções do personagem escritor e os cortes abruptos das cenas como se fossem um videoclipe, se por um lado aumentam o ritmo de leitura, por outro interrompem a sua fluidez, algo como um carro correndo em uma estrada esburacada.

Em resumo, a Trilogia alada é um belo trabalho. Pode-se questionar algumas escolhas do autor ao dar mais ênfase em alguns momentos a um fantástico que talvez não seja necessário, ou a colocar muita gente falando ao mesmo tempo, mas o conjunto do trabalho é bom. É muito fácil enxergar a coesão das três obras, o espaço geográfico propositadamente limitado que Luiz Horácio escolhe para desenrolar sua visão do ser humano e de seus dramas, e de como ele se apropria das características reais desse local — os pampas gaúchos — para mostrar que as emoções humanas básicas — amor, ódio, cobiça, inveja, ambição, compaixão — continuam sendo as molas-mestras de tudo o que fazemos. Além disso, o autor mostra uma evolução nítida entre Nenhum pássaro no céu e este Pássaros grandes não cantam, o que nos faz aguardar pelo seu próximo trabalho, venha ele quando vier.

Pássaros grandes não cantam
Luiz Horácio
Global
220 págs.
Luiz Horácio
53 anos, é natural de Quaraí (RS). Formado em Letras, cursa o mestrado na mesma área. Viveu sua juventude na terra natal e em Porto Alegre (RS) e mudou-se para o Rio de Janeiro (RJ), onde viveu cerca de 20 anos. Sua principal obra é a Trilogia alada, cujo primeiro livro é Perciliana e o pássaro com alma de cão, seguida de Nenhum pássaro no céu e encerrada com Pássaros grandes não cantam.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho