Palavras para o fim

"Diário de luto" é um livro de aforismos sobre a dor de um homem frente a morte da mãe
Roland Barthes, escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês
01/11/2011

O diário, segundo definição de Philippe Lejeune, é uma escrita cotidiana, “uma série de vestígios datados”. Além de uma escrita “diária”, do registro de acontecimentos banais, trata-se também de uma exposição da intimidade para o próprio autor que escreve, visto que, em princípio, não há endereçamento para o outro, como seria o caso das cartas. O diarista escreve para si mesmo, o eu é o interlocutor privilegiado. André Gide, ao apropriar-se da forma do diário (Diário dos moedeiros falsos) para escrever um romance (Os moedeiros falsos), rompe com a convenção do gênero, revelando a sua identidade — sobretudo a de um sujeito autor —para um vasto público de leitores. Ou seja, o que é mais próprio do eu que escreve, o autor, que se define pela sua tarefa de escrever, é justamente o que se transforma em matéria de criação. O diário é uma espécie de texto em que a pessoa se observa ao longo do tempo, movida, quem sabe, pelo interesse de se autoconhecer, e pelo próprio gosto da escrita, onde esse ser que escreve acaba por se revelar a si mesmo.

Você, potencialmente mórbido leitor, marcaria qual alternativa para Roland Barthes com seu Diário de luto? Acredita que a imensa quantidade de aforismos revele a intenção do autor em se conhecer? Ainda tentando se conhecer naquela altura da vida? Ou quem sabe gosto pela escrita? Quem sabe… Vale lembrar o que Barthes diz em O ofício de escrever: “escrever só é plenamente escrever quando há renúncia à metalinguagem; não se pode, portanto, dizer o Querer-Escrever senão na língua do Escrever”.

Diário dos moedeiros falsos é o diário do autor enquanto escrevia sua obra de maior repercussão, Os moedeiros falsos. Gide revela seu processo criativo, desde a criação dos personagens, do enredo, suas dúvidas, seus questionamentos acerca da trama e valiosas reflexões sobre o fazer literário. O leitor testemunha a relação de Gide com os personagens, relação que, por vezes, parece ultrapassar o âmbito da literatura.

Roland Barthes escreve seu Diário de luto enquanto prepara seus cursos para o Collège de France, escreve A câmara clara, mas diferentemente de Gide não permite a participação do leitor. Que se conforme com o papel de espectador. Um espectador choroso. Uma carpideira, no máximo.

Diário de luto é um livro de aforismos sobre a dor de um homem frente a morte da mãe. Ao leitor atento sobrarão pistas do tédio, do desespero, e do início da caminhada de Barthes em direção a sua morte. “A verdade do luto é muito simples: agora que a mam. está morta, sou empurrado para a morte (dela, nada me separa, a não ser o tempo)”.

As anotações são quase diárias, 26 de outubro de 1977 a 15 de setembro de 1979. Barthes morreu em março de 1980. Atropelado ao atravessar a rue des Écoles, em frente ao Collège de France.

Diário de luto é, em última instância, o diário de Barthes, futuro órfão.

O meu?

Eu não queria aquela expressão no rosto morto de minha mãe, ali ela mentia, aparentava paz, ela me enganou e eu não chorei. Contra outros silêncios seus eu lutei, mas contra aquele não havia nada a fazer.

Diário de luto
Roland Barthes
Trad.: Leyla Perrone-Moisés
WMF Martins Fontes
252 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho