Que saudade das noites de sábado, garoa fina e preguiça tomando conta do apartamento quentinho, com cheiro de chocolate quente! Na tevê, um daqueles filmes do Corujão — quem não se lembra do Corujão? — com atores engraçados e trama sem muitas pretensões. Algo como Assassinato por morte (Murder by death, com Peter Sellers e Truman Capote), filme de 1976 em que um milionário excêntrico chama os melhores detetives do mundo para desvendar um crime que ainda vai acontecer. Hilário e delicioso. E, pelo que eu sei e para minha decepção, fora de catálogo. Quando era pequena, assisti a esse filme num sabadão de madrugada — o que era uma coisa sensacional, porque crianças não podiam ficar acordadas até “de noitão” — e fiquei meses falando dele aos meus pais, coitados. (Mas, quando a gente cresce, parece que passar um fim de semana em casa sem fazer nada, só vendo um filminho, é um crime terrível. Desses previstos pelo código penal e tudo. Então, façamos de conta que ninguém faz isso, certo?)
Nessa mesma época, adorava brincar de Detetive. Aquele jogo de tabuleiro em que temos de desvendar qual daquelas pessoas com nomes estranhos é a assassina do sr. Body. E ainda dizer qual arma usou e em que parte da casa aconteceu o crime. Assim: “Coronel Mostarda… com o candelabro… na sala de música!” Bons tempos! Naquela época, não lia muito, não. O máximo da empolgação com algo escrito eram os gibis da Turma da Mônica. Mas, lá pela quarta série, comecei a ler uns livros da Coleção Vaga-Lume. Lembro bem do livro Um cadáver ouve rádio, de Marcos Rey. E gostei da coisa. As tramas dessas histórias policiais, que envolvem muitos personagens e estão sempre cheias de reviravoltas são muito atraentes.
Não vou dizer que sou uma grande leitora de romances policiais. Sou mais de assistir aos filmes — que me perdoem os amantes da literatura, mas é verdade. Quando era mais novinha, achava que ler histórias policiais era “coisa de piá”. Algo assim como brincar com o Falcon. Então, lia outros tipos de livros. Mas, vez ou outra, cai um livro policial na minha mão. E aí, leio. Claro. Como aconteceu com Os demônios morrem duas vezes, de Fernando Pessoa Ferreira. Livro interessante, bem leve e de leitura fácil.
Mas falar sobre livros policiais é sempre um pouco perigoso. Dar pistas demais sobre os assassinos ou mostrar as fragilidades do texto podem fazer com que o possível leitor se desinteresse pela história. De qualquer forma, contar a sinopse não vai estragar a leitura de ninguém. Então, vamos a ela: Omar e Gilberto, uma dupla de policiais da delegacia da Vila Madalena, em São Paulo, investiga o assassinato de um travesti. Tudo normal, não fosse a morte de outro, na mesma região. E alguns acasos, como um morador de um dos prédios da redondeza que vê jovens, fortes e louros rapazes torturando um pobre coitado da janela do apartamento da frente, no melhor estilo Janela indiscreta; e um moço jovem, louro e forte é baleado com o mesmo tipo de arma usado para apagar um famoso e procuradíssimo traficante de internacional de drogas. Nada de muito diferente ou com muito suspense. De todo modo, prende a atenção.
A leitura desse tipo de livro fica mais interessante quando a história abre espaço para outros personagens secundários, que sempre deixam aquela pulguinha atrás da orelha: será que ele está envolvido nesse crime? Em Os demônios…, esses personagens são o babalorixá Robério de Oba-Telá — moço atraente, de olhos azuis e ascendência italiana, que já teve um caso com a mulher de Omar — e Pitágoras, ex-cunhado da futura namorada de Gilberto. No mais, tudo como manda o figurino: um dos investigadores se apaixona por uma bela mulher, mais rica e que precisa de um companheiro que tenha uma situação financeira mais interessante do que a de um policial; bandidos inexperientes deixam pistas por todos os lugares em que passam; e várias coincidências caem no colo dos policiais, que juntam as peças do quebra-cabeça até montá-lo todinho.
Mas um dos trunfos do livro é a “locação”. A trama se passa em um lugar muito próximo de nós, leitores tupiniquins: Vila Madalena, São Paulo. Bairro boêmio de uma cidade cheia de olheiras, marcas do pouco sono. E que está sempre nas páginas dos jornais — não só nas policiais, mas também e com freqüência nelas. É fácil entender que em São Paulo tipos com os comportamentos mais estranhos tenham tanto destaque. A cidade de vários sotaques, cores, cheiros e músicas é um bom ponto de partida para uma história que envolve intolerâncias e disputas raciais. Um pequeno mundo, com suas falhas, seus medos e inseguranças. É claro que esses fatos poderiam ter acontecido em qualquer capital nacional. Goiânia, Salvador ou Belém. Mas São Paulo é um tanto mais “universal”. Mas, fundamental informação, Ferreira mora na capital paulista há 37 anos, depois de ter passado por Olinda, Curitiba e Rio de Janeiro. E isso faz, sim, diferença na hora de escrever. Conhece as ruas e as pessoas de lá como eu conheço a Rua XV e o sotaque leite quente de Curitiba. E conhece muito bem a garoa. De sábado e de todos os outros dias da semana.