Signor Mino Carta, mi dispiace. Esta é a primeira frase que me vem à cabeça para comentar seu novo livro — A sombra do silêncio. Em parte porque Mino é italiano, e assim a expressão terá mais sentido para ele. Mi dispiace é mais que o seu equivalente em português, sinto muito. Traduzindo literalmente, seria não me dá prazer. Mas não é apenas isto. É um sentimento de que a outra pessoa espera algo de você, e você não pode entregar. Como admiro muito Mino, esperei bastante de seu livro. E ele nos entregou este livro com um sorriso, esperando uma boa recepção nossa. Mas não consigo pensar em outra coisa a dizer que não mi dispiace.
E não me agrada fazer esta avaliação deste trabalho de Mino Carta. Eu o considero um dos grandes jornalistas brasileiros, com certeza um dos melhores, alguém que dignifica uma profissão tão profícua em escroques e medíocres. E se há algo que Mino sempre professou em seu exercício profissional foi dignidade e excelência. Ele sempre lutou pela independência do jornalista e dos veículos de mídia e pela alta qualidade do produto final. Mas talvez seria melhor ter ficado restrito ao campo do jornalismo a enveredar pelos caminhos do memorialismo com tons ficcionais. Como não conheço seu trabalho como pintor, calo-me a respeito.
A sombra do silêncio conta mais uns pedaços da vida de Mercúcio Parla, alter ego de Mino Carta na sua biografia e personagem já apresentado ao público no livro anterior do jornalista, Castelo de âmbar. Desta feita, temos em plano principal a história de Core Mio, “a mais bela do bairro”, e sua história de amor com Mercúcio. Seu desenrolar dá-se entre as ruas da Ausônia-Itália e da rua Áurea-Augusta de São Paulo, pano de fundo das histórias de ambos os personagens.
Se em Castelo de âmbar Mino cuidou mais de mostrar sua biografia profissional, ou melhor, a vida de Mercúcio, vemos agora o autor empenhado em mostrar, mas não muito, a vida sentimental do jornalista. Os enredos que se descortinam no fundo enquanto acontece a trama amorosa são conhecidos por aqueles que leram Castelo, afinal, estamos falando do mesmo personagem e dos mesmos tempos. Mas o que temos agora é a dimensão sentimental de todos os acontecimentos. No primeiro livro, acreditamos que Mercúcio tomava decisões praticamente sozinho. Agora, vemos o quanto pesa em seu coração o amor por Core Mio, e o quanto as suas decisões são avalizadas por ela. Não que ele mude suas idéias. Mas agora ele tem uma avalista, que o conhece melhor que ele mesmo, e o perturba.
Perturba-o porque ele não quer, a princípio, abrir mão de sua liberdade pessoal. Para ele, o compromisso afetivo significa a castração, o fim dos rendez-vous com damas diversas da sociedade brasileira, a prisão cujos grilhões tem a forma de uma frase: “Eu te amo”, e de um compromisso, o casamento. Perturba-o, pois Core Mio diz, logo em um dos primeiros encontros, que não importa o que ele faça, ele sempre será o homem de sua vida. Assustado, Mercúcio tergiversa e foge até não poder enganar mais a realidade.
E a realidade de A sombra do silêncio continua a mesma do trabalho anterior de Mino: O Brasil entre os anos 60 e hoje em dia, e todas as reviravoltas políticas, comentadas por um espectador privilegiado, tal qual foi Mino. E o que se vê é a emoção pura tomando conta da razão, sobrepujando-a em alguns casos. Pois muitas vezes o coração é melhor guia que a razão, e a história pessoal é sempre maior que a história das nações. Core Mio não chega para ditar o que Mercúcio deve fazer, mas com certeza ele procura saber sua opinião antes de tomar decisões.
O livro é escrito entremeando as passagens da vida de Core Mio, de Mercúcio, das cartas deste para Honest Cassius, seu interlocutor privilegiado, e outros textos esparsos de tons poéticos. E conta assim como se apaixonou, como lutou contra a paixão, como se entregou e como aconteceu esta história.
Não há como negar que é uma trama bonita. Também é impossível dizer que o tema da prática do jornalismo em um país como o nosso não seja interessante, ou que Mercúcio-Mino seja um personagem a mais no cenário. Não, muito pelo contrário. No entanto, apesar de todas estas qualidades, o livro não desce bem. A mistura entre história, ficção e poesia (pois o texto de Mino é sim poético) não parece bem dosada, ou melhor, parece uma mistura fracassada, como suco de manga e limão, os sabores juntos, mas separados.
Há também a questão do texto, que é apresentado de forma estranha, barroca diria, cheia de rococós e firulas de linguagem. Assim, o texto não flui, ou pelo menos, não para quem está acostumado a ler o texto jornalístico. Pode-se argumentar a favor do escritor que não é sua culpa ter um texto extremamente detalhista com riqueza de vocabulário quando os leitores pedem a frase curta, imediata. Pode-se também dizer que o texto é de um jornalista das antigas, e ainda à moda antiga. São talvez desculpas para eu não ter gostado do texto. No entanto, o estilo altamente rebuscado de Mino prejudica o andar da leitura. Não afeta a história, mas cria uma certa inimizade entre o leitor e o livro.
Outro aspecto que prejudica as histórias de Mino é não dar o verdadeiro nome aos bois. Se para alguns pode parecer claro os personagens de quem fala, para uma geração de fãs do Mino jornalista faltará a base que permita ver no Arauto fictício o jornal O Estado de S. Paulo verdadeiro, na revista Foco a nossa Veja, na Assim é, se… a IstoÉ, e por aí vai. O estratagema para contar sem revelar muito acabará por condenar os livros de Mino a um tempo em que a história do jornalismo tupiniquim está ainda fresca na memória. Em A sombra do silêncio a troca de nomes não é tão importante, pois estamos falando de emoções universais. Mas como os personagens do Castelo tornam a aparecer em A sombra, isto fará falta também a este livro. E que às vezes seria mais interessante saber de quem exatamente Mercúcio-Mino está falando, ah isto seria.
Mi dispiace.