Palavras-chave

Apropriação do hipertexto pela linkteratura oferecerá novas alternativas aos leitores
Ilustração: Marco Jacobsen
01/03/2006

Há um espectro rondando a literatura mundial. Com a chegada dos avanços tecnológicos e, principalmente, da internet e a possibilidade desse meio de comunicação reunir texto, som e imagem, como a literatura poderá integrar-se a essa nova realidade, sem abandonar o que tem de melhor, ou seja a capacidade criativa e imaginativa que só ela confere à palavra escrita? Se fosse apenas um caso de transposição para som e imagem, não haveria problema: o cinema e a televisão já fazem isso e serão também integrados ao computador. Mas mantendo o foco da criação sobre a palavra escrita, como interagir com o computador e a internet utilizando-se das possibilidades tecnológicas que são oferecidas?

De certa maneira já se faz muita literatura na internet, seja com os blogs, ou em sites específicos, ou mesmo no interjornalismo (expressão que eu prefiro à de jornalismo online ou de web jornalismo, que são mais comuns, mas que não abrangem tudo o que o jornalismo pode fazer com a evolução tecnológica e a internet). Mas a literatura costuma ainda ser segregada aos livros. No entanto há uma possibilidade de se sair dos livros e ir para o computador, sem que um brigue com o outro. Uma mesma história literária pode conviver nos dois meios, pacificamente, mas respeitando suas características próprias.

Já temos muitos livros e textos literários disponíveis na internet, sejam pagos ou gratuitos. Basta acessar a página própria e mediante alguns comandos e, por vezes, alguma forma de pagamento, baixá-los para seu computador e, se preferir, imprimi-los. Livrarias virtuais também existem, montando o livro na hora para o cliente que escolhe o texto em um menu pelo próprio computador.

Portanto, o livro, ou a literatura e o computador já estão bem familiarizados. Mas há ainda um ou mais pontos a serem aproveitados pensando-se em texto para computador ou para a internet. Isso já vem sendo bastante estudado, particularmente na esfera do jornalismo que trata, principalmente, do hipertexto. Notícias ou palavras-chave que se transformam em caminhos para outras notícias com outras palavras-chave, num caminhar quase sem fim em busca de notícias correlacionadas. As palavras-chaves também podem nos transportar para ilustrações ou vídeos, ou sonoras sobre o assunto levantado na reportagem.

A proposta é que a literatura aproprie-se desse conceito jornalístico no seu novo fazer literário, usando as armas da informação jornalística na ficção, na imaginação. O hipertexto pode ser o início de uma nova forma de fazer literário para a era do computador. Isso pode ser feito, como já disse, sem prejudicar o livro em si. Uma mesma história, seja ela um romance, uma novela ou um conto, ou uma peça teatral, pode ser escrita para o livro de uma maneira e para a linkteratura de outro, com poucas mudanças. Quem preferir pode até seguir, no computador, a mesma ordem de páginas do livro, mas pode, também ter outras escolhas fazendo um caminho que o leitor pode modificar a cada leitura.

Há várias maneiras de se oferecer a linkteratura e vários podem ser seus fornecedores. Um livro de um autor pode ser um site específico ou o próprio autor pode ter seu sítio na internet onde ofereça seus textos. Ou ainda, uma empresa, seja uma editora ou um portal pode manter um serviço de linkteratura onde ofereça trabalhos de diversos autores. O que importa é que o texto estará disponível para consulta via internet e pode ser pago ou gratuito, dependendo do interesse do autor ou do empreendimento. Mas não há a necessidade de se ficar apenas na internet e pode-se oferecer a linkteratura através de CDs ou DVDs. Mas vamos por partes, começando pelo trabalho de autoria e edição da linkteratura.

Quando o autor termina seu trabalho literário, ele quase sempre passa pelas mãos e cérebros de editores especializados que sugerem alguma mudança, cortes ou acréscimos, fazem correções, dão dicas, que podem ou não ser aceitas, mas, no final das contas o livro é editado. Se for um romance ou novela, ou uma peça teatral, geralmente o leitor, se não desistir no meio do caminho, percorre o texto da primeira à última página. Se for um livro de contos, poesias ou crônicas, o leitor pode escolher qual trabalho vai ler primeiro e não precisa, necessariamente, seguir a ordem da numeração das páginas. Ao pensar em um texto literário para a linkteratura (não é só na internet pois um texto poderá ser comprado em CD ou DVD) deve-se repensar essa linearidade da leitura. Ela deve ser oferecida como mais uma das alternativas, mas a história pode ter outro tipo de leitura, mais parecida com a oferecida pelos contos ou crônicas, em que o leitor sente-se mais à vontade para escolher o seu próprio caminho.

Como já falei, a intenção é apropriar-se do hipertexto usando palavras-chave para oferecer alternativas de caminhos para o leitor. Além da leitura linear, da primeira à última página de forma seqüencial, o hipertexto, as palavras-chave podem fazer o leitor se desviar por algum caminho que ele prefira. Assim, dependendo da escolha, o linkleitor poderá entrar em histórias paralelas, ou retornar a um texto passado ou obter um resumo de um determinado personagem bastando para isso um clique sobre essa(s) palavra(s)-chave. Ou ainda, um autor faz uma série de livros sobre determinado personagem e num desses livros refere-se a um episódio de um outro livro que pode ser acionado — o livro todo ou um resumo — com um clique.

É evidente que os editores e o autor devem estar atentos para o que fazem e não cometer equívocos que comprometeriam a leitura integral da obra. Seria ridículo, por exemplo, com um clique na primeira página revelar-se todo o segredo de uma trama que só seria desvendada nas páginas finais. Seria não menos ridículo fazer o leitor se perder pelo caminho e não conseguir mais achar o ponto de partida ou a forma de reiniciar a leitura do ponto inicial ou de onde ele queira (para evitar isso existem os menus de cena ou capítulos como acontece nos DVDs).

Enfim, a criação, paginação e edição da linkteratura têm que ser pensadas para a leitura em computador e internet. Deve-se ter em mente a arquitetura da construção de sites e todas as suas possibilidades. Nada impede, por exemplo, que em um determinado momento haja uma ilustração, que pode ser animada e com som. Esse é um passo mais à frente e então já começamos a falar na linkteratura feita especificamente para o computador e não mais para o livro impresso. Mas é uma possibilidade, mais que isso, é o futuro.

A linkteratura encontrará sua forma própria. E será de grande ajuda sempre que um autor colocar no seu texto um trecho de música (pense que alegria ler Alta fidelidade, de Nick Hornby podendo, a um clique, escutar as músicas que fazem parte das listas dos personagens) ou uma referência a um lugar (que tal um passeio com Leopold Bloom pelos locais descritos em Ulisses, de Joyce?), ou a menção a um outro autor (as obras filosóficas se transformariam em verdadeiras enciclopédias), ou ainda referências a obras de arte (características e detalhes de uma pintura e seu autor, ou passeios virtuais a museus).

Democraticamente, estará à disposição de autores venerados e inseridos no cânone da crítica e também daqueles que não ganham boas apreciações críticas, mas em contrapartida, são adorados pelos leitores (pense nas possibilidades da linkteratura em livros como O código Da Vinci ou Harry Potter).

É claro que a objeção mais fácil de se fazer é que ainda não inventaram nada mais prático do que o livro para se ler. Concordo. No entanto já não falo mais em apenas ler, mas também em ver, ouvir e, mais à frente — quem sabe quando? —, em cheirar, tatear, lamber. Outra objeção — que aceito, assim como também aceito a evolução inevitável — é que não há nada mais criativo e cativante que a literatura tradicional. Por mais explícito que seja o escritor, tudo é montado na mente do leitor e na sua capacidade de imaginação numa espécie de jogo que o aproxima muito de ser também um criador na hora em que lê. É um sentimento diferente do cinema ou do teatro em que pouco sobra para ser completado pela imaginação de quem assiste (televisão, então, nem se fala). Nesse sentido, a literatura é mais próxima da música, por mais paradoxal que seja, em que se despertam sentimentos sem que haja a necessidade da palavra. Ela depende e é bastante auxiliada pela intuição e imaginação de quem recebe, quase tanto quanto de quem a produz. Já o cinema ou o teatro seriam formas de recepção mais passivas — e aqui eu falo da representação teatral e da projeção do filme, pois as duas artes também têm suas versões impressas, sejam nos textos das peças ou nos roteiros dos filmes, aí então comparadas à literatura tradicional, apesar das suas especificações de signos, pois são escritos — isso quando não adaptados de textos puramente literários — para serem montados em um outro tipo de linguagem.

A linkteratura poderia vir a ser também uma forma mais passiva, pois é mais explícita ao mostrar ao alcance de um clique coisas que poderiam ser imaginadas. Ela ficaria mais informativa e menos imaginativa. Pode ser, mas quem disse que cinema e teatro são menos arte ou artes menores? A linkteratura também não o será quando encontrar seu caminho e afastar-se mais da literatura tradicional.

Ainda quanto às objeções acima, pode-se alegar que é desconfortável ler textos longos em um computador. Pode ser, mas para uma geração de crianças que cresce em frente a essa maquininha, é a coisa mais normal do mundo. Talvez seja mais fácil para eles ler algo em um computador do que em um livro. Há também que se considerar que inúmeras pessoas, sejam executivos, professores, intelectuais, jornalistas e até mesmo escritores já passamos mais tempo em frente a um computador do que em frente a um livro. Significa que, querendo ou não, já lemos muita coisa na telinha do computador, talvez até mais do que em veículos impressos.

Para mim, é tudo questão de tempo para que se torne uma prática comum algo que já se iniciou. E em outra oportunidade poderemos também falar dessa nova forma de narrativa, que são os games, em que o jogador é um participante ativo para a conclusão da história.

Luiz Claudio Soares
Rascunho