Vinte e um livros, 43 anos e 970 páginas depois do inaugural Sélesis, Carlos Nejar reúne sua poesia (quase) completa nos volumes A idade da noite e a Idade da aurora. Falamos de “quase” em dois sentidos: não apenas pelo fato de alguns textos não integrarem a coletânea (como, por exemplo, A espuma do fogo, 2002), mas também porque, para Nejar, nenhuma poesia consegue ser rigorosamente “completa”. Definindo-se, mais de uma vez, como “Servo da Palavra”, Nejar sabe que poeta é aquele que persegue o impossível, uma espécie de acendedor de relâmpagos, ébrio de uma luz que, depois de passar, deixa o escuro mais escuro, pelo contraste com o brilho extinto. Vestígios dessa luz ainda queimam as mãos do poeta: palavras-labareda com que ele reviverá a memória do clarão perdido no corpo do texto encontrado.
No panorama da moderna poesia brasileira, Nejar ocupa uma posição consolidada, e, sob vários aspectos, à contracorrente de suas tendências mais ostensivas. O diálogo do poeta é antes com as grandes vozes da lírica ocidental (Dante, Goethe, e, mais próximos, Pound e Eliot) do que com seus contemporâneos, sem esquecermos o fascínio que lhe desperta o que poderíamos denominar “discursos fundadores”: a Bíblia, a Íliada, Os Lusíadas — não para celebrar confortavelmente a segurança de uma “origem”, mas, ao contrário, para indagar o que há aquém do zero, ou, na ponta oposta do futuro, para perscrutar o que se esconde ainda além do invisível. Verbo dos deslimites, na coabitação de tempos antagônicos, de geografias díspares, concretas e impalpáveis(“Nos sentamos/ na tora de um milênio”). Verbo porta-voz dos ventos, dos abalos sísmicos, que se alça ao tom profético e místico (“Tudo é continuação de outra continuação mais inefável: Deus”), mas verbo que também sabe infletir-se na dicção intimista das canções à bem-amada Elza: “Provados somos e o provar é um gomo/ desta romã partida pelas águas./ Somos o fruto, somos a dentada/ e a madureza de ir no mesmo sonho”. Mas, sobretudo, palavra movida pela paixão, pelo apelo e apego ao outro, pela solidariedade aos que, perdendo memória e identidade, a recuperam pela invenção do passado, ou pela promessa de um futuro forjado contra o olvido e contra o precário. É o que se lê em de seus mais belos poemas, Contra a esperança, tramado num sutilíssimo confronto dialético entre a esperança e o desespero: “É preciso esperar contra a esperança./ Esperar, amar, criar/ contra a esperança/ e depois desesperar a esperança/ mas esperar,/ enquanto um fio de água, um remo,/ peixes/ existem e sobrevivem/ no meio dos litígios”.
Numa época em que a contenção, o minimalismo, são erigidos, por muitos, à categoria de inviolável mandamento estético, pode surpreender a exuberância discursiva de Nejar, que o leva, por exemplo, ao cultivo do poema longo, ou mesmo ao poema-livro. A questão é complexa, pois percebemos que o “fluvial” corresponde apenas a uma das facetas de seu repertório de formas. Tal repertório inclui igualmente a prática microscópica do haicai; atravessa, com excelente resultado, o livro de sonetos (Amar, a mais alta constelação, Sonetos do paiol); transita desenvoltamente da veia lírica à épica (solapando também as fronteiras entre prosa e verso) em várias obras, dentre essas a que concentra, talvez, o projeto de maior fôlego e de mais densa envergadura da poesia nejariana: A idade da aurora (1990). Classificado, pelo próprio autor, de “rapsódia”, o texto, numa sucessão vertiginosa de metáforas(“E é um caracol a manhã pelo rugir das chamas”; “O mundo é uma baleia”) , recria miticamente um Brasil de cores, sons, aromas, sob forma de uma fábula arquetípica a que não faltam traços de oralidade aliados a uma sofisticada trama de imagens. O poeta, mais do que criar metáforas para conotar um real que lhes seria preexistente, sugere que, ao contrário, só através da metáfora o real se pode constituir, como um de seus efeitos — seja uma pétala, seja um país.
A editora Ateliê, de São Paulo, vem-se notabilizando pelo apuro gráfico de suas publicações. Numa edição como esta, tão bem cuidada, é de se lamentar apenas a ausência de algumas balizas que seriam bastante úteis ao leitor iniciante na obra de Nejar: índice remissivo de primeiros versos e de títulos de poemas; fortuna crítica do poeta, já bastante extensa (melhor ainda se não apenas repertoriada, mas reproduzida em seus artigos mais relevantes); exaustivo levantamento bibliográfico do escritor, cuja produção multifacetada, embora tenha a poesia em seu eixo, não se restringe a ela. Nejar é também ficcionista, dramaturgo e ensaísta, tendo publicado, em 1994, A chama é um fogo úmido, preciosa reflexão sobre a poesia contemporânea e que, sob vários aspectos, fornece pistas fundamentais para um melhor entendimento da própria criação do autor. Essas pequenas omissões, além de um ou outro erro tipográfico facilmente sanável em próxima edição, em nada diminuem o valor de um livro que, de modo definitivo, oferece ao leitor de língua portuguesa o melhor da obra de um de seus mais importantes poetas.