O conto que quase certamente você não lerá foi escrito por um jornalista gaúcho de 40 anos e publicado por uma editora do Rio de Janeiro. Ah, tem mais: esse conto é muito bom.
O autor deste artigo chegou a essa conclusão depois de examinar 90 das cerca de 150 coletâneas de contos (publicadas no Brasil em 2010 e 2011) inscritas no Prêmio Brasília de Literatura, entregue durante a I Bienal Brasil do Livro e Leitura, em abril deste ano.
O levantamento concentrou-se nos livros editados com cuidados gráficos que os afastavam das produções amadoras. E com texto burilado, claro. Alguns exemplares não foram considerados porque, embora a ficha catalográfica jurasse que reuniam contos, na verdade enfeixavam crônicas. Como se buscava o perfil de um provável autor médio, obras coletivas obviamente não foram examinadas.
Nos meios literários é recorrente o chororô sobre a impossibilidade de se publicar um livro de contos no Brasil hoje. E acrescentam os mais pessimistas: publicado, não venderá. Por isso mesmo, concluem, nossos editores fogem dos contistas como o diabo do exorcista.
Porém, considerando que nem todas as editoras brasileiras quiseram ou tiveram tempo de apresentar suas obras (foi curto o prazo para inscrição), os números alcançados sugerem que, apesar das lamúrias, muitos contistas brasileiros acabam desencalhando sua produção.
Por que se diz que o trabalho daquele rapaz será publicado no Rio de Janeiro?
Porque 45 dos livros examinados saíram de editoras cariocas. A maior produção coube à editora 7Letras, com 18 volumes, seguida pela Record, com 13. O terceiro lugar ficou para a gaúcha Dublinense, com seis. Mas o Rio de Janeiro emplacou ainda duas editoras com três títulos, uma com dois e seis com apenas um.
São Paulo teve uma editora com três livros, três com dois títulos e nove com uma só obra. Santa Catarina, Rio Grande do Norte e o Distrito Federal entraram com editoras que publicaram duas obras.
Seis casas editoriais cariocas e seis gaúchas contribuíram com um livro para este levantamento. Goiás compareceu com três editoras de um só livro e a Bahia com duas. Da sempre literariamente poderosa Minas Gerais inscreveu-se apenas uma casa editorial com um minguado produto.
Para se chegar à conclusão sobre a idade do nosso provável contista, foram somados e divididos os anos de nascimento de exatos 50 autores. O mais provecto deles nascido no distante 1925, enquanto o caçula veio à luz no recentíssimo 1992. Ao final, desembocou-se em 1972.
É interessante registrar que quase a metade do total dos autores sonega o ano de nascimento nas orelhas dos livros. Mas a malícia nos obriga a dizer que essa percentagem é bem mais elevada quando se examina separadamente o caso das senhoras. Que, aliás, eram 18 no total. Por isso se diz que o autor do conto hipotético será um barbado.
Afirma-se ainda que contista brasileiro típico nasceu na terra de Simões Lopes Neto porque, dos 54 escritores que informaram sobre seus estados de origem ou cidade natal, 16 vêm do extremo sul. Segundo grupo mais numeroso, os cariocas têm dez representantes. Em terceiro lugar, empatados com sete autores, São Paulo e Minas Gerais. Com cinco contadores de histórias curtas chegam Bahia e Santa Catarina. Paraná comparece com três, Goiás e Ceará com dois. E com um só representante temos Paraíba, Distrito Federal, Espírito Santo, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Sergipe.
Os que escrevem contos não gostam muito de falar sobre seu ganha-pão. Apenas a metade dos autores estudados — exatos 45 — mencionou nas orelhas de seus livros a profissão que exerce. O grupo mais numeroso vem da área de comunicação: jornalistas, publicitários e relações públicas somaram 15. Em segundo lugar vêm os professores, num total de 11. Pode-se especular que este seria o grupo vencedor, caso todos mencionassem a profissão, já que é considerável o número dos que se anunciam doutorandos ou mestrandos em literatura brasileira. Médicos e músicos contavam com três representantes; artistas plásticos, com dois. Entre as curiosidades, um taxista e uma webdesigner.
Por fim, para arriscar-se a dizer que o conto que quase seguramente não será lido é muito bom, o autor do artigo apresenta aqui oito autores jovens, ou não-badalados, cujo trabalho considerou de qualidade. São seis cariocas, dois são gaúchos e um é cearense.
Passatempos (Editora PUC-GO), de Vário do Andaraí
Com nome de sambista e muita malemolência ao narrar, o autor — taxista de idade não sabida que trabalha no Rio de Janeiro — reuniu neste livro duas dezenas de narrativas que apresentam personagens envolvidos em jogos ou atividades desvinculadas do ramerrão. A linguagem é marcada pelo coloquial, a gíria irônica e certeira dos cariocas. Três são os contos excepcionais em um conjunto de qualidade acima da média. Divertidíssimo é o conto que narra uma noitada de quatro rapazes, ex-estudantes da Escola Naval, até o momento em que encontram “três mulézinhas maneiras, potranquinhas”. O futebol, sempre desprezado pelos nossos narradores, surge inteiro em um parágrafo exemplar de Banco imobiliário. Em Cada um per se e Deus portanto, um taxista narra como entra mudo e sai calado de um bilhar onde jogam vários malandros barra pesada.
Salvem os monstros (7Letras), de Fernando Paiva
O jornalista e músico carioca Fernando Paiva, nascido em 1977, constrói suas histórias transitando, desembaraçado, entre o hilariante e o absurdo. Ou, para ser mais exato, misturando-os. Para quem prefere começar pelas gargalhadas, sugere-se o impagável O bloco do sapo que come calcinha, que narra as desventuras de um derrubador de mocinhas que se vê, subitamente, despossuído do seu ímpeto másculo por uma bruxaria. Para quem prefere o surreal, indica-se As estrelas do corpo de Juliana, sobre uma insólita vidente que lê o futuro nas sardas das pessoas.
O texto de Fernando Paiva flui com aquela aparente facilidade com que fluem os textos — jornalísticos ou literários — dos que sabem escrever bem. Fluidez vedada, claro, aos escritores-cabeça. Em Salvem os monstros não há malabarismo nem pirotecnias estilísticas. Só histórias legíveis, ora divertidas, ora instigantes.
Como um cão que sonha a noite só (7Letras), de Dércio Braúna
É difícil enquadrar a arte narrativa de Dércio Braúna nas grandes linhas do conto atual brasileiro. Digamos que as histórias que ele conta não são nem claramente intimistas nem voltadas para o real. Não contribuem, como apreciariam certos críticos, nem para a psicologia nem para a sociologia. O que se pode dizer com certeza é que Braúna tem uma dicção poética particularíssima, lusitana mesmo. Comprova-se que ele escreve como se fosse herdeiro direto de Lobo Antunes ou de Saramago lendo o conto Deus é nossa mulher-a-dias. A contracapa informa-nos que o autor é historiador e que trabalha “com pesquisas sobre os tempos pré-coloniais moçambicanos, a partir de obra de Mia Couto”. Talvez isso explique a redação de textos como Uma oração na era da mecânica.
A árvore que falava aramaico (Editora Asterisco), de José Francisco Botelho
Em busca de uma definição apressada para as narrativas curtas do gaúcho de Bagé José Francisco Botelho, 40 anos, pode-se dizer que ele é ora um contador de histórias que se passam em pequenas cidades ou na zona rural, com forte presença de um passado familiar, ora um narrador de histórias insólitas que se passam em lugares distantes no tempo e no espaço. As narrativas interioranas, sem dúvida, são um diferencial importante, uma vez que hoje a quase totalidade dos nossos contistas é cosmopolita. Já nos contos desarraigados do real, insólitos, sente-se a presença tutelar de Jorge Luis Borges. O conto que dá título ao livro, e que narra a fascinação de um menino por um tio estranho, numa cidade perdida na linha da fronteira com o Uruguai, é talvez o melhor.
Contos de Mary Blaigdfield — A mulher que não queria falar sobre o Kentucky (7Letras), de Lucas Viriato de Medeiros
São cinco as histórias da misteriosa e histérica Mary Blaigdfield, que se recusa terminantemente a falar sobre o que aconteceu no Kentucky. Numa delas, Mary é surpreendida, no zoológico, por um papagaio que lhe diz que sabe exatamente o que houve por lá. Entre as aventuras de Mary, estão oito contos. Divertidos, como Amor de armário, que narra o amor entre uma caixa de cereais e um pacote de uvas passa. Ou que brincam com o absurdo, como Faxina geral. Mas o melhor texto do jovem Lucas Viriato de Medeiros (nascido em 1984 no Rio de Janeiro) talvez seja o rocambolesco 14.100, no qual desvendamos o mistério do vândalo que joga baldes de água na varanda do edifício onde mora.
O barco e os temporais (7Letras), de Márcia Guimarães
A vida encardida dos miseráveis e marginais é o tema da maioria dos relatos de Márcia Guimarães. Excepcional é conto intitulado Golden gate, protagonizado e narrado por um brasileiro que descreve como alguns de seus conterrâneos — Bastos, Nego Lins e Sigmar — sobrevivem, na pindaíba, aplicando pequenos golpes, em São Francisco, na Califórnia. Saudosos todos eles de um Brasil que só existe num passado distante. O cotidiano mesquinho e violento dos que vivem confinados em um centro de internamento para alcoólatras é o assunto de Olho d’água. A narrativa segura, cortante, afastada de qualquer sentimentalismo, com forte dicção carioca, de Márcia Guimarães constrói cenários asfixiantes e personagens às voltas com o vazio de suas vidas. Vários contos marcadamente cariocas — como o que dá título ao livro — contrastam com narrativas cosmopolitas.
Festa na usina nuclear (Oito e Meio), de Rafael Sperling
Na dedicatória — aos nerds que ficaram dependentes de jogos de RPG, aos que estavam comendo açaí e mancharam suas roupas —, Rafael Sperling dá o recado: o humor é um traço forte dos seus textos. É um humor que zanza entre o grotesco e o escatológico, mas que vai além: cutuca os fundamentos do teatro em que vivem as pessoas de bem, os que exercem profissões dignas nesse nosso estranho mundinho. É o caso de Éz, um homem comum que todo dia, às oito da manhã, se deita para dormir na sua sala de trabalho. Em Amores efêmeros nos defrontamos com um casal que pede filhos pelo sistema de entrega em domicílio. Neste seu primeiro livro, o jovem carioca (nascido em 1985) mostra que tem o que dizer e que sabe como fazê-lo.
Quero ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora), de Reginaldo Pujol Filho
A contracapa anuncia que, com este livro, o autor quis “escancarar seus mestres”, homenageá-los. Claro que não se pode acreditar no que informa uma empresa que na folha de rosto adverte: “isto não é uma editora”. Na verdade, trata-se aqui de uma sátira desvairada que não presta tributo a ninguém. Talvez se possa dizer que em certos contos Reginaldo Pujol Filho trata seus “mestres” com uma discretíssima reverência. Mas não são esses os seus melhores. Os ótimos são aqueles dois ou três nos quais o autor debocha abertamente do estilo modernoso e arrebicado daqueles escritores aos quais, em tese, deveria render homenagens. Muito bons são os contos desenvolvidos a partir de detalhes da vida e da obra de Miguel de Cervantes e Luigi Pirandello.