Painel barulhento

Com narrativa fragmentada, a paranaense Luci Collin fala do corriqueiro e da memória familiar
Luci Collin, autora de “Nossa Senhora D’Aqui”
16/03/2016

“Você não tinha um bisavô Schmidt?”. Essa pergunta, logo nas primeiras páginas de Nossa Senhora D’Aqui, revela um pouco do clima da ficção que está por vir. O romance da curitibana Luci Collin mistura com habilidade causos familiares, cultura e linguagem popular, memória afetiva e histórias especialmente relacionadas ao sul do Brasil.

A senhora alemã Frau Homera Kortmann é a protagonista do livro. Mas a voz dessa protagonista praticamente não aparece entre as páginas. Tudo o que se sabe sobre a vida de Frau vem de relatos de outros personagens. São netos da alemã, seus amigos, talvez alguém que só ouviu falar dela. Dividido em partes, o romance dá um pouco de voz para cada uma dessas pessoas. Assim, o leitor tenta montar um quebra-cabeça e visualizar Frau, mesmo que quase sem a presença dela.

A tomar pelo depoimento e pela lembrança desses interlocutores, Frau era ao mesmo tempo uma louca, uma peste, uma mulher boazinha, famosa pelos olhões azuis, muito chique, de unhas bem cuidadas, com diploma de corte e costura e traumas do tempo da guerra.

O livro remete às famílias europeias que colonizaram a região sul do país e ajudaram a formar parte do que identifica alguns de nós: o sobrenome (e a mania de perguntar sobre a origem dele ao conhecer alguém), as histórias de família, os costumes, as maneiras de falar, o comportamento. Frau é alemã, mas Nossa Senhora D’Aqui também fala de portugueses, italianos, japoneses… de imigrantes e antepassados, enfim.

[Senhor/a coloquei entre colchetes mas não é segredo: Aqui no sul todos nós temos uma avó estrangeira alemã africana árabe polaca bugra japonesa pode ser espanhola ucraniana italiana russa portuguesa síria holandesa.

As múltiplas vozes presentes em Nossa Senhora D’Aqui passam longe da formalidade. De certa maneira, a pergunta no início do livro — e que aparece em outros trechos, com outros sobrenomes — é uma referência a um tipo de conversa informal, em que se pergunta sobrenome, origem, parentesco. Luci Collin brinca com a oralidade. As pequenas histórias ganham forma em diálogos, fofocas, bilhetes, recordações. A linguagem popular dá ritmo ao livro, faz os personagens se dirigirem ao próprio leitor, como um vizinho tagarela, como aquelas pessoas que gostam de contar histórias fazendo perguntas.

Frau Kortmann era uma mulher demais de chique, eu achava ela muito linda com aqueles olhos azul clarinho. Parece até que brilhavam, sabe como? A Mara sempre comentava: “Nossa Senhora Aparecida, coisa mais linda aqueles olhão da Dona Frau, né?”, “Com esses olho azulzão dava até pra ser artista de cinema. Já foi ver filme de cinema? Aparece as carona das pessoa como fosse numa televisão bem grande.

Essa estrutura deixa o livro bem-humorado, estimula a memória afetiva e convida o leitor a formar a árvore genealógica de Frau Homera Kortmann com as peças tortas que a autora oferece. Ler Nossa Senhora D’Aqui é como folhear um álbum de família e ouvir as pessoas das fotos contarem suas memórias.

Ler Nossa Senhora D’Aqui é como folhear um álbum de família e ouvir as pessoas das fotos contarem suas memórias.

Livro e caleidoscópio
Luci Collin tem uma vasta produção na poesia e nos contos. Nossa Senhora D’Aqui é o seu segundo romance. A narrativa tem aquilo que caracteriza a obra da autora como um todo: o experimentalismo na linguagem. As palavras são ingredientes que a curitibana utiliza sem formalismos, numa escrita que combina o complexo e a naturalidade.

Ao longo do romance, a impressão é de que a imagem de Frau fica mais afastada. A senhora parece ser um vulto na memória daqueles que a conheceram. No texto fragmentado, as diversas vozes dos personagens se embaralham e confundem o leitor em qualquer tentativa de compreensão mais apressada — em contraste com a maior parte dos relatos, um trecho do livro é narrado do ponto de vista de uma mosca. No entanto, o fragmento enriquece a história. E também ajuda a contá-la. A escritora ainda usa jogos de linguagem, brinca com a pontuação, com o desenrolar das frases, construindo uma personalidade da narrativa.

Eu nunca fui pra Nuiórq nem numa ópera nem num desfile de modas nem pra Búzios nem conheço aqueles vinhos da carta nem sabia que verniz é mais caro e nem sei a diferença entre tressê, fricassê e dégradé e nem tenho nada contra aquela toalha meia lilás, achei que combinada com os vasos e os quadros do ambiente, mas ela disse que não: está exagerado.

Em meio a todos esses recursos, a autora encontra espaço para metalinguagem, para reflexões sobre texto. Nas epígrafes, nas primeiras linhas do livro, no epílogo, Luci parece estar conversando sobre as coisas que escreve. E nas páginas finais, Nossa Senhora D’Aqui extravasa: apresenta um F.A.Q (Frequently Asked Questions), listando possíveis questões comuns sobre o livro. Uma forma divertida de prever um incômodo do leitor com a narrativa irregular, zombar de uma eventual insatisfação com o conteúdo apresentado, ou até mesmo da expectativa de uma escrita formal, de um livro feito de peças facilmente encaixáveis.

Se eu fizer uma lista dos personagens, marcar com flechinhas quem vai pra onde e faz o quê, consigo esboçar uma estrutura decente entre as partes do livro?

Uma família daqui
Os limites do mundo no romance de Luci Collin são Aqui — onde vivem os personagens — e Lá (qualquer lugar de onde tenham vindo seus antepassados). Já nos primeiros parágrafos, um dos narradores começa a introduzir informações sobre a colonização do Brasil.

Aqui havia muita terra. Lá não. Lá os tempos eram difíceis. Aqui tinha muita abundância, diziam, propagandeavam. Comida e trabalho. Lugar bom pra se ter e criar os filhos. Muitos vieram, então. Muitos mesmo.

E entre os imigrantes que vieram de Lá, está Frau Homera Kortmann. Os relatos dos personagens tornam a protagonista muito próxima de figuras familiares comuns. Em uma passagem do livro, um neto da senhora alemã lembra que gostava de observar a avó na cozinha. Ela tinha uma coreografia própria ao cumprir seus rituais. Frau pode ser nossa vizinha, nossa avó, a bisavó de um amigo.

Sempre observei muito. Quando a vó morreu, descobri que eu sabia cozinhar as batatas e moer o milho eu sabia, porque havia observado como ela preparava a comida, onde estavam panelas e coisas dali. Como se movimentava pela casa em ordens e tempos, onde ela guardava as chaves.

A “Nossa Senhora”, ao mesmo tempo em que remete a certa religiosidade nas famílias e na origem “d’Aqui”, pode representar a figura da matriarca. Talvez seja uma forma de homenagear as mulheres que ajudaram a escrever a história da região.

No texto das orelhas do livro, o professor e tradutor Caetano Galindo se dirige ao que chama de “contingente descabidamente grande de leitores que ainda não conhecem essa literatura”. Essa deve ser mesmo uma preocupação. Luci Collin precisa integrar com mais frequência a lista de escritores paranaenses dos quais costumamos nos lembrar e ler. O leitor que quiser se perder nesse passeio vai encontrar humor e inventividade.

Nossa Senhora D’Aqui
Luci Collin
Arte e Letra
156 págs.
Luci Collin
Nascida em Curitiba, é poeta e ficionista com 14 livros publicados. Tem pós-doutorado em literatura irlandesa, trabalha como professora na UFPR. Autora de livros como Vozes num divertimento, Com que se pode jogar e Querer falar. Está presente em coletâneas como Geração 90 – os transgressores e 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, além de antologias internacionais. No ano passado, foi finalista do prêmio Oceanos — prêmio de literatura em língua portuguesa, com a obra Querer falar.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho