Pães encharcados

Conto de João Paulo Parisio
01/02/2005

Depois que os vidros do chevette, pelos quais agora desciam filetes caudalosos, tinham sido fechados, o cheiro característico e bom do estofado se acentuara. A chuva tamborilava na lataria, o que tornava o abrigo do carro ainda mais acolhedor para o menino com farda da escola. Sentia-se vagamente sujo e esfaimado, mas a serena convicção de estar na iminência de aplacar a fome tornava a espera tolerável apesar da obscura perspectiva de tomar banho gelado quando chegasse em casa. Antecipou o cheiro e a visão dos pães franceses fumegantes, o gosto, a textura, o calor. Vigiava ansiosamente a entrada da padaria espremida entre sobrados decrépitos, por onde seu pai sumira, e por onde tornaria a aparecer. Compunha na mente a sua volta: atiraria-se da padaria para a rua e a atravessaria a passadas largas, cruzaria a pracinha redonda, vazia entre os bancos, e enfim mais esta rua, chegando ao carro do lado de cá. Aí abriria a porta, num só movimento atiraria delicadamente o saco de papel no seu colo, tomaria lugar ao volante e bateria a porta, aí acionaria a ignição, e, já com o carro ligado, trepidando parado, estenderia a mão até o saco, retiraria dele um pão dourado e crocante, repartindo-o e entregando-lhe uma metade. Relancearia-o com carinho ou simpatia nesse momento. A própria metade ele trincaria com os dentes, seria muito provável que alisasse o cabelo com as duas mãos, puxaria o pão e passaria a mastigar o naco que ficasse na boca enquanto o chevette começava a mover-se ao comando de seus pés e mãos.

De repente o menino se preocupou com a possibilidade de que os pães se molhassem, mas descartou-a logo. O pai não o permitiria, naturalmente. Retomou a espera, a doce tocaia. O tempo chegava a distender-se um pouco. Enfim, a recompensa de testemunhar o exato instante em que o pai surgiu, o saco de papel na mão. Analisou brevemente a situação, e, verificando que a chuva não amainara, atirou-se em seu interior, curvando-se para oferecer-lhe apenas as costas, a nuca e o cocuruto, protegendo os pães junto à barriga. Da beira da calçada, o que o menino omitira em sua pré-constituição, olhara para os dois lados antes de atravessar. Atingida a pracinha, o que o menino não previra, suas passadas se encurtaram, cautelosas, certamente porque o piso estava escorregadio. À margem da segunda rua, olhou novamente para os dois lados, mas no meio da travessia um estampido abafado e agudo fez um furo redondo na cortina de rumor da chuva, e outro. O menino, acostumado a de casa ouvir atentamente os tiros das caçadas do pai com seus parentes e empregados, bem como a soltar fogos no São João, não teve dúvida: era arma de fogo.

Seu pai cambaleou, arqueou-se de modo estranho e veio ao chão. Assim que venceu a paralisia de que se viu tomado, o menino saltou da morna cápsula de metal e vidro para a rua fustigada de chuva e vento, e acudiu na direção do pai, mas homens que tinham aparecido de todos os lados o detiveram e o afastaram dali. Não a tempo de impedi-lo de ver o pai caído de borco no asfalto e alguns pães, que tinham rolado para fora do saco, encharcados de sangue.

João Paulo Parisio

É escritor e poeta.

Rascunho