É curioso que apesar da extensa produção – são mais de sessenta livros ilustrados – cuja marca é a variedade de técnicas e estilos, o traço de Fernando Vilela seja facilmente reconhecido. Para o artista paulistano, cada livro é “um novo mar que se explora”, não apenas em relação às histórias que deseja contar, mas principalmente no que diz respeito à forma que utiliza para materializá-las.
Artista plástico nascido em 1973, Vilela ilustrou seu primeiro livro infantil, um conto de Marina Tenório, em 2002. Quatro anos depois ele expandiu a experiência criando seu próprio livro ilustrado: em Lampião & Lancelote (Cosac Naify), sucesso de vendas e crítica, o autor une estes dois personagens e os universos da idade média e do sertão na história e na forma, trabalhando com carimbo e xilogravura na composição das imagens, e com a sextilha do cordel e a narrativa épica no texto. Desde esta estréia vieram diversos livros, temáticas e técnicas: o evento de 2004 no oceano Índico inspirou Os heróis do tsunami (Brinque-Book, 2011); animais invadindo uma grande cidade são o centro da ação de Aventura animal (DCL, 2013); e as relações humanas vistas a partir da perspectiva de dois jovens em lados opostos de uma guerra no Oriente Médio são o foco de Caçada (Scipione, 2012).
Em cada obra, Vilela combina diversas técnicas e materiais — carimbo, gravura, pintura, nankin, desenho e finalização digital são alguns exemplos —, não só em busca da melhor forma para representar cada história, mas procurando novos caminhos para se pensar o livro ilustrado e explorar a relação entre texto e imagem, movimento que ele destaca no ramo da publicação infantil e juvenil. Na entrevista a seguir, o artista reflete sobre seu processo de composição, o mercado editorial e a leitura muitas vezes rasa da ilustração em uma época dominada pela imagem.
• A utilização de diversas técnicas e materiais passa a idéia de que a experimentação é importante para você. Como explorar ou experimentar no texto, na palavra, tanto quanto na imagem?
Cada livro é uma nova aventura, um novo caminho que se desbrava, um novo mar que se explora. Cada história tem a sua cor, sua linguagem, tem um espaço específico em que ela acontece, e isso se materializa no formato horizontal, vertical ou quadrado do livro. Como gosto de experimentar, acabo utilizando diversos procedimentos plásticos nos livros, mas sempre pensando na significação que eles têm como linguagem na relação com o conteúdo da narrativa. Por exemplo, uma história que se passa no Japão pede uma técnica como o nanquim ou a própria gravura em madeira, que é tradicional da cultura japonesa. Cada livro é um novo jogo de linguagem entre texto e imagem.
• Até que ponto é necessário ter em mente o público-alvo (infantil) durante o processo de criação?
Quando me vem a idéia de um livro ou quando começo um novo projeto, geralmente eu não penso no público. Com certeza tenho em mente que vou dialogar com o público infantil, mas também com leitores de qualquer idade. O livro é uma obra literária, uma obra de arte, e não tem idade! Pense em uma avó que leva uma criança ao museu, ou o pai que leva um filho adolescente — não existe idade para se apreciar arte. O que permite uma experiência estética da criança em um museu é a mediação do adulto que está com ela, e muitas vezes é a criança que provoca no adulto uma experiência estética nova por sua relação imaginativa com a arte. Com o livro ilustrado é a mesma coisa. Obviamente tenho consciência de que estou dialogando com jovens e crianças, mas não me preocupo com eles, e sim em ser coerente com a minha invenção, talvez com o humor da minha criança interior. De certa forma, às vezes acho que me torno criança ou adolescente quando escrevo e ilustro livros. Mas o que tenho certeza é que jamais conseguimos escapar do que pensamos e sentimos do mundo na nossa expressão estética. Inevitavelmente isso é impresso nas histórias, na caracterização dos personagens, na escolha dos temas — direta ou indiretamente.
• As ilustrações no livro infantil não são meramente “ilustrativas” do texto. Como se deve “ler” e apresentar as ilustrações neste suporte para as crianças?
No livro ilustrado, tanto o texto quanto a ilustração são autorais. Existem livros com muito texto e poucas ilustrações, onde as imagens pontuam a narrativa, mas o livro ilustrado de que estamos falando é o Picture book. Neste modelo específico, texto e imagem estão em pé de igualdade e juntos contam uma história. A criança que não sabe ler muitas vezes não precisa de mediação, pois ela pode ler as imagens antes do texto — antes de serem alfabetizadas na palavra, elas são “alfabetizadas” na imagem. Creio que cabe aos pais e aos professores facilitar, entusiasmar a relação da criança com a imagem, talvez estimular a curiosidade da sua leitura. É uma pena que na medida em que as crianças crescem os livros vão deixando de ter imagens, e professores e pais também deixam de aprofundar esta leitura; então, outros gêneros, como a novela gráfica e o quadrinho, talvez passem a substituir o livro ilustrado. A educação do olhar é algo ainda muito fraco no Brasil. Nas escolas, e mesmo nas universidades, a cultura visual é pouco desenvolvida. É paradoxal que num mundo entupido de imagens, que transbordam de todas as mídias, a maioria das pessoas tenha uma cultura visual pobre e pouco crítica. Voltando aos livros, quando ficamos adultos geralmente achamos que as coisas são separadas: literatura é texto, imagem é arte visual. É uma pena que o livro ilustrado para o adulto não tenha muito espaço no mercado. Talvez os autores e ilustradores devessem “inventar” este gênero ou insistir mais nele.
• Labirinto no escuro é um exemplo forte em que as ilustrações não têm como objetivo representar ou retratar personagens ou ambientes — antes, refletem o aspecto psicológico dos personagens ou o tom do texto, por exemplo. Também em outros trabalhos seus, as técnicas e traços utilizados fogem da representação que se espera — fogem do óbvio e do “fofo” —, partindo para um sentido mais lúdico, ambígüo e carregado de referências. Em que direção sua ilustração caminha?
Ilustração é arte, e acredito que a boa arte não é literal e previsível, mas sim provocativa e instigante. Acredito mais no poder do território da ambigüidade do que no do manifesto, do literal. Desconfio de quem tem muitas certezas ou verdades. Nos meus livros talvez eu busque diferentes experiências nas imagens e na sua relação com o texto, às vezes num caminho mais instintivo, impulsivo, intuitivo; outras, mais pensado e calculado. Mas geralmente trabalho nesta dinâmica pendular entre o universo da subjetividade e o da materialização objetiva, pois é na matéria que se faz o livro. O desafio é a busca de um caminho próprio para cada publicação. Nem sempre conseguimos. Raramente acertamos a mão pra valer.
• Como muitos autores e ilustradores de obras infantis, você publica por diferentes e diversas editoras. Isso acaba sendo, de alguma forma, prejudicial?
De maneira alguma. É o contrário: temos grandes editoras no Brasil e cada uma tem a sua linha editorial. Antes eu trabalhava com muitas editoras, mas no sentido de experimentar e também de buscar diferentes parcerias. Hoje eu trabalho com menos editoras, mas cada uma delas recebe minhas propostas com grande abertura. Quando escolho uma editora, sei que o que apresento combina com a sua linha editorial. Acho que o autor de literatura adulta tem uma relação diferente, pois ele normalmente é publicado por uma única casa. Mas sua produção não é tão intensa como a de grande parte de autores de livros infanto-juvenis. Seria muito difícil uma editora dar conta da produção de um autor, com quatro ou cinco livros em um ano.
• Trabalhando na área há quase uma década, em que aspectos observa que editoras, autores e publicações de modo geral têm evoluído?
Para responder esta pergunta deveríamos escrever um livro, pois o cenário das publicações no Brasil e fora é bastante complexo. Mas o que posso dizer é que o livro infantil cada vez mais vem explorando diferentes caminhos. Lembro que na minha infância e adolescência não havia tantas publicações, líamos principalmente obras estrangeiras e poucos bons autores nacionais. Os livros começaram a ser publicados no Brasil com mais qualidade gráfica há pouco mais de duas décadas, apesar de termos grandes autores e ilustradores há muito tempo. Acho que o aumento da qualidade da indústria gráfica fez com que se pudesse fazer publicações com maior qualidade estética de impressão e acabamento. Por outro lado, a maior preocupação com design e com a qualidade das ilustrações, pensadas como arte, também fez com que nos últimos vinte anos a produção de livros infanto-juvenis no Brasil tivesse um incrível aumento de qualidade — não só aqui, mas no mundo todo, principalmente no Ocidente e em alguns lugares do Oriente. Há países — como o Irã, onde o livro ilustrado é a segunda grande arte, sendo apenas menos importante que o cinema — em que as publicações são de produção muito simples, pois a impressão deixa bastante a desejar em relação à grande qualidade dos artistas ilustradores.
• E onde o nosso livro infantil precisa melhorar?
Falta invenção tanto nos temas das narrativas quanto na linguagem da ilustração, do design. O que mais vemos são livros pobres, com textos pobres e ilustrações que não ousam nada e ficam no lugar-comum. É deprimente entrar em uma livraria e ver que a maioria dos livros não é original nem interessante. Nisso devemos melhorar muito.
• Em Os heróis do tsunami você conta que muitas de suas idéias de livro se tornam trabalhos de arte, e vice-versa. Além das idéias, o ato de narrar presente no livro contaminou de alguma forma seu trabalho como artista plástico? E que elementos das artes plásticas você incorporou recentemente para o livro?
No meu trabalho, a imagem nas artes plásticas e a imagem no livro sempre foi um ir e vir de marés altas e baixas. No primeiro livro que ilustrei, Ivan filho-de-boi, utilizei a xilogravura, que já fazia há onze anos, então a experiência da arte veio encarnar na experiência da arte no livro, da ilustração. Em outros casos os procedimentos que exploro no livro vão para o meu trabalho de arte, e vice-versa. O último livro meu que se tornou uma exposição foi Caçada. Ele murmurava dentro de mim há muitos anos, e no momento em que escrevi a primeira versão da história e comecei a desenhar fui criando gravuras que pediam para ser maiores, então de novo parei o livro e iniciei um trabalho plástico que culminou numa exposição com impressões gigantes. Foi depois dessa exposição que voltei para o livro. Então, atualmente os trabalhos se contaminam totalmente — a arte dentro do livro e a arte fora do livro.
• Apesar de dividirem a inspiração, a experiência da instalação “Tsunami” é diferente em relação ao livro: na primeira você cria um tsunami gráfico com as reais dimensões do fenômeno, também utilizando a técnica de gravura; entrando na instalação, o efeito no espectador é de estar no meio de um tsunami. E que efeito você busca nos leitores do livro?
Acho que no livro a apropriação do tsunami na narrativa vai para um caminho diverso da exposição. O livro dialoga com os reais tsunamis que ocorreram e com histórias verídicas em que bichos salvaram pessoas ao perceber a chegada do fenômeno minutos antes de a onda despontar no horizonte. Nesta narrativa busco sensibilizar os leitores sobre a relação que temos com a natureza, com os animais e com a própria experiência de destruição e reconstrução, que simbolicamente são os tsumanis interiores que vivemos. Acontecimentos e acidentes que podem ocorrer com cada um de nós não deixam de ser tsunamis. Desta mesma matriz simbólica nasce a exposição, operando com a idéia da experiência de transformação. Nesta mostra havia uma gravura de uma enorme onda que cobria as quatro paredes de uma galeria de arte. Mas uma parte desta instalação era sonora: gravei sons da cidade de São Paulo e solos de improviso do músico Mauricio Pereira, e mixei-os numa composição com trechos da famosa sinfonia de Debussy, La mer, de modo a criar uma enorme onda de 45 segundos. Na mostra, esta onda era disparada no momento em que um espectador entrava na sala e ativava um sensor de presença que dava o play na gravação. Tanto a experiência da exposição como a do livro provocam sentimentos e sensações diversas nos espectadores e leitores. Talvez o que eu busque nos meus trabalhos seja tornar visível da melhor forma possível, ou da forma mais coerente, minhas idéias estapafúrdias, tanto no livro-ilustrado como nos trabalhos de arte.