De um lado, temos O processo (1925), o famoso romance em que Franz Kafka nos apresenta a trajetória de Josef K., personagem emblemática da decadência moral aparentemente irracional por um crime inexplicado da parte do indivíduo diante do Estado. De outro lado, e posteriormente, em 1948, temos o filme Festim diabólico, de Alfred Hitchcock, que acompanha duas personagens, Brandon e Philip, que, sem qualquer motivo, matam um colega por prazer, pela suposta superioridade ao fazê-lo. Apesar de parecerem experiências estéticas desconexas, vemos em ambas como a opressão de um ser humano pode se firmar. Entre as perspectivas do romance e do filme, está Giovanni Episcopo (1892), o segundo romance de Gabriele D’Annunzio, que nos conduz através dos acontecimentos da trágica vida de um homem diante de forças maiores, sem qualquer sentido aparente.
D’Annunzio, escritor italiano prematuramente reconhecido em seu país e fora dele, escreveu esse segundo livro após o sucesso de Il piacere (1889), mas ousou ao seguir uma linha narrativa distinta dessa obra. Às vésperas do novo século, o romancista se afasta do decadentismo de figuras da poesia e da prosa simbolistas francesas, em voga à época, para se apropriar de princípios naturalistas e nietzschianos, criando na narrativa um jogo de poderes em que, claramente, o perdedor é o protagonista. A derrota do pobre Giovanni Episcopo, que dá nome ao livro, é declarada de início ao leitor, ainda que de forma sutil, de modo que essa não seja exatamente a surpresa almejada com o clímax, próximo ao fim da narrativa.
O que temos é uma espécie de depoimento policial (ou sessão de terapia?) em que apenas o depoente, o confessor tem a palavra. Portanto, podemos dizer que Giovanni teve para si só uma conquista: a de sua voz. A narração em primeira pessoa, característica de tantas obras controversas dos últimos séculos, é seu meio para autodefesa diante de um crime evidente. A exploração do crime e do criminoso de modo detalhado, em sua relação com os outros, é um traço que denota a apropriação naturalista feita por D’Annunzio, para construir uma narrativa que, ao longo da leitura, se mostra distante da lógica esperada.
Nesse sentido, a aproximação com o determinismo do qual muitos escritores ditos naturalistas, de Émile Zola a Aluísio Azevedo, se apropriaram é, de certa forma, indevida. Se, por exemplo, pensarmos n’O cortiço (1890) e o colocarmos em comparação com Giovanni Episcopo, as diferenças serão grandes e visíveis. Enquanto o primeiro romance atribui uma série de razões “científicas” relacionadas ao meio das personagens para justificar suas atitudes, o segundo apenas descreve as ações do protagonista sob seu ponto de vista, sem que entendamos de fato por que Giulio Wanzer, amigo que se torna uma espécie de carrasco, ou Ginevra, a esposa desejada por todos, o dominam tanto. À parte da relação feita pela crítica entre Wanzer e o super-homem nietzschiano (Übermensch), Giovanni parece apenas alguém consciente do seu estatuto de dominado, porém sem qualquer capacidade de se contrapor às vontades dos outros em relação a si. Não há, a princípio, qualquer explicação para sua condição por uma razão social ou até mesmo “natural”.
Pela ausência de lógica ou de razão explícita para a degeneração moral à qual Giovanni é submetido (ou se submete, a depender da leitura), podemos, inclusive, aproximá-lo da figura de Josef K., protagonista do referido O processo, de Kafka. Ele é, como Giovanni, um protagonista à revelia; podemos dizer que nenhum dos dois gostaria de estar no centro das ações as quais vivenciam. É importante ressaltar tal aspecto, afinal, se pensarmos na tradição romanesca até o século 19, a altivez do protagonista era uma constante, mesmo que ele sofresse diversos percalços ou acabasse morto, como Werther. No romance oitocentista, tornou-se possível, enfim, construir uma personagem que não tenha nada a ver com o protagonista de uma narrativa de aventuras medieval, próximo da imagem do herói épico. A ausência de virtude (e talvez de defeito) é uma característica possível para se definir Josef K. e, talvez, Giovanni Episcopo segundo eles mesmos. O absurdo da condição humana é, acima de tudo, a força motriz de suas vidas.
Dominador social
No entanto, em contraponto ao romance kafkiano, é possível vermos, em Giovanni Episcopo, ainda uma disputa que não chega à questão do indivíduo em relação ao poderio estatal, em um universo do proletariado, longe das determinações de uma polícia ou da lei. Giulio Wanzer, nesse caso, parece realmente simbolizar o Übermensch, superior a outros por seus próprios atributos naturais, de dominador social, porém somente em relação a Giovanni. Aí se encerra a dificuldade daquele que queira simplificar o enredo a ponto de caber numa “caixinha” de clichês naturalistas, como por vezes a crítica tenta fazê-lo. A todo momento, as outras personagens, independentemente do sexo, demonstram reconhecer o poder de Wanzer sobre Giovanni, bem como de Ginevra, mais à frente no enredo, sobre o marido. Poderíamos, então, inferir que somente o protagonista é aí submisso ao poder desse “super-homem”.
A única personagem a qual parece se situar em nível similar ao de Giovanni é o (suposto) pai de Ginevra, Battista. Sua posição é mais próxima daquela do estereótipo naturalista: alcoólatra, desempregado e idoso, encontra-se distante de qualquer autonomia, de uma afirmação de si. Humilha-se e age de acordo com o esperado de sua condição, de um ponto de vista moral. Inicialmente, Giovanni parece se relacionar com seu então futuro sogro por compaixão e talvez por conveniência, mas logo se vê infelizmente no mesmo nível, também denegrido por Ginevra. A aproximação, entretanto, permanece intrigante. Talvez seja ela, inclusive, a grande motivação para o desfecho dessa história. O assassinato de Wanzer por Giovanni parece ser o ápice de seu desejo reprimido de mudar sua condição, sentimento esse que cresce ao longo da narrativa, sem interferência de um locutor, ao qual o protagonista lança suas súplicas com frequência. No entanto, o que aparenta ser a vitória de Giovanni se torna ao fim sua derrota: termina em delírios, solitário, talvez em cárcere.
É notável que Giovanni Episcopo seja o oposto do que muitos poderiam pensar: certamente, não é uma narrativa menor, pouco elaborada de Gabriele D’Annunzio, nem uma simplória expressão das peculiaridades biográficas do escritor, sempre ligado ao exercício do sexo ou ao fascismo de Mussolini. Situa-se, ao nosso ver, entre a apoteose do Übermensch, encarnado seja em Wanzer, seja nos protagonistas do filme de Hitchcock, e o absurdo existencial de Josef K. O romance, enfim, se mantém em uma posição que atrai o leitor atual, especialmente aquele que queira se distanciar do estereótipo dado ao seu autor e à sua produção.
Para que essa leitura seja realizada, talvez o grande presente que o tradutor, Maurício Santana Dias, professor de literatura italiana da Universidade de São Paulo (USP), nos oferece é poder ler um texto de maneira fluida, com possibilidade de nos identificarmos com seu universo de significação. Certamente, esse é o grande mérito da recente edição do segundo romance de D’Annunzio no Brasil, em conjunto com a nota que o tradutor nos oferece ao fim. A esperança é que, diante da relevância do escritor italiano para a história e da permanência da matéria de sua literatura, o leitor se insira na narrativa de Giovanni Episcopo e vá além do que já se disse sobre o escritor, a fim de construir uma interpretação própria.