A frase é de Joseph Goebbels, mas traz uma reflexão que até hoje incomoda a elite e as altas cúpulas do poder: “Uma mentira muitas vezes repetida torna-se verdade”. A única estratégia, portanto, para evitar a injustiça é impedir a todo custo sua repetição, e tentar contar uma nova história — ou ao menos questionar a existente.
É assim, a partir da mera possibilidade de existência de uma mentira sedimentada pela repetição, que Deonísio erige a bela estrutura narrativa de Lotte & Zweig, uma biografia do possível, uma ficção do provável.
Não é coincidência que, no Brasil, instale-se em 2012 a Comissão da Verdade, organizada para descortinar fatos que ocorreram entre 1946 e 1988, justamente para evitar a repetição de histórias que ninguém se habilita a investigar. Por muito pouco a Comissão da Verdade não se debruçará também sobre as inúmeras inconsistências que cercam a morte de Stefan Zweig, ocorrida em 1942, fora, portanto, da abrangência da Verdade que o governo decidiu revelar.
Deonísio da Silva dedica-se então a essa tarefa, munido de ferramentas indispensáveis. Sua experiência com 13 livros já publicados presta-lhe auxílio. Sua história pessoal, com tese de doutoramento sobre os livros proibidos no Brasil pós-1964, valida sua escolha.
Entrelaçando ficção e uma realidade nebulosa, empoeirada pelo tempo, podemos recompor nas palavras de Deonísio os últimos pensamentos de Stefan Zweig e de sua silenciosa esposa, Charlotte Elizabeth Zweig, antes do duplo suicídio do casal. As cenas e os fatos corroboram a versão que ficou na história: a cama arrumada, o abraço final, as cartas de despedida e orientações post mortem. Afinal, assim é se assim lhe parece.
Em busca da verdade
Na Parte I, podemos acompanhar o raciocínio lógico do narrador-personagem, o próprio Stefan Zweig biografado, que revê seus passos e encaminha sua vida organizada e friamente a fim de antecipar a morte natural.
Numa época em que suicídios se propagavam como a última ratio de um inconformado ou de um idealista apegado a uma idéia fixa, era até bem fácil fazer o povo acreditar em rompantes de autoviolência.
Deonísio, porém, não compra a história fácil. Assim como Zweig em suas inúmeras e conhecidas biografias, ele parte em busca da verdade, já sabendo de antemão que esta lhe será eternamente fugidia. O autor então discorre sobre um Zweig determinado a interromper sua vida, um homem íntegro que combina o término de sua própria história, convencendo até mesmo sua mulher a deixar a vida junto a ele, como nos antigos ritos egípcios.
Na Parte II, o autor mostra sua verdadeira pretensão e começa a desmontar o castelo de cartas da versão oficial. Exibiu antes todo o convencimento de Stefan, apenas para pregar uma peça no leitor ao apresentar elementos que evidenciam outra história.
A dispensa dos exames e de investigações pela polícia e pelas autoridades foi apenas uma reverência aos mortos? Ou foi o resultado da impunidade, causada pela mera ausência de indícios de crime? Policiais que dispensam exames de corpo de delito em possíveis vítimas são apenas respeitosos? Não custa lembrar que até hoje parentes de presos e desaparecidos entre 1946 e 1988 pedem provas, exames e esclarecimentos.
Assim como reconstituiu as últimas horas antes do suicídio, Deonísio montou outras cenas prováveis. Uma unidade nazista atuando em plena capital brasileira, eliminando vozes importantes que desafinavam o contexto de limpeza étnica.
De forma perspicaz, a chave para a compreensão de Lotte & Zweig esconde-se no fim do livro: “Como estamos no Brasil, ninguém toca nos papéis. Parece que aqui ninguém tem vontade de saber, tem é vontade de contar, pois saber dá trabalho e é melhor cada um inventar sua versão”.
O que há em Lotte & Zweig é exatamente isto: um punhado de versões, um feixe de hipóteses que, por capricho do destino, permanecerão mistério. Deonísio não pretende desvendar um crime acontecido há 70 anos. Nem poderia. Limita-se apenas a respeitar os mortos, agindo como quem estima: desconfia, contesta, aponta, relembra, e atrapalha a versão que se acomodou na caverna escura do tempo.
Voz aos mortos
Para leitores interessados, é possível conhecer um pouco mais de Stefan Zweig. Através de seus textos e palestras temos o exímio e famoso escritor que se refugia do Holocausto em Petrópolis, assim como tantos outros o fizeram no interior das Minas Gerais ou nas haciendas argentinas.
Sabe-se bem menos de sua esposa Lotte, a quem o mundo não concedeu uma voz tonitruante e respeitada como a do marido. Lotte não escreveu nada. Nem se despediu da vida por escrito. Quase impossível, portanto, a missão de encontrá-la.
Lotte é silenciosa. Suicidou-se por combinação? Suicidou-se ao ver o marido inerte, por um amor que não suportava separação? Ou, iríamos além: suicidou-se?
Deonísio é o único que a respeita o suficiente a ponto de conferir-lhe alguma voz, vesti-la de protagonista, atribuir à sua morte a possibilidade de um sufocamento covarde contra o qual não pôde lutar, o corpo inerte agarrado ao marido morto, numa remontagem empobrecida e barata de Romeu e Julieta.
Sem carta assinada de próprio punho e ante a ausência de outras evidências, todas apagadas pelo tempo e pela falta de interesse, Lotte apenas morreu e acredita-se que tenha sido combinação. Pronto, isso basta para seguir adiante.
É nessa versão que ainda acredita, firmemente e até hoje, Alberto Dines, que não hesitou em criticar publicamente o autor por voltar ao tema sensacionalista já explorado outrora. Talvez Dines não se comova com aqueles que, através da literatura, pretendem revirar baús e quinquilharias de pouco valor na memória popular. Talvez Dines não se incomode em ser mais uma voz a repetir a versão sedimentada. Por simples inocência? Desânimo, descrença? Afinal, levantar hipóteses não ressuscitará os mortos, nem punirá agora quem quer que seja o culpado — se ainda vivo.
Calar a mentira
O autor é extremamente habilidoso. Caminha entre as brumas vespertinas de Petrópolis. Sobe os degraus da Casa Stefan Zweig em Petrópolis. Às vezes, não dá para divisar um palmo adiante do nariz. Às vezes é necessário usar os demais sentidos e a intuição para ver além do que os olhos registram. Corajoso, Deonísio abre a porta dessa casa e escuta ruídos e sussurros dissonantes numa história que parece muito fácil, muito exata, conveniente demais.
Há quem se arrume para morrer? Há quem se abrace para morrer junto? Ou isso parece uma cena shakespeariana, montada para que todos apreciem o teatro?
Tudo o que, sendo humano, é bonito demais faz com que eu desconfie. Feito no jogo: desconfio!
O humano é trágico, e apenas a ficção é bela e emocionante. Vou além: apenas nas ficções baratas o final é feliz.
Por pouco Whitney Houston e Marilyn Monroe não foram aquinhoadas com a versão conveniente: mataram-se, inconformadas com a velhice e com o desprezo público. Versões possíveis. Felizmente, nos dois casos, exames confirmaram a hipótese contrária, aquela em que ninguém preferia acreditar.
Não houvesse internet, não existissem celulares e câmeras, ninguém teria visto a execução sumária e grotesca de Saddam Hussein. Sem os meios de comunicação, poderia ter chegado apenas a notícia de seu suicídio, e a justificativa de que estivesse triste e decepcionado com a derrocada de seu império e de seu way of life.
Mas, no século 21, fica difícil esconder fatos, que se espalham feito folhas ao vento. Fica difícil propagar a mentira tão rápido como imagens, vídeos, relatos. Não houvesse a comunicação instantânea sobre o globo terrestre, teria sido fácil sustentar a versão limpa do funeral marítimo e respeitoso de Bin Laden, teria sido simples esconder a matilha de lobos líbios que cercou Muamar Kadafi.
A verdade não é bonita. E nisso Deonísio marca um ponto. A verdade é feia e suja e difícil de engolir. Histórias bonitas não se acomodam entre biografias, mas entre romances femininos.
Investigar é uma tarefa inglória. Exige o germe da suspeita, da crítica, da inconformidade. A investigação desarruma a cena do crime, planta dúvidas. Zweig e Lotte não tiveram filhos inconformados, que exigissem a revelação da verdade. E o povo não quer conhecer a feiúra que grassa sobre seu território: “Os brasileiros não querem saber de guerra. No meio de tanta carnificina, eles escolheram outros temas com que se preocupar. E um deles, imaginem, foi a falta de cabelos”.
Tempus fugit e a mentira, para que não se torne verdade, precisa ser calada. Para isso, Deonísio levanta sua voz, empunha a única arma possível e cria um universo alternativo. Para isso a Comissão da Verdade precisará, assim como Deonísio, se inconformar com histórias da carochinha que um povo festivo, crente e emotivo como o brasileiro adora escutar.