De tudo que já foi dito sobre a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) e que, diga-se de passagem, não é pouco, ainda soa insuficiente o quanto vidas foram estraçalhadas e interrompidas mesmo para quem escapou vivo do terror perpetrado pelo Estado. Há outras formas de morrer e uma delas é estando vivo em um estado de letargia ou de descolamento do que se foi um dia. A protagonista de Depois de tudo tem uma vírgula, de Elizabeth Cardoso, toma esse caminho, refazendo sua versão do horror da ditadura, mas sem pretensões de ser o relato único e verdadeiro sobre o período.
Na contramão de um pensamento recorrente, o de glorificação de quem sobreviveu à ditadura e por isso ganha status de herói, o romance apresenta o avesso da história — uma vida aos cacos e que gravita ao lado de outras vidas não menos ordinárias também atingidas diretamente pelos crimes da ditadura. Não há nada de heroico para esses personagens que conseguiram escapar, porque nunca mais tiveram suas vidas refeitas. Logo, leitor, não espere mais um livro de revisão da ditadura, ainda que nesse momento seja necessário e se deseje combater narrativas que tentam propalar outras versões sobre os fatos, suavizando o que não tem redenção. A ditadura está lá sim, mas a manufatura do romance é feita de outra matéria. Depois de tudo tem uma vírgula é um livro sobre a própria literatura ou o que ela pode efetivamente fazer. Mas é claro que o tema de fundo escolhido tem força e não deve ser minimizado.
Realidade e ficção
No centro da narrativa de Cardoso estão Rita de Cássia Rizzo e seu irmão Diego às voltas com a publicação de seu primeiro romance em que ele recupera a experiência da família após a prisão da irmã pelo Estado. Logo, temos um livro em que um dos personagens escreve um livro baseado em “fatos reais”, levantando a discussão acalorada no contemporâneo sobre realidade e ficção, autoficção e romance biográfico. Nos termos do professor e crítico Luiz Costa Lima, o ficcional não é simplesmente a imitação do real. Em vez disso, coloca-se de maneira crítica em relação às “verdades” estabelecidas. É exatamente o faz tanto a personagem Rita de Cássia diante dos originais escritos pelo irmão, que lhe pede ajuda na revisão, ao que parece esperando uma validação da protagonista de seu romance, quanto Elizabeth Cardoso, ciente de que muito já foi escrito sobre a ditatura e que nem mesmo assim é possível atingir em totalidade uma suposta realidade.
Em uma segunda chave interpretativa, o romance também põe em causa outro debate presente na trajetória da crítica literária, mas que ganha cada vez mais tônus, o de quem pode narrar a experiência do outro. Neste segundo livro ou no livro que se anuncia dentro do romance de Cardoso, Rita de Cássia é exposta como chamariz da obra por ser uma sobrevivente da tortura. Há uma passagem na narrativa, bastante incômoda aliás, sobre as roupas que deveriam ser usadas em ocasião do lançamento do livro, que aspecto Rita de Cássia deveria aparentar de modo que fosse convincente com a personagem torturada. Em seu primeiro romance, Diego Rizzo conta a história da prisão da irmã, seu périplo por clínicas psiquiátricas, o passo para a dependência química, e os caminhos tortuosos sem mais conseguir se reenquadrar na vida em sociedade. Rita de Cássia tem trabalhos precários e alterna momentos de lucidez, graças à medicação controlada pela família, e de insanidade enquanto vaga pelas ruas e faz pouso em uma rodoviária catando bitucas de cigarros. No momento do livro, no entanto, Diego é o único parente vivo e faz o papel de tutor da irmã.
A lucidez da narradora de Cardoso, no entanto, vai na contramão dessa imagem de transloucada do romance do irmão. A firmeza como narra, o cinismo e a ironia diante da consciência de que sua história está sendo cooptada pela literatura do irmão abrem uma brecha para o leitor se questionar se existe uma versão verdadeira, como questionou Gilles Deleuze e Félix Guattari em Kafka: por uma literatura menor. Ainda que Diego tenha sofrido pela prisão da irmã, pelo esfacelamento da estrutura familiar desde então, seguido da morte dos pais e a responsabilidade de tutelar a irmã, ele não é a ponta principal do novelo, não é o personagem que pode ser visto como herói.
Enquanto Diego ganha relevo no texto, porque é a partir da publicação do seu livro que o romance avança, a estudante universitária Maria Cecília faz as vezes de seu duplo, porque ela também espera capturar a história de Rita de Cássia para um trabalho da faculdade. Ou seja, são dois sujeitos ouvintes que esperam escrever sobre Rita de Cássia, ao passo que esta percebe com plena lucidez o quanto sua história é invadida e utilizada por eles. Nesse ponto, em certa medida, a professora de teoria — Elizabeth Cardoso dá aulas na PUC, acompanha a escritora, quando observamos o inegável trabalho de constituição da voz da narradora e das cenas de questionamento da crítica, da literatura, da memória e da própria história, aludindo ao que diz Kafka em O processo: “Não é preciso considerar tudo como verdade, é preciso apenas considerá-lo necessário”.
Também parece incontornável citar as ressonâncias canônicas trazidas por Cardoso, como a própria ideia de narrar o outro, presente na arrogante postura de Rodrigo S. M. em A hora da estrela, de Clarice Lispector, bem como o título do livro que inevitavelmente nos leva à Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, iniciado de modo incomum por uma vírgula.
Em Depois de tudo, no entanto, essa vírgula, cuja explicação aparece no decorrer da narrativa e mantenho o segredo para surpresa do leitor, pode ter algumas interpretações vinculadas também à ditatura, como se o sinal de pontuação marcasse que estamos diante da continuidade de uma memória que se faz de muitas vozes, aos caquinhos como a vida de Rita, ou de resíduos, feito as bitucas de cigarros catadas na rua. Nesse sentido, a memória da protagonista interpelando o livro do irmão opera como as memórias subterrâneas a que se refere o historiador Michael Pollack, essas memórias que se contrapõem à memória oficial dos grupos dominantes e que “prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados”.
Mulheres torturadas
Em listagem que circulou recentemente nas redes sociais, realizada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), as narrativas literárias sobre a ditadura civil-militar brasileira somam, entre os anos de 2010-2019, 43 títulos. No mesmo intervalo de tempo, entre 2000-2009, esse número era dez e decresce conforme voltamos nas décadas anteriores até chegarmos ao ano de 1967, quando apenas dois livros sobre o tema foram publicados.
Entre este ano e 2009, apenas nove dos 47 livros publicados são de autoria de mulheres. É neste cenário, em franca mutação desde 2010, que Depois de tudo tem uma vírgula é publicado. Elizabeth Cardoso se soma, portanto, às autoras de diferentes gerações e regiões do país que têm feito dos resíduos da ditadura matéria literária, como Maria Valéria Rezende, Claudia Lage, Sheyla Smanioto, Adriana Lisboa, Sônia Regina Bischain, Rosângela Vieira Rocha, Maria José Silveira e, mais recentemente, Beatriz Leal e Anita Deak.
A questão de gênero é amplamente explorada pela protagonista. Rita de Cássia descreve a normalização da violência sexual praticada pelos militares, a recorrência de estupros que viveu encarcerada, a abjeção do corpo após a descoberta de uma gravidez na prisão, além do perfil de outras jovens presas na mesma cela em que ela. Enquanto Rita desconhece o motivo da sua prisão e não sabe como sobreviveu, o namorado da juventude, preso na mesma época, escapa sem maiores danos e reconstrói a vida, forma família, tem filhos de diferentes parceiras. A constatação da personagem reitera o que já sabemos, a ditadura foi mais feroz com quem ela julga serem os mais fracos, entre eles, o corpo feminino.
Por fim, Rita de Cássia sabe que nenhum depoimento, nenhuma entrevista, nem mesmo a experiência familiar do irmão, são capazes de relevar na forma do romance ou no discurso jornalístico o que foi a tortura e especialmente a tortura contra mulheres. “Nunca soube explicar, nunca encontrei as palavras certas, o vocabulário correto, os termos adequados, não há uma sintaxe para desempenhar essa função. As línguas foram feitas para expressar o belo, mesmo quando os poemas tratam de temas áridos é a beleza que sobressai e nos revigora. Mas para a tortura não há expressão possível”, diz.