Ouro de veio esgotado

Em "Menos teu nome", Lucas dos Passos consegue fazer metalitetura e poesia coloquial-materialista sem ser previsível
Lucas dos Passos, autor de “Menos teu nome”
26/08/2017

Conta Paulo Vizioli, tradutor de Yeats, que quando o irlandês inseriu em um poema sobre Helena de Troia a referência ao estado “ofegante” de sua amada Maud Gonne após um passeio no parque, um leitor exigente, o escritor George Russell, viu nisso o exemplo de “como a boa poesia pode ser arruinada pela intrusão do transitório e do incidental”. Mas seria justamente por aqueles arquejos de Maud Gonne que a poesia iria refazer-se, mais uma vez entre tantas, das inevitáveis recaídas na convenção.

Hoje, contudo, após a grande invasão do “transitório e do incidental” na arte da segunda metade do século 20, a questão se coloca em outros termos. A transgressão virou norma, e a poesia dita “do cotidiano” passeia em todos os parques. Difícil é extrair ouro desse veio esgotado, sem recair em epigonismo.

Em Menos teu nome, Lucas dos Passos vence a luta da previsibilidade. As primeiras seções do livro são metaliterárias, mas, se não chegam à dimensão ontológica que Merquior apontava em João Cabral, possuem o mérito de conjugar reflexão de linguagem com flagrante lírico: veja-se, por exemplo, A delicadeza do chute, que tanto pode ser um poema sobre futebol quanto sobre a própria arte do soneto — e ainda acena com a subjetividade sonegada pelo título geral, com o sobrenome do autor (Passos) apropriado em verso (“passo justo”), procedimento aliás frequente no livro.

A contraditória relação com o passado literário que Harold Bloom teorizou como “angústia da influência” não apenas ocorre largamente, como é de se esperar em uma estreia. Já no poema de abertura dá-se o que Bloom chama tessera ou complementação antitética — o novo poeta parte de seu cânone para estabelecer uma dialética, contraditá-lo:

mesmo que eu quisesse (e, acreditem,
um dia eu quis), não poderia
ser só joão ou contentar-me
com a impura ana.

ana traficava entorpecentes
no peito e mantinha a britânica
cabeça lúcida. joão,
franzino, media a espessura
das vidas pela sua ausência.

artista de um poema sem vírgulas,
ela fingia um verso frouxo,
e ele via o horizonte pelo
seu avesso, seu oco: insosso. 

certo dia, os dois se meteram
numa fresta de minha estante e
geraram, sem que eu percebesse,
errante, simétrica, joana.

Ser de linguagem, uma leitura retrospectiva do livro, com atenção a epígrafes e outras pistas, desvela que essa Joana é um somatório inusitado de João Cabral e Ana Cristina Cesar. Do primeiro, traz a mimese estilística da seca (“vidas pela ausência”), de matriz antilírica (“horizonte pelo/ seu avesso”), o que encontra correlato até na figura empírica do poeta (“franzino”); da segunda, a “britânica/ cabeça lúcida” (referência ao período de residência Ana C. na Inglaterra, e sua atividade de tradução), com o “poema sem vírgulas” que “fingia um verso frouxo” — menção à suposta atitude calculada da autora em relação à poesia marginal.

Encontro amoroso
Após bons poemas com aquela ambiguidade entre metaliteratura e lirismo a que referimos, a angústia da influência volta com força na segunda seção do livro, Enredo e sombra para a tarde. Agora vem sob forma de outra das “razões corretivas” enunciadas por Bloom: a apophrades ou “retorno dos mortos”. Uma série de oito poemas, apenas numerados, faz pensar em encontro amoroso (“e nossos os corpos se fundem”), mas necrólatra (“morta ressuscita e ressoa”) e algo narcísico (“as mãos se ocupam do prazer/ solitário”), de que restará apenas “em derrota úmida/ a secreção inconsciente”.

Essa amada de “mil estupros tardios”, ao contrário de Ana Cristina Cesar — que, como se sabe, jogou-se de uma janela em Copacabana — contempla os “dois três” que “saltam/ do parapeito” e reclama “da falta de paz momentânea/ com os olhos suados salvos/ instantes de desolação”. É ainda Joana, portanto: não se suicida, antes observa o caos com certa distância cabralina. O poeta se converte em seu amante, a quem não escapa a manhã que corre “em dolorosos rios” — dois signos importantes para Cabral, revistos em potência de dor.

Inventiva no campo formal, pelo uso invulgar de parônimos (quando a poesia marginal abusara do trocadilho), rimas toantes (que em Cabral chegam a cansar) e cavalgamentos de corte certeiro (um recurso banalizado pela poesia práxis), no campo temático a escrita de Lucas dos Passos caminha rente, sem desviar-se do materialismo — seja ele o “corporal” de Ana Cristina Cesar, seja o “mineral” do mestre pernambucano. O sentido último de suas antíteses é a síntese totalizante. Assim, não admira que afirme, como arremate da segunda seção: “nos corpos estão nossas covas”. Isso antecipa o que será o final do próprio livro, quando, no soneto Malone morre (título de Beckett, em famosa tradução de Leminski), não se divisa qualquer horizonte metafísico — “E depois? Depois nada” —, niilismo que atinge toda memória, literatura inclusive: “o passado só volta demolido”; “vida e livro só deixam a falida/ crônica de uma morte anunciada”.

Tudo isso faz muito sentido na já cansada linhagem coloquial-materialista que domina a poesia brasileira, pelo menos desde Drummond até Cabral e pósteros, com largo respaldo na crítica universitária. Contudo, ao menos no plano “demasiado humano” da literatura, o próprio Lucas dos Passos é a contraprova de sua tese: os mortos vivem na constante recriação que lhes fazem os autores vivos: se o título (Menos teu nome) é de Leminski, se João Cabral e Ana Cristina fundem-se em Joana, há também Drummond na quinta seção do livro, Mal das coisas, em um poema como Recusa da poesia, de revisitado gauchismo. Antes, na quarta seção, Em teu nome, quando o poeta faz lírica amorosa propriamente dita, há temas colhidos em Machado de Assis, Miguel Marvilla e enxertos de outras vozes. Voltando à expressão do autor: “mil estupros tardios”.

O acaso é o tema central da última seção do livro, Um ano, quando se articulam as linhas anteriores — metaliteratura, sensibilização da “poesia de coisas” e lirismo do cotidiano — para espreitar a desordem ínsita no fluxo do tempo. A cada mês correspondem três sonetos, como se cada peça cobrisse um período de aproximadamente dez dias. O tour de force brinca muito com a estrutura da forma fixa, compondo sonetos em dísticos, duas quadras, tercetos iniciais etc. — o que deixa claro a marca de um poeta como Paulo Henriques Britto na dicção de Lucas dos Passos. Nem poderia ser diferente: Britto, com seu materialismo feliz e invenção formal, é o poeta contemporâneo mais bem realizado na linhagem que Lucas pretende para si.

O círculo parece fechado, não fosse pela concessão política em dois poemas do mês de agosto. É quando o autor deixa de lado a ensaiada “metafísica do acaso” e adere ao laudatório, referindo-se diretamente ao episódio do impeachment-golpe: “Mas, se a Dilma cair, observe bem,/ esteja certa de que cai bem tarde:/ como segurou tão viva e ativa/ quem teve suas penas militares?”. Diante do passo em falso, valem pouco as rimas toantes de Cabral (tarde/militares), e menos ainda o recurso à interrogação do título — De ocasião? —, para transferir ao outro — o mestre ou o leitor — a datação do poeta.

Se o fluxo das coisas é arbitrário, se o acaso preside o tempo, todo dirigismo cai por terra, à esquerda ou à direita. O poeta mantém um olho vigilante para a própria criação, e chega a se indagar: “Como nosso esforço de errar o mundo/ pode condicionar o que é ambíguo/ para não ser equívoco e — arrisco,/ com olhos bem fechados, surdo-mudo?”. Muito menos poderá a crítica responder a essa pergunta: voltando ao caso de Yeats, diga-se apenas que certas damas ofegantes ainda desmerecem Helena de Troia.

Menos teu nome
Lucas dos Passos
Cousa
106 págs.
Lucas dos Passos
Nasceu em 1989, em Vila Velha, e reside em Vitória (ES). Doutor em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo, com tese sobre Paulo Leminski, atua como professor do ensino superior. Menos teu nome é seu primeiro livro, contemplado em 2015 por edital da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo.
Wladimir Saldanha

Nasceu em Salvador (BA) em 1977. Publicou, em poesia, Culpe o vento (2014), Lume cardume chama (2014), Cacau inventado (2015), Natal de Herodes (2017) e Arte nova (2021). Organizou e traduziu para o francês a antologia Poesia brasileira em contracorrente (2018), bem como a primeira antologia de poesia belga publicada no Brasil, A tentação das nuvens (2021). Os poemas aqui publicados são do livro inédito Aos que se perdem com as chaves.

Rascunho