São conhecidas as diversas facetas de Oswald, como poeta, polemista, romancista, dramaturgo, vanguardista, náufrago político, ponta-de-lança das vanguardas e dos movimentos artísticos. Também se destaca muito a sua própria personalidade: difícil, fascinante, contraditória. Ou seja: a obra-vida que Oswald também nos legou, e que não é pequena. Mas eu arriscaria lhe agregar outra faceta: o mitólogo. Mais do que isso, a meu ver, esse é o aspecto mais rico de seu legado, o grande Oswald, que amarra toda sua obra, justamente porque transcende o esquadro da literatura. A mitologia que Oswald criou nos manifestos, nas conferências e nos ensaios é aquilo que confere os contornos a seu testamento intelectual. Ela é a chave para compreendermos toda a sua obra, pois sendo esta inseparável da vida, está mergulhada do começo ao fim nas fontes indivisas onde se originam ficção e realidade.
Como diria Nietzsche, cuja hermenêutica da suspeita vai tentar implodir justamente esse mecanismo ilusionista, durante milênios o homem arrogantemente chamou de verdade, sobrenatural e conhecimento àquilo que não passava de ressentimento transfigurado de sua própria incapacidade de lidar com a mortalidade. Para ele, durante milhares de anos, o homem julgou que a manobra titânica de sua revolta contra a morte pudesse ser chamada de cultura, arte, civilização, religião, quando no fundo ela nunca passou de um dos sintomas mais cristalinos do ressentimento contra um imperativo que não é categórico, mas sim cósmico, vital. Além de Nietzsche, em um enquadramento mais de crítica da cultura do que em um sentido antropológico mais amplo, Benjamin também percebeu algo semelhante, ao delatar o resíduo de barbárie que sustenta toda obra civilizada. Oswald flagrou bem essa raiz. Pois não é outra a função que a razão lúdica, o fingimento, a anedota, a farsa, a bufonaria, a falta de caráter, no sentido macunaímico do termo, e a mescla de vida e arte operam em sua obra, para assim confirmar a essencialidade da mentira.
O lúdico e o messiânico
Abdicar da alma, viver sem substância, ser sem haver e sem ter: essa talvez seja a utopia matriarcal de Oswald, monarca de Pindorama, desalmado, sem-caráter, e por isso mesmo aberto ao mundo e à invenção do futuro. Porque se o Mito é o Nada que é Tudo, como dissera o maior poeta da língua portuguesa, é nesse registro que entra o mentiroso Oswald, glutão de meias-verdades, devorador de mentiras alheias e caçador de verdades-inteiras. Sem caráter, porém heróico, Oswald diz que compromisso e verdade são termos que gramaticalmente não concordam. Felizmente. Pois na terra dos bacharéis de anel de ouro e dedo mindinho em riste, espécie de El Dorado dos diplomados e dos diplomatas, a piada é mais profunda que a poesia, justamente porque ainda não se criou o mito da poesia nova, a visão de olhos livres que vai reinventar a poesia e inverter, por meio de uma saborosa lógica tupinambá, esse trompe-l’oeil entre o profundo e o superficial.
Para tanto, há que se devorar a alta e a baixa culturas, a poesia e a piada, a santidade e a pornografia, a floresta e a escola, a igreja e a senzala, o totem e o tabu, o índio e a tecnologia, pois desde a deglutição do bispo Sardinha tudo isso interessa à vida-linguagem do Matriarcado de Pindorama. Essa é a cartilha da revolução caraíba. Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. A ficção não existe fora do mito. A poesia é a vida ficcionalizada. O resto é literatura. Isso explica, por exemplo, tanto as virtudes como os defeitos da obra de Oswald. Tampouco é fácil saber em que medida essa mistura de vida e arte do Oswald-Macunaíma, heterônimo de Oswald-Pinto Calçudo, ensejou as suas guinadas políticas constantes e às vezes inconseqüentes. Porém, em linhas gerais, acredito que essas oscilações criem também elas outra esfera de compreensão de sua obra, e sejam elas mesmas materializações de um jogo que ele estabeleceu entre o lúdico e o messiânico. E podemos colher esse ensinamento também em um mito.
No hinduísmo, Māyā não é apenas o mundo como ilusão e destino, como fatum e inexorabilidade. Ela tem também a face Līlā, deusa que joga e brinca o mundo para que ele exista: das estrelas às formigas, dos homens às constelações, somos suas peças, seus brinquedos, a forma lúdica, passageira e livre do destino. A fatalidade também ri. E é justamente por essa dupla face que ela se torna ainda mais trágica do que se fosse meramente agônica, como muito bem intuiu Nietzsche. Sem o jogo não haveria existência: tudo se aniquilaria. Por isso a sua seriedade. Por isso, só somos livres no jogo, na via lúdica que suspende o juízo, a moral, os costumes. Para que voltemos a ser bárbaros e crédulos, meigos e pitorescos. O jogo nos retira do imperativo categórico para que escatologicamente saiamos do mundo e do tempo.
Assassinato fundador
Mas antes disso, retornemos à cena inicial. Como se sabe, em Totem e tabu, Freud constrói a sua fascinante hipótese da origem da civilização. Em uma horda tribal pré-histórica, havia a vigência de um pai arcaico, macho alfa, não castrado simbolicamente, que tiranizava pela força os membros do bando além de possuir as fêmeas de maneira indistinta. Era o reino da indistinção simbólica, ou seja, da distinção arbitrária realizada não mediante regras, mas pela violência. Tal pai arcaico ainda é notado até nos limiares da história, por exemplo, na figura de Gilgamesh. Pois antes de sua viagem em busca da imortalidade, este era um rei tirano, violador voraz das mulheres de nobres e plebeus. Lei e o governante emanavam de uma mesma fonte, ainda não tinham sido separados. Para Freud, o nascimento da cultura humana se deu com uma primeira transgressão dessa ordem patriarcal primitiva, mediante o gesto literal de assassinato e devoração do pai totêmico pelos filhos-membros da comunidade. Porém, esse gesto, libertador a princípio, acarretou uma dupla incisão: a criação do tabu do incesto e do assassinato ritual.
Além disso, segundo Freud, o pai morto teria se inscrito no inconsciente como Lei. A devoração não é uma aniquilação. Mas uma conversão do real em virtual, do literal em simbólico. Assimila-se o poder do objeto comido. Assimila-se também a cisão simbólica do ato de comê-lo. Agora não era mais preciso matar o pai: todos obedeceriam ao seu fantasma, animicamente inscrito na alma, marcada pela recordação traumática do gesto fundador da cultura. O parricídio canibalesco levou à interiorização da figura paterna e à criação de um superego coletivo. Nasce aqui, para Freud, a pedra angular da ordem civilizada: a culpa. Mas nasce aqui também a religião, tal como Freud a explora em Futuro de uma ilusão e em Moisés e o monoteísmo.
Em outras palavras, enquanto os animais se unem e se distinguem entre si por meio de comportamentos constantes que seguem as leis da natureza, ou seja, obedecem ao tabu de não comerem membros da mesma espécie, apenas o homem, ao cometer a primeira transgressão, ou seja, ao transgredir o tabu do assassinato do líder do bando, entra na ordem da cultura. Essa função ritual civilizadora estabelecida pela transgressão, explorada também por outros autores, como Bataille, por exemplo, no que toca à sexualidade, é a pedra de toque do lema de Oswald: a operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a transformação do tabu em totem. Quando a interdição vira norma, o assassinato do pai totêmico deixa de ser expiado como culpa e eterna vigilância e passa a ser vivido como celebração. A partir dessa equação Oswald vai ampliando o núcleo de suas indagações para uma dimensão antropológica acerca das origens da antropofagia e sobre o seu real sentido para a cultura brasileira.
Animal estelar
Essa antropodicéia guarda aspectos dos mais fascinantes. No que concerne às fontes antropológicas, Oswald dialoga muito com a curiosa e poética tese do antropólogo Edgard Dacqué. Para este, a origem do homem seria pré-estelar. Semelhante à matéria imortal da biologia de Mendel, Morgan e Lissencko, em maior ou menor grau seguidores da teoria de Weismann, ou mesmo das instigantes visões da matéria sutil e do plasma pneumático legadas pelos gnósticos e pela alquimia, sobretudo por Paracelso, a teoria dos colaterais desenvolvida por Dacqué postula uma passagem contínua dos moluscos, peixes, sáurios, aves e mamíferos até o homem. Este, todavia, teria fixado as características das espécies precedentes, chamadas colaterais, e apenas muito tardiamente estes se teriam separado e gerado o seguimento da espécie humana. Essa teoria inclusive dialoga com o chamado homúnculo de Bolk, se pensarmos que, no processo de separação dos colaterais, o homo sapiens teria sua origem arcana na fetalização dos macacos.
Embora Oswald use e abuse de imagens poéticas e afirme teorias que não são totalmente averiguadas, essas teses têm aceitação no meio científico inclusive hoje em dia, a ponto de Peter Sloterdijk, um dos principais filósofos da atualidade, desenvolver uma teoria sobre a Paleopolítica, a política do período dos hominídeos, baseando-se no conceito de neotenia, ou seja, do nascimento prematuro de uma espécie que teria cindido a aglomeração cumulativa de características da espécie e produzido um novo entroncamento, cujo desdobramento teria sido o homem. Em outras palavras, o homem seria um animal que não deu certo. Contra a evolução, haveria a involução, à medida que é o erro de seqüência de uma espécie inferior que teria gerado a separação das constelações genéticas e, desse seqüenciamento, provavelmente tenha surgido o antropopiteco.
Para Oswald, a antropofagia é sempre mítica e desempenha uma função metonímica: a parte devorada sempre é índice do objeto devorado e este, uma extensão material de suas virtualidades. Em outras palavras, os selvagens nunca devoram o inimigo, pois assim assimilariam apenas o cerne ruim de sua carne. Em última instância, comeriam apenas o seu corpo, como se comessem qualquer animal, e nada se passaria. Em termos rituais, seria um evento vazio. Além disso, sabe-se que há distinção entre o alimento antropofágico ritual e o alimento feito de outros animais, que não o homem. Por isso, eles devoram o que o inimigo representa: poder, força, virtude. Essa tese, corrente nos estudos antropológicos sobre antropofagia, foi flagrada com sagacidade por Oswald. E do ponto de vista filosófico ela quer dizer: o antropófago, apesar de comer literalmente o seu inimigo, não come sua carne. Para simplificar, talvez possamos dizer que ele come o seu espírito, em outras palavras, come-o enquanto modelo. E este espírito exemplar não lhe pertence. Vem de outra esfera, em um processo de atribuições que, por serem sempre feitas em torno de seres que necessariamente são carentes de substância, se realiza ao infinito.
Não há termo final nesse percurso semiológico da imitação antropofágica, já que o primeiro referente, o Modelo dos modelos, a Vítima das vítimas, embora o corpo os sinalize, não estão no corpo, estão para sempre perdidos e nunca serão alcançados. O inimigo do antropófago é índice do espírito, não seu detentor. Como eu havia dito, o mimetismo antropofágico se dá como extensão radical de uma concepção da não substancialidade do indivíduo. Ele devora modelos, não devora indivíduos. Não por acaso, Girard define o desejo metafísico como um desejo direcionado ao modelo, não ao objeto. Creio que, resumidamente, nesse ponto a teoria de Girard coincida com a proposta antropofágica: a apropriação do alheio não é um fim em si mesma, mas apenas a mediação da cadeia infinita de apropriações, cuja origem e o fim se desconhecem, da mesma forma que o desejo mimético, quando direcionado para um modelo, caso queira retroagir até um primeiro objeto-modelo desejado, chegaria ao Nada. Ou a Deus. Talvez por isso Oswald chegue a dizer: é preciso passar por um profundo ateísmo para chegar a Deus. Ou: o sobrenatural não está longe do milagre físico que a técnica cria.
À medida que a antropofagia é a identificação radical entre comedor e comido, entre imitador e imitado, entre fora e dentro, entre público e privado, entre sujeito e objeto, ela também produz performativamente a desativação completa de todos os mecanismos de representação. Em uma inusitada concordância com Wittgenstein, a antropofagia demonstra o fundamento tautológico do real, tal como o filósofo austríaco demonstrara o fundamento tautológico da linguagem. Em outras palavras, ao realizar o mito, a antropofagia extingue a literatura, entendida como modo representacional de lidar com a linguagem.
Mundus
Lévi-Strauss, ao estudar as estruturas elementares de parentesco, baseando-se no fenômeno da retribuição, considerado o mais antigo dessas estruturas, ressaltou a permuta das mulheres entre as tribos, como forma de dádiva. Embora essas práticas remontem a um momento muito recuado da cultura humana, Oswald chega a propor que elas sejam tardias, pois já denotam uma relação patriarcal estabelecida com as mulheres, que são usadas como objetos rituais. Seriam formas, portanto, tardias em relação à ginecocracia original formulada por Bachofen, ou seja, ao sistema mítico e jurídico baseado no predomínio das deusas-mãe e na função matrilinear. Como se sabe, a função patrilinear, segundo a qual antropologicamente o pai estabelece a linhagem familiar, foi balizada por Westermarck, no século 19, não sem trazer consigo uma gama de preconceitos e de padrões morais vitorianos bastante criticados, inclusive pelo próprio Oswald.
Todo animal é um manequim indeformável de uma certa forma de honra. A frase de Giraudoux, citada por Oswald, poderia ter sido escrita por Westermarck, tamanha a congruência e a homogeneidade do moralismo novecentista. Além de Bachofen, os estudos do grande etnólogo alemão Leo Frobenius, segundo Oswald demonstram a ancestralidade do matriarcado em relação ao patriarcado, existente naquele continente. Tais pesquisas descobrem um passado onde o domínio materno não determina o filho como filho da família, mas da tribo. Da mesma forma, no ensaio Variações sobre o Matriarcado, Oswald nos lembra os estudos de Malinowski nas Ilhas Trobiand. Nas tribos trobiandesas regidas pelo estatuto materno, a figura do pai desempenha um papel muito específico, à medida que esses povos não relacionam ato amoroso e procriação.
Como diz Oswald: o Ocidente elevou seus sentimentos até Deus como supremo bem e o primitivo até Deus como supremo mal. Aqui, supremo mal deve ser entendido em um único e simples sentido: a antropofagia. A devoração do outro. A devoração do humano. A devoração de um ser da mesma espécie. Entretanto, mediante todas essas explorações acerca do matriarcado, talvez possamos afirmar com certa franqueza: da mesma forma que o matriarcado é a forma mais arcaica de comunidade, o primeiro comunismo político, a antropofagia provavelmente seja a mais arcaica forma de comunhão existente na face da Terra. Porém, em um sentido mais avançado, a proposta antropofágica vai ainda mais além. Não se trata de justaposição, de parataxe, de contigüidade, de metonímia. Mas numa equação que seria resumida como o verso de Rimbaud: je est un autre.
O erro gramatical, bem ao gosto de Oswald, demonstra a essência da premissa: o eu não é analógica, metafórica ou metonimicamente semelhante ao outro. O eu é outro. A relação não se dá por semelhança, mas sim por identidade. Como na análise dos fundamentos tautológicos da linguagem filosófica efetuados por Wittgenstein, o princípio de identidade desmonta quaisquer tentativas de dialética ou de metafísica, pois ambas conduziriam à crença em uma univocidade possível da linguagem, sendo que esta é absolutamente equívoca e circular. A propósito, nesses contextos teóricos, poderíamos definir a mística como uma ilha antropofágica incrustada no oceano do patriarcado messiânico, pois, segundo Oswald, Deus esvazia o paciente para depois encher o vazio com sua presença.
O bárbaro tecnizado é a síntese da dialética histórica que ocorre em três tempos: homem natural, homem civilizado, bárbaro tecnizado. Ele é justamente o cidadão do matriarcado de Pindorama, o núncio de uma raça cósmica. Quando de posse desse estatuto diante do cosmos, o homem será guiado pelo sentimento órfico, pois este é uma ligação do homem com o mundo. Uma unidade sem partes separadas, que deglute tanto a natureza quanto o sobrenatural, tanto o estado bruto quanto a técnica: a isso Oswald chama de sentimento órfico que é uma dimensão do homem. O matriarcado, por seu turno, não sendo uma identidade cultural, mas uma matriz vazia de assimilações recíprocas e infinitas, não pode propor conteúdos nacionais. Só pode ser global. E diante do coletivismo dos bens de consumo proporcionados pelo desenvolvimento da tecnologia e do tribalismo das sociedades de massa ávidas de mitos estamos de novo, em plena escalada das sociedades de massa planetária, em face da utopia política de uma sociedade mais equânime.
Se não há cisão positiva entre mundo e sentido, pois o sentido sempre preexiste nas coisas e, em última instância, preexiste às coisas, do ponto de vista da antropofagia tampouco há cisão entre comedor e comido, entre sujeito e objeto. Na acepção do cristianismo primitivo, mundus queria dizer: abertura. Era a abertura no interior da qual um grupo de pessoas comungava ao se reunir. Mesmo quando o sentido não era religioso, havia mundus. Fosse ele um espaço, uma clareira, uma praça, uma cidade, o cosmos. Desde que em consonância com o espírito que animava o espaço físico, embora pudesse ser a abertura do homem diante da physis, diante de todo cosmos. Por isso, o mundus nunca é uma dimensão física, cosmológica. Mas sempre espiritual. Não é outra a acepção estóica do homem como cidadão do cosmos, noção tão bem assimilada, como todo estoicismo, pelo cristianismo antigo.
A celebração da deglutição do bispo Sardinha, oficiada pelo sacerdote Oswald, mais do que um arrivismo anti-religioso, deve ser vista como a perspectiva de um novo ecumenismo planetário. Ao fazer do índice do cristianismo o corpo do sacerdote, o selvagem profanou a sua carne, mas sacralizou o seu espírito. Pois não comeu Sardinha como Sardinha, mas o Modelo enquanto Modelo. A antropofagia é a atitude devoradora por meio da qual o selvagem incorpora a alteridade inacessível de seus deuses. Desse modo, produz uma convivência familiar com esses deuses. Na deglutição do bispo Sardinha, o Deus cristão, materializado no sacerdote, deixou de ser o supremo interdito transcendente. Os selvagens, ao transformarem o tabu em totem, por meio da deglutição paradoxalmente cristianizaram o cristianismo. Nesse caso, ao literalizar a eucaristia o desejo mimético se instaura como desejo metafísico, como lembra Girard. Desse modo, a profanação do selvagem potencializou a mensagem cristã, pois a tirou do domínio representacional da linguagem cênico-religiosa e a devolveu para a mais profunda experiência da vida concreta e orgânica.
Tal como Deus se fez carne para se tornar Cristo, Cristo se fez Deus ao se fazer carne. E só se fez Deus e Carne para habitar entre nós. Para abrir-se como mundus. Tal como a Trindade é triunívoca, o mistério da Encarnação também o é. Não há prioridade ontológica entre os termos, pois trata-se da própria Unidade divina. A pura univocidade rege todos os termos implicados no Mistério. Os sentidos ascendente e descendente, onomasiológico e semasiológico são equivalentes, pois o tornar-se Cristo pressupõe o tornar-se Carne. Da mesma forma que o tornar-se Carne pressupõe o habitar entre nós. Ou seja: o mundus. Depois da Queda, tivemos a percepção da fratura. Isso nos levou ao sagrado, como pólo de restauração, precária, porém eficaz, da ordem anterior. Em nossa época, vivemos aquilo que Eliade definiu como segunda Queda: não percebemos mais o profano enquanto profano, a Queda enquanto Queda. A saída talvez seja inverter a orientação e os postulados: aprofundar ainda mais o não-sentido como modo apto a produzir o Sentido. Talvez seja esse o conteúdo cifrado nesta formulação de Oswald: é preciso passar por um profundo ateísmo para chegar à ideia de Deus. Ou: é preciso uma transformação permanente do tabu em totem.
No mundo globalizado e extremamente complexo das sociedades e das mídias quentes, para usar o conceito homônimo de Lévi-Strauss e de McLuhan, ou seja, sociedades e meios que estão em infinita desterritorialização, como diria Deleuze, em uma mobilização infinita, nas palavras de Sloterdijk, com inúmeras crenças, credos, ritos, povos, etnias, línguas, culturas, políticas, valores e um infinito etc., será que a antropofagia pode ser erguida a um novo princípio religioso planetário? Será ela uma nova forma do universal? Será ela o modo mais efetivo de se reinaugurar a vigência radical da Alteridade? Como diz Oswald, socialmente, economicamente e filosoficamente só a Antropofagia nos une. E como única lei do mundo, ela é a expressão mascarada de todos os individualismos e de todos os coletivismos.
Desdobrada ao infinito, espelho após espelho, devoração após devoração, será que ao fim dessa longa jornada rumo ao Nada e à completa não-substancialidade de todas as coisas acabaremos por fim nos defrontando face a face com Deus? O fato é que na dinâmica secularizadora produzida entre patriarcado e matriarcado, entre messianismo e antropofagia, entre antropofagia e canibalismo, entre crença e agonia, entre o sagrado e o profano, a antropofagia talvez seja um caminho para suspendermos de vez toda a opressão do homem pelo homem, para desativarmos todo ciclo sacrifical de violência, para suspendermos o linchamento de todos os bodes expiatórios que povoam a Terra. Essa talvez seja a utopia do Matriarcado. Quando a assimilação antropofágica de todos os infinitos mundi finalmente configurar um Reino, este, certamente, não será de outro mundo. Mas tampouco será deste. Porque não seremos mais iguais perante Deus. Mas sim idênticos perante o desejo.