Ossos expostos

“Velhos esqueletos”, de William Kennedy, é narrado com secura e humor e traz personagens simplórios, malucos, depravados
William Kennedy, autor de ‘Velhos esqueletos”
01/03/2014

Em Discurso da narrativa, Gérard Genette afirma que a narrativa é uma seqüência duas vezes temporal, onde se percebe o tempo da coisa contada e o tempo da narrativa. Desse modo faz a distinção entre o tempo do significado e o tempo do significante. Diz Genette que uma das funções do discurso narrativo é inverter esses dois tempos, imbricando-os.

O teórico mostra, entre as conseqüências dessas diferenças temporais, a exigência de leitura diacrônica, uma leitura onde se perceba “pelo menos um olhar cujo percurso não é já comandado pela sucessão de imagens”.

Um exemplo afinado com o que diz Genette é Velhos esqueletos, de William Kennedy. Sempre que alguém menciona o escritor William Kennedy, de pronto vem à mente o famoso Ciclo de Albany, reunião de romances onde o primeiro a ser lembrado é Ironweed, que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer e Hector Babenco adaptou para o cinema. Velhos esqueletos é um dos títulos que integram o Ciclo de Albany, uma narrativa em que todos os personagens têm o mesmo peso, logo todos os personagens são importantes. E compor uma narrativa com tal característica não é coisa simples. Este aprendiz, no entanto, utilizará um personagem como referência. Referência eu disse, não implica juízo de valor. Estou falando de Orson Purcell, um escritor de meia idade que passa por uma série de provações, inclua-se nessa lista uma guerra, sofre uma crise psicótica e retorna à casa paterna, em Albany. Estamos na década de 1950.

Quem leu Ironweed sabe que o pai de Orson é o Peter Phelan, irmão de Francis. Na adaptação de Babenco, Jack Nicholson interpreta Francis. Peter não reconhece, ou melhor, demora um livro inteiro para reconhecer Orson como filho, preocupado que está com sua obra, uma série de quadros onde se pode ler a história dos Phelan.

Conforme Sêneca, “a vida não é um bem nem é um mal; é ocasião de bem e de mal”.

Orson, por sua vez:

Aqueles que realizam a grande e heróica obra de se tornarem humanos nunca trabalham com base apenas na própria experiência. Meu pai, por exemplo, jamais poderia ter pintado sua Suíte Malachi, essa notável série de quadros e desenhos que o fez famoso, se não tivesse se projetado na vida das pessoas que viveram e morreram de modo tão trágico e absurdo nos tempos anteriores e posteriores ao seu nascimento. Não quero dizer com isso que qualquer reconstituição histórica seja heróica, mas que a criação imaginativa de qualidade só pode ser produzida quando o criador subjuga sua individualidade e, ao mesmo tempo, dispõe-se a absorver nessa individualidade o que aconteceu além ou antes de sua própria existência.

É evidente que ninguém consegue absorver totalmente em si nem a história de uma única outra pessoa; mas a continuidade do espírito depende de uma imaginação como a de meu pai, capaz de fazer o mundo há muito desaparecido, de forma repentina e encantadora, como disse Keats, erguer-se de novo diante de nós com suas alegrias, terrores e lições. Keats inventou também a expressão “capacidade negativa” para definir o que via no verdadeiro caráter poético: um modo de ser que “não tem identidade — é tudo e nada […] gosta da luz e da sombra; vive tudo com intensidade, seja fétido ou imaculado, elevado ou rasteiro […]”.

Ao discorrer acerca dos quadros que compõem a Suíte Malachi, Orson realiza uma catarse e encontra seu lugar entre os Phelan. A Suíte Malachi é a crônica pictórica da família.

William Kennedy narra com secura e humor, apresenta personagens distintos, simplórios, malucos, depravados. A todos é permitido se manifestar e se justificar, mesmo que por vezes nos pareçam absurdos. Importante ressaltar a versatilidade da voz do narrador, ela é freqüentemente “atravessada” por questionamentos e observações, tal característica ocasiona no leitor uma série de reflexões. Concorre para isso, também, as idas e vindas no tempo.

Velhos esqueletos é um romance de detalhes, de detalhes importantes, alguns escondidos, outros protegidos, outros negados; mas todos serão expostos ao final da narrativa durante a leitura de um testamento.

A leitura deixará exposto o esqueleto dos Phelan, impossível não lembrar Tolstói e a abertura de Ana Karênina: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Os Phelan não são felizes tampouco infelizes. Os Phelan simplesmente carregam consigo um quantum de hipocrisia que todas as famílias carregam.

Mais importante que a felicidade é ressaltar que Velhos esqueletos é um livro extraordinário.

Velhos esqueletos

William Kennedy
Trad.: Sergio Flaksman
Cosac Naify
350 págs.
William Kennedy
Nasceu em Albany, Estados Unidos, em 1928. Além de mais de dez romances, escreveu peças de teatro, livros infantis e foi roteirista de filmes como Cotton Club, de Francis Ford Coppola. Em 1984, ganhou o prêmio Pulitzer por Ironweed, que Hector Babenco levou ao cinema. É integrante da American Academy of Arts and Letters.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho