Os transgressores

Luís Augusto Fischer e Ricardo Sabbag comentam a antologia Geração 90 — os transgressores, organizada por Nelson de Oliveira
Nelson de Oliveira: em busca de novos talentos
01/07/2003

Num mundo que mercantiliza tudo, das coisas da natureza à nossa alma (e incluindo as formas criadas pela humanidade ao longo do tempo para expressar seu jeito transcendente de ser, quer dizer, as formas artísticas), é um alívio que ainda haja gente pensando em transgressão criativa. Gente como o Nelson Oliveira, que acaba de colocar no mercado a segunda publicação com a marca “Geração 90”, agora contemplando um novo conjunto de relatos narrativos reunido sob a marca “os transgressores”.

O volume inaugural era a antologia Geração 90 – manuscritos de computador (Boitempo, 2001), em que o organizador fez constar um grupo mais genérico que o presente, um grupo escolhido segundo um critério mais cronológico do que temático ou ideológico (se é que a palavra cabe para designar o temperamento dos artistas). Eram, nas palavras do organizador, escritores estreados nos anos 90, “a primeira geração de escritores cuja infância foi bombardeada pelo veículo de comunicação mais agressivo do planeta: a televisão”. Nelson de Oliveira recortou bem a coisa, como se vê: foi buscar um critério radical, a televisão, como marca geral da sua geração (e minha, que sou da classe de 58).

A televisão é de fato o que nos une, porque uniu o Brasil moderno — a transmissão simultânea para a quase totalidade do território nasceu em 1969, olho do furacão da ditadura militar, de má memória e de intensa herança. A mesma televisão, que nos unificou na linguagem do Cid Moreira leitor de notícias no Jornal Nacional da Globo e no mercado nacional forjado naquela altura, nos fez contemporâneos uns dos outros e, de alguma forma, nos ligou ao Ocidente cada vez com menos “delay” entre a matriz européia ou norte-americana e esta periferia aqui. Horizontal e verticalmente, a televisão fez o Brasil de nossos dias, permitindo o reconhecimento recíproco destas partes que o Nelson reuniu, antes e agora.

Pois agora a conversa ficou mais específica: trata-se de uma antologia dos transgressores, dos que resolveram manter acesa a chama da invenção. Resultaram 340 páginas de contos maiores e menores, de 16 diferentes autores (cinco deles bisando sua participação no primeiro volume). A conversa sobre o novo livro pode, naturalmente, começar por aí mesmo: qual o critério para a reunião? Há alguma segurança na administração do adjetivo “transgressores”?

A matéria tem caminho infinito, é claro. O organizador mesmo, ao redigir seu competente texto de abertura, mapeia parte da história do problema, com discernimento suficiente para afastar do caminho qualquer saída fácil, por exemplo aquela que oporia transgressores a conservadores a seco, pondo os primeiros no céu e os últimos no inferno da arte. Há coisa boa e coisa ruim em qualquer das duas metades, e essa consciência implica afastar-se da mera (e tola) reaplicação dos conceitos vanguardistas velhos já de cem anos — em 1903, Pablo Picasso estava mergulhado na fase azul, esquentando o motor do Cubismo. Por isso é que Nelson de Oliveira convoca os espíritos de Pound e de Freud, toma-lhes a bênção e vai adiante.

Adiante para onde? — esta a boa pergunta para avaliar a antologia. O critério geral adotado orienta-se pela dupla percepção de que, por um lado, a ficção experimental de nossos dias é “filhote legítimo das vanguardas do início do século 20”, vanguardas que, pelo outro lado, constituem um legado “que continua vivo e presente na corrente sangüínea da cultura ocidental”, nas palavras do organizador. Mudança que já houve, mudança que permanece. Salvo engano, estamos falando de resistência, tanto às facilidades da linguagem já conquistada (seja ela a do realismo, em sentido amplo, ou a da televisão), quanto às contingências do mercado, ou da mercadoria, isto é, da redução da arte que se faz com palavras à mera condição de novo item para as gôndolas do comércio. A pretensão é grande e é legítima.

Vistas as coisas de altura panorâmica, a seleção dá mostras de boa vitalidade. Temos aí artistas remexendo o patrimônio da linguagem criativamente, num processo de que resultam algumas ótimas soluções narrativas para encarar temas que na maioria das vezes nem são inéditos (a vida, a experiência e o ponto de vista de gente miserável comparecem em vários autores, como preocupação central), nem são ousados (ainda uma vez aparece o tema das dores de consciência do escritor-incompreendido-que-daria-ao-mundo-sua-alma-se-o-mundo-fosse-mais-queridinho-com-ele).

Se quisermos critério para contraste, dá para alinhar um conjunto relevante de temas que não estão contemplados — e não se está insinuando que deveriam estar, é claro —: não se fala de identidade nacional, tema que até os anos 70 tinha curso seguro na criação literária brasileira, até pelo menos o furacão tropicalista; não se toca no poder político, nem no poder econômico, configurando uma ausência significativa, talvez menos desta geração noventina do que do conto brasileiro em geral (no romance é mais comum: pensemos em Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, os três maiores, e em certo romance realista, mas hoje gritantemente ausente); praticamente não há a exploração estratégica do conto como função ideológica para afirmação de ângulos identitários como o feminino, o gay, o negro, o índio, ausência que talvez seja um eloqüente depoimento sobre a relativa normalização de tal debate, ao menos no plano social em que a literatura circula.

A criatividade formal é notável, no conjunto. Começa na apresentação do organizador, que enumera de trás para diante os 11 tópicos em que dividiu o texto, a sugerir a contagem regressiva dos lançamentos de foguete, e segue rigorosamente todos os relatos. Em alguns, a inventiva parece fazer vizinhar a literatura com a propaganda (caso de Ivana Arruda Leite), pelo resultado artisticamente fraco a contrastar com o lingüisticamente forte — nem sempre as duas coisas convergem, como se sabe. Também menor é o obtido por Ademir Assunção e Jorge Pieiro, que almejam, mas com fadigas, a prosa surrealista, ou por Edyr Pinheiro e André Sant’Anna, que desejam enfocar a vida pelo ângulo popular — aqui um motorista de ônibus, ali uma empregada doméstica, sempre frágeis como ficção.

Alguns dos escritores antologizados confirmam as virtudes e as limitações de sua respectiva linguagem. Dá para ver nos contos de Altair Martins tanto o seu conhecido e louvável esforço pela originalidade formal quanto o acanhado saldo obtido em representação da vida para além do jogo das palavras (mas com um erotismo realmente apreciável em Segredo). Da mesma forma no relato pseudo-revoltado, pseudomaldito de Marcelo Mirisola, cujo personagem-narrador (o mesmo de sempre) já descobriu, com certo terror — “Virei um tiozinho que escreve uns trecos bonitos” —, que o estilo bukowskiano tem inexpansíveis limitações cósmicas. Outros dois que confirmam virtudes já demonstradas são o lírico Cláudio Galperin e o feroz Marcelino Freire.

Mirisola tem a seu favor, além de certas brincadeiras metaliterárias (no que é acompanhado por Joca Reiners Terron, em seu conto em busca de José Agrippino de Paula), um tom de humor que salva seu texto daquela aborrecida atitude autocomplacente típica de alguns iniciantes. Humor que é a marca mais saliente entre os acertos de Arnaldo Bloch e da excelente Simone Campos, esta realmente uma preciosidade em agilidade narrativa, inventividade na linguagem e humor, farto humor — léguas distante da tristeza da terceira e última mulher do volume, Luci Collin, uma clariceana mais ou menos típica, quer dizer, uma narradora com voz feminina e perspectiva individualista das coisas, sem leitura de conjunto dos fenômenos que aborda.

Um dos escritores mais recentemente lançados, Daniel Pellizzari freqüenta a difícil área do bizarro, às vezes se aproximando da crueza e brevidade de Dalton Trevisan, às vezes migrando para as proximidades de certo surrealismo. É de ver, aliás, que muitos dos textos aqui reunidos não só apreciam a tradição surreal, mas também fazem profissão de fé nela, procurando engatar as matérias dos contos segundo o método da livre-associação ou tentando fazer os enredos falarem em imagens e alegorias que superem o padrão realista.

O longo conto de Ronaldo Bressane, por seu turno, é amplamente representativo de uma das mais consistentes tendências que estão presentes em quase todos os textos: a percepção da grande cidade moderna como a véspera do caos, ou mesmo como o caos já chegado. No conto de Joca Terron, São Paulo é uma gigalópole sem começo nem fim; Mirisola faz o papel de um paulista de visita ao Rio, e as duas cidades são perversas; Galperin foca uma alucinatória aglomeração humana também. (Se é clichê ou não, não sei, mas é certo que os dois cariocas Arnaldo Bloch e Simone Campos são, apesar de tudo, muito bem humorados, ao passo que os paulistas tendem ao registro depressivo.) Bressane faz o relato de uma semana de férias de um jornalista que, no conto, é tratado como um viciado em notícias, mas viciado mesmo, daqueles que sentem síndrome de abstinência, e isso contado numa estranha mas bem sucedida mistura de estrutura fragmentária e linguagem relativamente trivial.

O melhor do conjunto, a meu juízo, é o relato de Fausto Fawcett. Realmente exemplar de sua obra em literatura e no mundo da canção pop, a história de O pacificador conta, numa vertiginosa sucessão de signos pop dos mais variados, em associação com referências da atualidade de todo quadrante do planeta, a história de uma espécie de herói globalizado e negativo — e mesmo assim herói. Ele próprio narrador de sua vida, chama-se de Pacificador porque é isso que ele imagina ser — “Sou como aqueles caras que voltam da guerra e não conseguem mais se adaptar a rotinas sociais normais”. O cenário é mad-max, a história é escatológica e a linguagem é um achado: a uma frase arrasa-quarteirão de diagnóstico desse pobre mundo, globalizado na porrada (“vários grupos paralelos também vão se apropriar de riquezas fundamentais para a vida urbana mundial”), Fawcett acrescenta o comentário brasileiríssimo, que ao mesmo tempo acentua o horror e amacia a relação pessoal (“e aí, meu amigo, vai ser foda”).

O mundo que emerge dos relatos da antologia não é mesmo um mar de rosas — lembra direto a brincadeira metaliterária de Rubem Fonseca em Intestino grosso, do velhíssimo ano da graça de 1975, quando o cínico personagem-escritor arremata uma falação medonha sobre o horror do mundo dizendo: “Não dá mais pra Diadorim”. O que cabe neste mundo é uma leitura de conjuntura como a do narrador de Mirisola: “Quem entende da compra e venda de negrinhas, almas vexadas, loteamentos na periferia e comércio fast-food de acarajés, quem entende disso é pastor da Igreja Universal do Reino do Edir: o resto são crianças putas e o Brasil em volta, caindo aos pedaços”.

Parece alucinação, mas é realismo, ainda e sempre. Assim também o caso de Fausto Fawcett (mas nele perfeitamente realizada, mesmo com seus instáveis materiais artísticos), que põe em cena lugares em que “as jurisdições nacionais estão suspensas”, mundo ao mesmo tempo pós-tecnológico e pré-moderno, tudo parecendo andar ao ritmo de um funk alucinatório — várias passagens do conto parecem comportar o ritmo de uma canção de Fawcett cantada por Fernanda Abreu. A súmula desse mundo é dada, num estertor, pelo narrador, o Pacificador, quando contrasta o horror do Ocidente com o horror do Médio-Oriente osâmico, guerreiro, vítima do imperialismo de nossos dias: “Mas definitivamente mercado, liberdade, consumo, indústria, democracia — tudo é melhor que a histeria de teor feudal com molho psicopata”. As opções, dá pra perceber, não animam muito.

Como talvez se possa ver nestas rápidas pinceladas, o livro é muito bom, e a médio prazo é seríssimo candidato a clássico de época. Ainda que o conjunto contenha algum texto menos expressivo e tenha deixado de lado pelo menos dois maravilhosos escritores (os gaúchos Luiz Sérgio Metz, em seu Assim na terra, e Paulo Ribeiro, com seu Vitrola dos ausentes, que talvez o Nelson nem conheça) e mesmo que a edição tenha deixado de citar as editoras dos primeiros livros dos escritores antologizados (o que é uma pena, ainda mais num mercado tão selvagem como o nosso, em que não se encontram livros fora do esquemão best seller), é certo que Geração 90 — Os transgressores já é um marco, mais significativo que seu irmão mais velho, Geração 90 — Manuscritos de computador. Com seu trabalho, Nelson de Oliveira está ajudando a divulgar muita gente de qualidade e, mais ainda, contribuindo para que os próprios escritores se percebam em conjunto, como gente sensível que partilha um mesmo tempo, neste belo e tenebroso espaço chamado Brasil, na formulação de uma consciência geracional que deve ser a primeira que se apresenta depois daquela que floresceu nos 60 e 70.

A geração 90 está na pista, leitor; arreda que lá vem arte.

Geração 90 — Os transgressores
Organização: Nelson de Oliveira
Boitempo
340 págs.
Luís Augusto Fischer

É professor de Literatura Brasileira na UFRGS e escritor. Autor, entre outros, de Filosofia mínima —Ler, escrever, ensinar, aprender (Arquipélago).

Rascunho