Uma conhecida versão para o nascimento da tragédia em que nos encontramos é o ressentimento das elites, cujo auge, em 2009, motivou sua movimentação com vistas ao poder menos de dez anos depois. Enquanto algumas pessoas começavam a ocupar certos lugares, antes restritos, os homens e mulheres do subsolo se reuniam em mansões, fazendas e clubes de tiro para retomar o legado da ditadura e potencializá-lo, sem esconder a violência de que era feito.
É esse momento do país que João Silvério Trevisan retrata no romance A idade de ouro do Brasil. A trama ocorre na mansão do empresário paulistano Otávio Mansur, herdeiro de negócios de exploração e lapidação de pedras preciosas. No feriado da Semana Santa, Otávio reúne cinco figuras da política nacional para fundar um novo partido, o Partido Nacional Liberal. Também há um convidado obscuro que não confirmou presença, mas é aguardado com ansiedade.
Cada personagem da reunião representa um tipo de ator político da agenda conservadora, dos mais supostamente moderados aos explicitamente radicais. Há o escritor trotskista arrependido, que se elegeu deputado federal ancorado no prestígio obtido com seus best-sellers polêmicos sobre história do Brasil; um antigo ex-ministro de agricultura e latifundiário; um jornalista reacionário com pose de sátiro; um empresário emergente e narcisista que tem ojeriza às suas origens pobres; e um pastor evangélico fundamentalista que “ostenta com orgulho uma visão de mundo binária”.
Depois dos trabalhos, o happy hour será regado a cocaína e sexo, com a aguardada performance das Afrodites da Pauliceia, um grupo de travestis trazidas da capital especialmente para a ocasião.
Enquanto a noite não chega, os homens discutem os fundamentos do partido — baseados nos pilares da moral, da propriedade privada e do livre mercado — e possíveis coligações. Mas também assuntos importantes, como a natureza do carisma de Lula, cuja aparição no noticiário é suficiente para esquentar os ânimos, revelando a gênese ressentida desse plano destrutivo.
Nesse momento chega a figura pela qual todos esperavam, descrita pela empregada doméstica como “um homem que é capitão, mas não parece”. Trata-se do ex-capitão do Exército e deputado Paulo Gervásio, um radical de extrema direita em franca ascensão, conhecido por “dizer o que pensa” e anunciar os princípios do que hoje costumou-se caracterizar como necropolítica. Com trejeitos aberrantes e conhecidos vícios de linguagem, o ex-capitão logo causa estranhamento no grupo.
O recém-chegado faz um gesto indefinido, entre saudação e continência. Murmura algo inaudível, com a boca emoldurada por um sorriso incongruente, que mescla acanhamento e prepotência. Em seu rosto, permanentemente contorcido, paira uma desconfiança estrutural, que o mantém em estado de alerta. Os olhos claros, de cor indefinida, traduzem frieza e controle, sem conseguir esconder um ressentimento que extravasa e assusta. Mesmo a olhos menos atentos, seu porte enrijecido denuncia a origem militar em qualquer instância. Os únicos elementos naturais em sua figura parecem ser o cabelo em desalinho e o desleixo da roupa.
O incômodo inicial vai se transformando num amálgama de asco, terror e perplexidade à medida que Paulo Gervásio aprofunda — dentro do possível — seu projeto para o país, prevendo a volta dos militares, o aniquilamento de minorias e a constituição de um estado teocrático. Os convidados argumentam e protestam, mas o ex-capitão só dobra a aposta.
Numa cena de comédia pastelão, ele provoca o pastor evangélico e logo se inicia uma discussão, até que Gervásio saca uma pistola. O homem é contido e deixa a mansão — e também o romance. Sua irrupção no cenário, no entanto, será suficiente para instalar a barbárie no Solar das Rosáceas.
Paulo Gervásio é o elemento acelerador da transformação do Brasil de utopia para a distopia. Um salto de 2009, quando havia gozo e delírio, para 2019 e 2020, um país embrutecido tão próximo de seu passado ditatorial.
Conflitos
Nos outros cômodos, as Afrodites ensaiam a coreografia do show e recebem, cada uma, um político de estimação para entreter durante a festa. Além do espetáculo, as Afrodites também são responsáveis pelo fornecimento de cocaína no feriadão.
Quem tem os contatos é a líder do grupo, a Abelha Rainha, ou Vera Bee, “mais drag queen do que propriamente travesti”, já que se monta apenas em ocasiões especiais. De segunda a sexta-feira, Vera Bee é Marcão, professor universitário.
Fica claro desde o início que Vera Bee é pelo menos uma geração mais velha do que as outras Afrodites. E que gosta de exibir sua erudição para as subordinadas, menos letradas, tentando “civilizá-las”.
Além da demarcação de classes entre a líder e as Afrodites, o intervalo geracional também fica evidente. Vera Bee é portadora de HIV, e subentende-se que já perdeu muitos amigos para o vírus surgido nos anos 1980. Embora estejam expostas pelas condições em que vivem — fora Vera Bee, as Afrodites recorrem à prostituição como trabalho principal —, as demais travestis não viveram os piores anos da doença.
A única que sabe da condição de Vera Bee é Menininha, uma adolescente misteriosa com grandes habilidades em informática que sempre a acompanha e, inclusive, coloca no ar o blog secreto que dá nome ao livro. Menininha terá papel fundamental no desenrolar do segundo ato.
Novelesco
Como o próprio Trevisan disse ao Correio Braziliense, a história foi escrita na forma de roteiro, em 1987. A intenção era que o ator Marco Nanini vivesse a Abelha Rainha nos cinemas. Como o projeto não foi para frente, Trevisan retirou o texto da gaveta, deslocou o tempo de 1987 para 2009 e alterou alguns detalhes.
O aspecto cinematográfico do texto é, de fato, evidente, mas seu maior entrave talvez seja a vocação novelesca enquanto o romance que pretende ser, sobretudo quando seu coração, isto é, as personagens, parece emular o tom caricatural dos folhetins televisivos.
As cenas frívolas, os diálogos maldosos, os olhares “viperinos” — tudo isso contribui para a construção de um clima de gongo eterno, cuja intenção parece ser cativar o leitor afeito ao humor, mas que não consegue iluminar a relação entre as Afrodites além do estereótipo.
A própria estrutura dos diálogos é monocórdica, e a interrupção constante do narrador entre as sentenças para apresentar a reação das personagens não ajuda a diferenciá-las realmente. Pelo contrário, reforça o enfado diante de tantas conversas sem razão de existir senão para alongar a história, como se faz numa novela. Com pouca segurança no leitor, o narrador explica, expõe, mastiga até as passagens satíricas.
Por fim, há várias escolhas questionáveis na abordagem da forma, como a reprodução da narrativa de programas de televisão ou de reportagens sensacionalistas — com destaque para a transposição de um diálogo entre Louro José e Ana Maria Braga.
Também não ajudam as soluções melodramáticas, inclusive de alguns desenlaces importantes, a exemplo das cenas em que Vera Bee está debilitada ou da revelação do segredo de Menininha. Da mesma forma, a caracterização dos políticos e empresários é pouco imaginativa, talvez porque apoiada no fato de que vamos reconhecê-los na caricatura que representam, o que ocorre, mas não é suficiente para que tenham algum relevo.