Os tipos que nos governam

Em "A idade de ouro do Brasil", João Silvério Trevisan faz um retrato atual da extrema direita que emergiu no cenário político, mas derrapa no tom novelesco
João Silvério Trevisan, que ministra oficina de criação literária em janeiro na Balada Literária
01/12/2020

Uma conhecida versão para o nascimento da tragédia em que nos encontramos é o ressentimento das elites, cujo auge, em 2009, motivou sua movimentação com vistas ao poder menos de dez anos depois. Enquanto algumas pessoas começavam a ocupar certos lugares, antes restritos, os homens e mulheres do subsolo se reuniam em mansões, fazendas e clubes de tiro para retomar o legado da ditadura e potencializá-lo, sem esconder a violência de que era feito.

É esse momento do país que João Silvério Trevisan retrata no romance A idade de ouro do Brasil. A trama ocorre na mansão do empresário paulistano Otávio Mansur, herdeiro de negócios de exploração e lapidação de pedras preciosas. No feriado da Semana Santa, Otávio reúne cinco figuras da política nacional para fundar um novo partido, o Partido Nacional Liberal. Também há um convidado obscuro que não confirmou presença, mas é aguardado com ansiedade.

Cada personagem da reunião representa um tipo de ator político da agenda conservadora, dos mais supostamente moderados aos explicitamente radicais. Há o escritor trotskista arrependido, que se elegeu deputado federal ancorado no prestígio obtido com seus best-sellers polêmicos sobre história do Brasil; um antigo ex-ministro de agricultura e latifundiário; um jornalista reacionário com pose de sátiro; um empresário emergente e narcisista que tem ojeriza às suas origens pobres; e um pastor evangélico fundamentalista que “ostenta com orgulho uma visão de mundo binária”.

Depois dos trabalhos, o happy hour será regado a cocaína e sexo, com a aguardada performance das Afrodites da Pauliceia, um grupo de travestis trazidas da capital especialmente para a ocasião.

Enquanto a noite não chega, os homens discutem os fundamentos do partido — baseados nos pilares da moral, da propriedade privada e do livre mercado — e possíveis coligações. Mas também assuntos importantes, como a natureza do carisma de Lula, cuja aparição no noticiário é suficiente para esquentar os ânimos, revelando a gênese ressentida desse plano destrutivo.

Nesse momento chega a figura pela qual todos esperavam, descrita pela empregada doméstica como “um homem que é capitão, mas não parece”. Trata-se do ex-capitão do Exército e deputado Paulo Gervásio, um radical de extrema direita em franca ascensão, conhecido por “dizer o que pensa” e anunciar os princípios do que hoje costumou-se caracterizar como necropolítica. Com trejeitos aberrantes e conhecidos vícios de linguagem, o ex-capitão logo causa estranhamento no grupo.

O recém-chegado faz um gesto indefinido, entre saudação e continência. Murmura algo inaudível, com a boca emoldurada por um sorriso incongruente, que mescla acanhamento e prepotência. Em seu rosto, permanentemente contorcido, paira uma desconfiança estrutural, que o mantém em estado de alerta. Os olhos claros, de cor indefinida, traduzem frieza e controle, sem conseguir esconder um ressentimento que extravasa e assusta. Mesmo a olhos menos atentos, seu porte enrijecido denuncia a origem militar em qualquer instância. Os únicos elementos naturais em sua figura parecem ser o cabelo em desalinho e o desleixo da roupa.

O incômodo inicial vai se transformando num amálgama de asco, terror e perplexidade à medida que Paulo Gervásio aprofunda — dentro do possível — seu projeto para o país, prevendo a volta dos militares, o aniquilamento de minorias e a constituição de um estado teocrático. Os convidados argumentam e protestam, mas o ex-capitão só dobra a aposta.

Numa cena de comédia pastelão, ele provoca o pastor evangélico e logo se inicia uma discussão, até que Gervásio saca uma pistola. O homem é contido e deixa a mansão — e também o romance. Sua irrupção no cenário, no entanto, será suficiente para instalar a barbárie no Solar das Rosáceas.

Paulo Gervásio é o elemento acelerador da transformação do Brasil de utopia para a distopia. Um salto de 2009, quando havia gozo e delírio, para 2019 e 2020, um país embrutecido tão próximo de seu passado ditatorial.

Conflitos
Nos outros cômodos, as Afrodites ensaiam a coreografia do show e recebem, cada uma, um político de estimação para entreter durante a festa. Além do espetáculo, as Afrodites também são responsáveis pelo fornecimento de cocaína no feriadão.

Quem tem os contatos é a líder do grupo, a Abelha Rainha, ou Vera Bee, “mais drag queen do que propriamente travesti”, já que se monta apenas em ocasiões especiais. De segunda a sexta-feira, Vera Bee é Marcão, professor universitário.

Fica claro desde o início que Vera Bee é pelo menos uma geração mais velha do que as outras Afrodites. E que gosta de exibir sua erudição para as subordinadas, menos letradas, tentando “civilizá-las”.

Além da demarcação de classes entre a líder e as Afrodites, o intervalo geracional também fica evidente. Vera Bee é portadora de HIV, e subentende-se que já perdeu muitos amigos para o vírus surgido nos anos 1980. Embora estejam expostas pelas condições em que vivem — fora Vera Bee, as Afrodites recorrem à prostituição como trabalho principal —, as demais travestis não viveram os piores anos da doença.

A única que sabe da condição de Vera Bee é Menininha, uma adolescente misteriosa com grandes habilidades em informática que sempre a acompanha e, inclusive, coloca no ar o blog secreto que dá nome ao livro. Menininha terá papel fundamental no desenrolar do segundo ato.

Novelesco
Como o próprio Trevisan disse ao Correio Braziliense, a história foi escrita na forma de roteiro, em 1987. A intenção era que o ator Marco Nanini vivesse a Abelha Rainha nos cinemas. Como o projeto não foi para frente, Trevisan retirou o texto da gaveta, deslocou o tempo de 1987 para 2009 e alterou alguns detalhes.

O aspecto cinematográfico do texto é, de fato, evidente, mas seu maior entrave talvez seja a vocação novelesca enquanto o romance que pretende ser, sobretudo quando seu coração, isto é, as personagens, parece emular o tom caricatural dos folhetins televisivos.

As cenas frívolas, os diálogos maldosos, os olhares “viperinos” — tudo isso contribui para a construção de um clima de gongo eterno, cuja intenção parece ser cativar o leitor afeito ao humor, mas que não consegue iluminar a relação entre as Afrodites além do estereótipo.

A própria estrutura dos diálogos é monocórdica, e a interrupção constante do narrador entre as sentenças para apresentar a reação das personagens não ajuda a diferenciá-las realmente. Pelo contrário, reforça o enfado diante de tantas conversas sem razão de existir senão para alongar a história, como se faz numa novela. Com pouca segurança no leitor, o narrador explica, expõe, mastiga até as passagens satíricas.

Por fim, há várias escolhas questionáveis na abordagem da forma, como a reprodução da narrativa de programas de televisão ou de reportagens sensacionalistas — com destaque para a transposição de um diálogo entre Louro José e Ana Maria Braga.

Também não ajudam as soluções melodramáticas, inclusive de alguns desenlaces importantes, a exemplo das cenas em que Vera Bee está debilitada ou da revelação do segredo de Menininha. Da mesma forma, a caracterização dos políticos e empresários é pouco imaginativa, talvez porque apoiada no fato de que vamos reconhecê-los na caricatura que representam, o que ocorre, mas não é suficiente para que tenham algum relevo.

A idade de ouro do Brasil
João Silvério Trevisan
Alfaguara
216 págs.
João Silvério Trevisan
Nasceu em 1944 e tem 14 livros publicados. É autor, entre outros, dos romances Pai, pai (2017) e Ana em Veneza (1994), além do clássico estudo multidisciplinar Devassos no paraíso (2000), sobre a história da homossexualidade no Brasil. Recebeu três vezes os prêmios Jabuti e APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes). Vive em São Paulo (SP).
Leandro Reis

É jornalista e mestre em Estudos Literários.

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