Os tempos até mudam, mas nem tanto

"Os viajantes", de Regina Porter, cria uma complexa rede de relações para narrar os acontecimentos de duas famílias, uma branca e outra negra, nos EUA
Regina Porter, autora de “Os viajantes”
01/05/2021

A norte-americana Regina Porter, estreante no romance, começa seu livro de uma forma não canônica dentro do gênero: uma lista de personagens. Mais frequente no teatro, é uma maneira de apresentar resumidamente características e relações que podem não ficar completamente explícitas no texto adiante — e, no caso do livro de Porter, serve também como referência durante a leitura, já que não são poucas as personagens criadas.

Para falar em profundidade sobre toda essa constelação de personagens, seria necessário invocar a experiência de Pierre Menard e reescrever a lista de personagens presente no começo do livro, o que não faz nenhum sentido. Basta dizer que as personagens orbitam dois núcleos familiares (tenha em mente famílias bem estendidas aqui), e guardam relações indiretas e até inesperadas entre si durante a narrativa.

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Décadas turbulentas
Um dos aspectos mais interessantes é ver como esses encontros cruzam seis décadas turbulentas da história norte-americana: das questões raciais dos anos 1950 até o primeiro mandato de Obama. Mas a autora não apresenta esses fatos de maneira didática ou histórica — ao contrário, ela indica essas mudanças sociais nas vidas das personagens, de pequenos episódios a grandes mudanças. Nesse sentido, tem algo que lembra Os anos, de Annie Ernaux, já que também mostra o impacto dos acontecimentos políticos, sociais e econômicos na vida dos indivíduos (mas vale notar que os estilos narrativos são bem diferentes).

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Grande Migração para o Norte (Great Northward Migration) ou a Migração Negra (Black Migration) foi o movimento de 6 milhões de afro-americanos do sul dos Estados Unidos, rural, ao Nordeste, Centro-Oeste e Oeste urbanos, que ocorreu entre 1916 e 1970.
Wikipédia

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Por exemplo: o pai de uma família branca não permite que seu filho se aproxime da família negra que se mudou recentemente para a casa ao lado. Em uma situação em que o preconceito parece ainda maior do que hoje, a criança branca não pode convidar o vizinho para brincar na sua casa. A situação se escala até um ponto bem mais extremo, mostrando como o racismo criou barreiras imensas no relacionamento entre vizinhos.

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Amnésia significa que as pessoas se esqueceram da espantosa abrangência da mudança nas últimas décadas.
Rebecca Solnit, De quem é esta história?

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Em tempos mais recentes, acompanhamos também o casamento de duas personagens: um branco e uma negra. Mas mesmo depois dos anos 2000, com os EUA prestes a terem um presidente negro, a união não é simples e o casal precisa lidar com o estranhamento de familiares. Os tempos até mudam, mas nem tanto.

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A narrativa de Porter também muda: muda de acordo com a personagem ou o momento em que estão vivendo. A maior parte do livro é composta por uma narrativa em prosa em terceira pessoa (com trechos eventuais de discurso indireto livre), mas a autora também propõe trechos em outros formatos: narrativa em primeira pessoa, diálogos mais semelhantes a uma escrita dramática, e até uma passagem pelo gênero epistolar. E Porter lida com essas mudanças de maneira muito natural.

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O silêncio
Uma das personagens que aparecem já no começo da narrativa é Agnes. Ela sofre um abuso sexual por parte de um policial quando está no começo de um relacionamento (com um homem que estava presente na situação de abuso). A experiência a deixa compreensivelmente sem palavras. Essa parte da narrativa é justamente permeada pelo não dito, pelo que fica de fora da escrita, e pelas escolhas que ela faz a partir dessa experiência. Ela mesma tenta apagar o evento da sua vida, mas fica claro para quem lê que suas escolhas posteriores consideram o episódio. Essa ausência de informações ou sentimentos na narrativa pode até fazer com que leitores se sintam mais distantes da personagem, mas até isso parece emular o sentimento de distância que as outras personagens sentem em relação a ela e que talvez ela mesma esteja criando ao redor de si.

Perdida em seu trauma, Agnes encerra o namoro apaixonado com Claude e se casa com Eddie, com quem tem duas filhas e um relacionamento muito mais morno e distante. Nos trechos seguintes, vemos como se afastou de pessoas que ama e sentimentos em geral, evitando o contato inclusive com sua amiga e amante de adolescência. Para essa personagem, a narrativa permeada por silêncio diz mais do que muitas palavras diriam.

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Um outro aspecto interessante do livro é ter acesso a vários aspectos da vida das personagens. Em determinado trecho são filhos, mas depois se tornam pais ou amantes. Acompanhamos momentos relevantes, episódios específicos, mas ao todo temos o panorama da vida de várias pessoas.

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Nesse sentido, há algo na narrativa que se assemelha com um quebra-cabeça. Nem sempre temos detalhes da infância de uma determinada personagem, mas conhecemos seus pais, como se conheceram, suas crenças. Conhecemos o ambiente em que foi criada. E é assim que a narrativa de Porter vai se montando — fragmentos de pessoas, de momentos, de vidas.

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Referências culturais
Um aspecto interessante da narrativa da autora é a intertextualidade. Um dos exemplos mais marcantes é a peça Rosencrantz e Guildenstern estão mortos, de Tom Stoppard — um reconto de Hamlet, de Shakespeare, do ponto de vista dos companheiros do príncipe. A obra é descoberta por Eddie durante a Guerra do Vietnã e se torna uma ancoragem emocional para ele lidar com sua realidade imediata. Depois, Shakespeare vai ser central para a trajetória acadêmica de sua filha.

São várias as referências culturais trazidas por Porter, de músicas a revistas, de lojas a livros. A autora também cria uma teia de relações, montando um retrato de época, cultura, costumes e consumo que marcaram várias gerações. Além disso, traz várias imagens ao longo da narrativa, criando um álbum de referências visuais bastante impactante e um dos aspectos que ajudam a criar a atmosfera de passagem do tempo presente no livro.

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Uma das coisas que mais me impressionaram na leitura do livro é como cada núcleo, cada personagem e seu entorno, são um mundo em si — e quase todos esses núcleos justificariam um livro para si próprios. Na minha cabeça, a autora escreveu esse livro mergulhada em documentos de cada uma dessas pessoas, comprovantes de uma biografia intensa de cada um, selecionando apenas os melhores momentos para nos contar. A complexidade é tamanha que é difícil acreditar que esse é o primeiro romance da autora.

Mas essa escolha — de misturar as personagens, de as apresentar para o leitor na interação entre si — é provavelmente um dos aspectos centrais da narrativa de Porter. Não é sobre o mundo interno de cada um, é como tudo se relaciona.

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Conflitos
Porter participou de uma mesa na última Flip com o autor brasileiro Jeferson Tenório (o material está disponível no canal do YouTube do evento). Durante a conversa, a escritora critica a tentativa de escrever histórias apenas com personagens negras. Para ela, o mundo não se dá dessa forma; muito pelo contrário, há sempre um aspecto de interação — “para o bem ou para o mal”.

E isso fica evidente em muitas cenas de seu livro. Um personagem, avô de crianças birraciais, é proibido pelo seu filho de usar a palavra mulatos — e, apesar de não usar mais a palavra, sente mesmo assim uma distância em relação às crianças. “Mas não se parecem comigo”, confessa à esposa. Ou quando um homem negro trabalhando em uma mudança é impedido de consumir alimentos em uma lanchonete para brancos em um estado americano mais conservador. É justamente a interação que cria esses conflitos e constrói a situação atual.

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Em qualquer dos casos (seja no alarme, seja na falsa reverência), nós lhe negamos a realidade como pessoa, a individualidade específica que insistimos manter para nós mesmos.
Toni Morrison, A origem dos outros

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Afetos e desafetos
Porter consegue mostrar como o mundo não é simples. Relações atuais dependem de uma gama imensa de relações anteriores — de como fomos criados, de como nos relacionamos com todas as outras pessoas antes (e como elas se relacionaram conosco, claro).

O argumento central da autora acaba chegando na importância das histórias. Desde o apego de Eddie a uma peça de teatro a várias outras personagens que têm associações afetivas com outros textos, a importância das histórias é reiterada com frequência. Mas mais do que isso: o que move o racismo, o que está na semente da diferença, são as narrativas que montamos para o outro, que nos diferencia deles, que fazem com que já tenhamos um pré-conhecimento de um indivíduo antes mesmo de conhecê-lo porque o associamos às histórias que ouvimos (ou criamos) em relação ao grupo ao qual pertence. A narrativa é, portanto, base da outremização e do preconceito. E entre afetos e desafetos, esse livro é sobre isso: as histórias que contamos, as que não contamos, e as que baseiam a nossa existência e nossa maneira de nos relacionar com o mundo.

Os viajantes
Regina Porter
Trad.: Juliana Cunha
Companhia das Letras
376 págs.
Regina Porter
Nasceu no estado da Georgia e mora no Brooklyn, nos EUA. Estudou escrita criativa na graduação e, além de ter participado de programas de escrita e publicado textos em várias revistas, tem uma extensa produção de peças de teatro.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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