Os sentimentos do luto

"A ridícula ideia de nunca mais te ver", de Rosa Montero, explora a experiência da perda a partir da biografia da cientista Marie Curie
Rosa Montero, autora de A ridícula ideia de nunca mais te ver
30/03/2020

Sempre tenho a expectativa de gostar de uma obra quando começo a ler um determinado livro. E imagino que a frase anterior seja dessas obviedades até meio ridículas de se pôr por escrito — afinal, quem leria um livro que não acha que vá gostar? Além do mais, cada vez sou mais adepta de não terminar os livros que não estou gostando tanto assim. A vida é curta, os livros são muitos, e melhor passar nosso tempo lendo coisas que estamos gostando.

Tudo isso para dizer que queria ter gostado muito de A ridícula ideia de nunca mais te ver, da espanhola Rosa Montero. Nunca tinha lido nada da autora antes, mas ela estava naquela lista interminável de livros que quero ler há algum tempo e, quando a Todavia anunciou essa publicação, fiquei empolgada: Rosa Montero falando sobre Marie Curie. Pode ser melhor que isso?

Na realidade, pode.

O livro, publicado em 2013 em sua versão original e em 2019 no Brasil, com tradução de Mariana Sanchez, é um desses textos de gêneros de difícil definição. Para mim, se lê como um ensaio autobiográfico, mas a ficha catalográfica e os paratextos o vendem como um romance. Talvez seja uma tentativa editorial de fazer com que o livro se aproxime mais da ficção — o que é justo.

A leitura começa bem. Muito bem, aliás. É um dos começos mais bonitos e tocantes que encontrei em livros nos últimos tempos (e pode ser lido no trecho selecionado nesta página). Sublinhei com um marca-texto amarelo que combina com a capa (tocs de leitor, aposto que você também tem algum) e o deixei a postos para continuar marcando.

O primeiro capítulo continua com uma apresentação de como a autora (ou devo dizer narradora, considerando que é um livro de ficção?) se depara com os diários da cientista Marie Curie. Segundo ela, é contactada por uma editora que, em posse dos escritos de luto da franco-polonesa depois da morte de seu marido, Pierre, convida Montero a escrever um texto que acompanhasse o relato em uma publicação futura, considerando que a própria espanhola também estava em luto pela morte do seu marido. A grande identificação que se desenvolve entre ela e o texto de Curie a inspiram a escrever o livro que lemos.

O título do livro — A ridícula ideia de nunca mais te ver resume bem sua proposta: lidar com o luto e a ideia ridícula de que nunca mais vai se ver uma determinada pessoa. Lidar com a vida após a morte de alguém querido e, mais que isso, grande parte da sua própria existência. E, enquanto texto terapêutico ou catártico, essa é uma obra interessante. Leitores que também passam pelo luto de alguém querido podem muito bem encontrar ressonâncias dos seus próprios sentimentos no relato de Montero, que tem uma capacidade boa de descrever sentimentos profundos e obscuros.

Porém, essa não é o objetivo central da obra, que se apresenta enquanto ficção. E, enquanto ficção, a obra não se sustenta tão bem assim.

Os poréns
Arrebatada pelo texto de Curie, a narradora se joga em uma procura por saber mais sobre a cientista, lendo todas as biografias que pode encontrar sobre ela e selecionando os pontos que mais a impressionam. A ridícula ideia de nunca mais te ver, porém, não chega a ser uma biografia nem uma espécie de crítica às biografias de Curie — é mais o percurso de uma leitora em busca dessa personagem.

Até aí, tudo bem. Por experiência própria, diria que ler sobre pessoas em processo de luto enquanto se está vivendo isso é arrebatador e catártico. Sentimos um aconchego de saber que outras pessoas passaram por isso e é um processo de alteridade imensa quando alguém consegue pôr em palavras um sentimento tão confuso.

O problema é que Montero, deslumbrada com várias das similaridades entre as duas, começa a encontrar o que chama de #coincidências (assim mesmo, com as hashtags — voltaremos a falar sobre isso, não se preocupe). Em vários momentos do livro, se compara profundamente a Curie, chegando a mencionar as similaridades entre os formatos de suas mãos (o que é feito com base em uma imagem, pouco nítida na impressão do livro, em que vemos a mão de Curie dobrada, como que segurando seu próprio queixo). Resumindo: a autora vai longe demais.

Considerando o livro um romance narrado em primeira pessoa, diria que Montero criou uma personagem que perdeu sua conexão com a realidade, se jogando em uma busca por Curie para não lidar com sua própria situação. Uma personagem ainda em fase de negação que se põe a pesquisar e escrever mecanicamente para dar voz aos seus sentimentos, sem senso crítico ou cuidado com o que diz. Várias afirmações são deixadas no ar, sem justificativas ou explicações. E não me sinto minimamente capacitada para discutir essa questão se formos considerar o livro como não-ficção.

Voltando para o texto. A narrativa não tem muito foco, nem uma organização além da sentimental. Além disso, há uma insistência em fazer referências que não são discutidas ou explicadas. Um exemplo disso está ainda no primeiro capítulo: ao introduzir a figura de Marie Curie e seu papel na ciência e nas descobertas de radioatividade, menciona en passant o espião russo Aleksandr Litvinenko. O comentário dura três linhas e conta com uma foto dele no hospital, que seria mais marcante se não tivesse sido amplamente divulgada pela mídia na época de sua morte. Ela logo muda de assunto, e o trecho se lê mais como uma banalização da situação do que uma referência necessária. Não entendi a função destes trechos para além de mostrar o quanto sabe do mundo.

Ainda sobre referências e fontes, fica claro no texto que as informações biográficas sobre Marie Curie são retiradas de pesquisas e biografias já feitas sobre o tema. Porém, não há um cuidado na hora de fazer essas referências. Tudo bem, este não é um livro acadêmico, e sim uma obra de ficção. Mas citação é citação e uma obra literária pode fazê-las sem que isso comprometa a qualidade artística do texto. Não é o caso aqui. Montero menciona em alguns momentos em qual biografia encontrou algumas das informações, mas não chega sequer a mencionar quais obras leu no total.

Uma questão chamativa da prosa de Montero é seu uso de #hashtags. No começo do livro, achei promissor. Em minhas anotações, escrevi que poderia ser uma ferramenta para conectar diferentes pontos do livro e sintetizar um argumento em um discurso que já existe. Usar uma hashtag como #metoo, por exemplo, aproxima a pessoa da experiência já relatada por outras pessoas com a mesma hashtag e a insere num discurso específico de maneira muito sucinta, sem que tudo isso seja prolongado narrativamente. É uma maneira econômica de se dizer coisas em nosso tempo. Mas não é o caso na obra de Montero, já que ela parece criar hashtags ou se apropriar delas de um jeito heterodoxo e que não cria diálogos externos.

“Mas Marie tinha #ambição. Bem, daquele jeito confuso e contraditório com que nós, mulheres, nos relacionamos com nossas ambições.” Nesse exemplo específico, Curie se torna uma quase #girlboss com sua #ambição. A hashtag é gratuita e não acrescenta nada à narrativa, além de uma possível banalização dos sentimentos descritos.

O uso das hashtags se torna mais interessante numa lista no fim do livro que elenca os termos usados e em que páginas podem ser encontrados. Isso permite que o leitor leia a obra em uma configuração diferente daquela que leu inicialmente, conectando trechos diferentes sob um único signo. Esse é um jeito inteligente e promissor de usar a ferramenta, mas assumo que ao tentar a nova ordem não houve, para mim, nenhuma ressignificação substancial dos temas abordados anteriormente.

A verdade é que Montero é muito boa em descrever os sentimentos de luto. “Quando morremos, levamos junto um pedaço do mundo”, afirma. E se um leitor se identificar com isso, o valor do livro se torna indiscutível. Mas, se não for esse o caso, talvez esse não seja um livro tão imperdível assim.

A ridícula ideia de nunca mais te ver
Rosa Montero
Trad.: Mariana Sanchez
Todavia
208 págs.
Rosa Monteiro
Nasceu em Madri, na Espanha, em 1951. Começou a publicar sua obra em 1976 e já tem mais de 30 livros. Ganhou o Prêmio Nacional de Letras Espanholas em 2017 pelo conjunto da sua obra.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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