Copying Beethoven de Agnieszka Holland, no Brasil rebatizado de O segredo de Beethoven e em cartaz nos cinemas, traz uma história fictícia que retrata os últimos anos da vida do compositor. Anna Holtz, brilhante e imodesta aluna do conservatório de música, é contratada para passar a limpo (ou “copiar”, como indica o título original) a partitura da Nona Sinfonia à medida que o mestre vai concluindo a orquestração em páginas garatujadas e indecifráveis a copistas menos treinados. Estamos a quatro dias da estréia de sua obra mais célebre, quando um Beethoven iracundo e quase totalmente surdo sobrevive de uma glória passada e desacreditado pela elite vienense. Numa cena emblemática, o genioso compositor recebe de Anna as primeiras transcrições e descobre uma ligeira “correção” que ela ousou fazer em sua música. O trecho em questão aparecia todo ele escrito em Si maior, mas a copista decidiu alterar um dos compassos para Si menor, dando-se ainda ao desplante de explicar à fera boquiaberta com tamanha audácia que a intenção dele era ter feito isso mesmo, mas se confundiu na hora de fazê-lo! Indiferente à tempestade que se aproxima, Anna vai ao piano, toca o trecho como o encontrou e diz que daquela maneira comporia Rossini ou Boccherini. Toca de novo, agora modulando para Si menor o compasso da discórdia, e là voilà: uma quebra na seqüência natural de forma a criar uma expectativa e conseqüente tensão, retornando em seguida ao porto seguro da tonalidade original. Segundo Anna, essa seria a autêntica e genial solução beethoveniana. (É possível que toda Viena tenha ouvido a explosão, mas a passagem com a fantasiosa intervenção atribuída à aprendiz consta de fato do último movimento da Coral.)
Eis aí o conceito que se quer resgatar aqui: a previsibilidade, no enfoque da criação artística. Imagine-se uma escala em que, num de seus extremos, esteja o que o cérebro humano interpreta como natural e previsível segundo um ordenamento-padrão e, no extremo oposto, o paroxismo de nada vir na forma ou lugar esperados. Os diferentes graus dessa escala são pontuados de acordo com o quanto há de ruptura em relação a uma ordem preconcebida ou lógica. Nos dois extremos a tensão é nula; para que ela exista é necessário, não apenas o imprevisto, mas também que o cérebro possa reconhecer o padrão atrás da ruptura. Aplicando-se a sabedoria popular a este caso, é mais uma vez a dose que diferencia o remédio do veneno, sendo que a arte quer distância de ambos. Obviamente, há que se considerar também a evolução: o que um dia foi o inesperado, o tempo se encarregará de tornar previsível — e o caso do Si menor constitui um exemplo perfeito.
Há um outro aspecto interessante relacionado à mesma idéia: a tendência do leitor/espectador é acreditar sempre e sem restrições em tudo o que o narrador conta. De resto, o “confiar desconfiando” pode até servir como um objetivo a ser perseguido pelo ser humano, mas não é essa a atitude mental natural. No contexto da ficção, um narrador não confiável é por si só um elemento dos mais imprevisíveis. E, justamente por esta razão, um desafio constante à perícia do autor.
Em seu mais recente romance, Deixei ele lá e vim, Elvira Vigna constrói uma narrativa que foge do previsível valendo-se de um narrador não confiável. Como se pôde ver até aqui, é uma aposta alta. Primeira conseqüência: trata-se de um livro difícil de ser resumido sem que se corra o risco de antecipar num descuido aquilo que competiria ao leitor ir descobrindo paulatinamente. Restrinjamo-nos, pois, ao mínimo necessário.
Quem narra a história em primeira pessoa é Shirley Marlone. Desempregada, ela mora num cômodo alugado na favela do morro do Vidigal carioca e está decidida a mudar-se para São Paulo. Na véspera de viajar, vai à procura da amiga e vizinha Meire, que trabalha no restaurante de um hotel cinco estrelas à beira da praia, levando consigo uma grande e inusitada soma em dinheiro. Poucos são os hóspedes e estranhas as criaturas que gravitam em torno deles numa suposta baixa temporada. Shirley decide jantar no restaurante enquanto espera que acabe o expediente da amiga, quando então se junta a elas uma terceira personagem, Dô, e as três resolvem passar a noite no hotel, instaladas sob um caramanchão de frente para o mar. Bebem vinho, fumam maconha, jogam conversa fora, dormitam. Na manhã seguinte, Shirley descobre ter havido uma morte e chega ao cúmulo de não ter certeza se foi ela ou não a responsável. Segue-se a investigação do caso, cujo desfecho está longe de ser conclusivo. A partir desse tempo presente, várias passagens da vida da protagonista-narradora são contadas em flashback, trazendo à tona situações que só reforçam as muitas incertezas da história. Aliás, incerteza e imprecisão são recursos que pautam toda a narrativa e continuam instigando após o ponto final.
Com uma nítida queda pela ficção policial, consenso formado a partir de seus quatro títulos anteriores voltados ao público adulto, Vigna acompanharia a tendência atual de subversão do modelo clássico. Mas o que existe de policial na trama de Deixei ele lá e vim limita-se à morte misteriosa e a alguma ação para elucidá-la. O grande movimento é de uma ordem diversa da esperada: o leitor logo vai se dar conta de que importa menos descobrir a identidade do assassino do que desvendar quem é de fato a narradora — este, sim, o verdadeiro enigma. Parte do mistério se resolve, ainda que de maneira cifrada, na última página, e por um detalhe que bem poderia explicar a personalidade errática de Shirley. Fica-se tentado a voltar ao início e refazer a leitura depois de resolvida a charada, pois de um golpe a história ganha um novo sentido. O pulo-do-gato traz, sem dúvida, um charme adicional à trama. Ele chega a ser insinuado em alguns momentos antes do final, quando a percepção do leitor está habilmente desviada para outro ponto e não consegue flagrá-lo. Ainda que cenário, personagens ou mesmo a linguagem não coincidam, há aspectos que chegam a evocar o espanhol Manuel Vázquez Montalbán do belo e provocante Quarteto.
Vacilo inicial
Vigna demonstra segurança e técnica suficientes para sustentar uma narrativa que apresenta, pela própria concepção, um alto grau de complexidade. Isso não evita que o livro abra de maneira algo confusa, custando alguns capítulos para afinar e dizer enfim ao que veio. Não se trata obviamente de uma questão secundária, uma vez que ela tem o poder de afastar na arrancada um leitor menos paciente. Mas o vacilo inicial acaba diluído e entra na conta da atmosfera de incerteza à qual a autora se propõe. Vencido o obstáculo, a mão é firme, própria de quem sabe aonde e como quer chegar.
Chama a atenção a naturalidade com que Elvira Vigna compõe seu elenco com tipos quase todos tirados da escória social, estendendo-lhes um olhar sem preconceito ou compaixão. Ela não fica alardeando aos quatro ventos de onde eles vêm ou quem eles são, muito menos lastimando a sorte que não tiveram na vida, e o leitor acaba por esquecer esses detalhes. Aliás, a autora quer que a desvalia de seus personagens fique exatamente nisso: um mero detalhe da história.
O discurso é seco, construído com frases curtas, muitas vezes sincopadas, onde os adjetivos raramente são bem-vindos. Antes de sugerir a crueza própria de quem pretende atingir o leitor no estômago, a economia resulta num texto limpo e direto que dispensa filigranas e artimanhas estilísticas. Há uma evidente preocupação com a eufonia dentro de uma estética contemporânea e muito bem adequada ao universo retratado. O pragmatismo da linguagem não exclui a possibilidade de surgirem belas metáforas, como a que aparece no trecho em destaque.
A capa de Deixei ele lá e vim, assinada por Kiko Farkas sobre foto de Mônica Vendramini, traz uma imagem suburbana que diz muito do enredo: uma janela aberta para o interior de uma peça onde se vê uma cortina, um eletrodoméstico, um quadro, uma cadeira, uma figura humana. Na perspectiva da fotografia, nenhum desses elementos aparece por inteiro: meia janela, um pedaço da cortina, outro de um provável freezer horizontal, a quarta parte do encosto da cadeira, a cabeça e um dos ombros de um ser indefinido e de costas. Pode ser tanto um boteco de periferia como uma cozinha improvisada. Ou, o mais provável, uma casa de único cômodo. Do solitário personagem não se distingue idade ou cor; presume-se que seja uma menina pela pequenez e pelo que parece ser um decote feminino. Tudo combina nesse ambiente do qual se vê apenas uma parte e quase que por uma fresta. Haverá um detalhe escondido — um Si menor — que a seu tempo mostrará não ser o quadro tão óbvio como se pensou à primeira vista.