Os paradigmas da pós-humanidade

"Movimento 78", de Flávio Izhaki, chama atenção para os perigos da tecnologia, projetando um mundo no qual as inteligências artificiais almejam o poder
Flávio Izhaki, autor de “Movimento 78” Foto: Ana Alexandrino
01/07/2022

Em 1997, o russo Garry Kasparov era o enxadrista a ser batido no mundo. Seu virtuosismo e invencibilidade levou a empresa IBM a desenvolver o supercomputador Deep Blue, com um software criado especialmente para jogar xadrez, e lhe propor um desafio homem vs. máquina. Realizada em Nova York, a disputa teve dois matches de seis partidas. Kasparov venceu a primeira com facilidade, porém, no 44º lance do segundo jogo, o computador executou um movimento impressentido, levando o russo a suspeitar de que a máquina estava sendo manipulada por alguém. O gesto inesperado desestabilizou psicologicamente o campeão mundial, que acabou sendo derrotado.

Duas décadas depois, foi a vez do sul-coreano Lee Sedol enfrentar uma inteligência artificial numa partida de Go, um jogo de tabuleiro cujo objetivo é usar as peças para conquistar território. Numa disputa de cinco jogos, o multicampeão asiático teve como oponente o computador AlphaGo, desenvolvido pelo Google. Por ser um jogo baseado na criatividade e na intuição (ao contrário do xadrez, condicionado por padrões e cálculos), Sedol presumiu que venceria sem dificuldades. Para seu total espanto, a máquina ganhou as três primeiras partidas. Então, ao realizar o movimento 78, o AlphaGo cometeu um erro e passou a se comportar de modo estranho, permitindo a vitória do sul-coreano. O gesto em falso, até então inconcebível para um software, possibilitou o último registro de superioridade de um humano sobre uma inteligência artificial.

O reagente simbólico deste acontecimento é o que intitula e mobiliza toda trama de Movimento 78, romance de Flávio Izhaki. Combinando pesquisa documental e projeção imaginativa, o autor carioca aborda a relação complexa entre seres humanos e tecnologia pela proposição de que a convivência gradativamente se transformou em rivalidade. Uma quebra dos paradigmas evolutivos, antes fundamentados no progresso perene e na integração, que foi inaugurando a era do pós-humano, um estágio da sociedade no qual o ambiente virtual e os artefatos tecnológicos passaram a regular a vida cotidiana e ter arbítrio sobre os mecanismos do controle global.

Não é um livro de ficção futurista, contudo. E sim um enredo que se pauta por um futuro em andamento, idealizando consequências radicais a curto prazo. Assim, após um intrigante preâmbulo, a história salta para o fim do século 21, nas dependências de um estúdio onde está prestes a ocorrer um debate entre candidatos à presidência. De um lado está Seiji Kubo, tenso, calculando milimetricamente sua conduta e palavras, pois a avaliação popular acontece em tempo real, através de hashtags e percentuais. Sua maior preocupação, porém, deve-se ao fato de seu adversário ser uma inteligência artificial.

Thomas Beethoven defende um governo estabelecido em terabytes de conhecimento e na precisão e integridade das máquinas, sustentando uma previsibilidade matemática para a solução de problemas. Por isso, quando o candidato humano se escora em feitos históricos e numa compatibilidade ontológica inerente apenas à humanidade, vira alvo de piada. “O ser humano não está preparado para lidar com cenários que ainda não aconteceram, mesmo que seja claro que serão problemas no futuro”, desdenha o computador.

A trama recua, então, para 2019, acompanhando a rotina de um casal e um filho de dois anos, que estão, de uma forma que vale ser omitida para não estragar a experiência da leitura, vinculados ao debate supracitado. Um dos adultos trabalha numa empresa que está implantando um programa capaz de identificar doenças e administrar o tratamento antes que o mal se instale no organismo. A filiação a um experimento assentado na probabilidade em contraposição aos desígnios pragmáticos do presente é um dilema que vai assombrar estes personagens, ressoando em outra situação controversa quatro anos depois.

Em 2023, a escola que o filho estuda incorpora uma nova tecnologia de ensino com a proposta de filtrar as especialidades do aluno e investir numa potencial aptidão profissional, causando num dos pais, abalado por um drama pessoal, a sensação de que o plano é justamente neutralizar as fraquezas, as instabilidades emocionais, e priorizar uma formação neutra, prática, suportada por equações e critérios técnicos. Uma geração cuja mente é treinada pela máquina para ter a mesma eficácia da máquina, com circuitos calibrados para entregar um bom resultado. “O mundo hoje é muito diferente. Você sabe. E já podemos vislumbrar um futuro ainda mais diferente e a escola do século 20 não faz mais sentido”, sentencia a coordenadora escolar.

Crítica e distopia
Dentre os debates propostos por Izhaki, talvez esse seja o mais latente: divisar um futuro destituído de humanidade, no sentido epistemológico da palavra, em que as relações sociais serão intermediadas por algoritmos, num processo de transformação da realidade dentro de uma simulação constituída de avatares e operações lógicas. Como atestado de iminência, o autor entremeia seus episódios ficcionais com textos de teor ensaístico, dando conta de exemplos tirados da campanha de um time inglês que delegou a táticas e estatísticas seu sucesso no campeonato, apostando num futebol sistemático e sem magia, e da quebra das barreiras estéticas e metafísicas da arte, ao se reportar um nicho de produção de pinturas, livros e músicas por inteligências artificiais sem a interferência de uma programação prévia. Por outro lado, um relato passado durante a Segunda Guerra ressalta a compaixão humana que transcende lados opostos de um conflito. Kubo, aliás, usa desse lance de empatia para defender um governo sem a participação de inteligências artificiais, no que o candidato-máquina responde: “O ser humano precisa inventar utopias para sobreviver a ele mesmo”.

O significado da frase tem um efeito reverso na natureza do enredo, que flerta com uma distopia sem hecatombe e histeria, alertando sobre os perigos da tecnologia em tom baixo, pela fleuma dos ritos cotidianos de um mundo mudado em alguns aspectos, mas sem perder os sestros de sempre. Por sinal, o autor parece mais intencionado em produzir um dispositivo de pensamento crítico do que uma literatura de ficção. Usar de convergências e elipses para edificar uma primeira camada armada por fragmentos movediços no espaço-tempo, que dão conta da vivência de um núcleo familiar, sobrepondo um veio interno onde reside a verve, o centro nervoso do livro que incita o leitor a analisar seu próprio convívio com a tecnologia e ponderar se a relação, de alguma forma, não se tornou dependência, que se tornou domínio.

Izhaki acerta por não oferecer respostas simplistas, por desenhar um painel de possibilidades que convida a reflexões e entendimentos; inclusive no que diz respeito aos argumentos defendidos pela máquina. Não por menos, a presença da obra do russo Isaac Asimov paira sobre o enredo, em especial as narrativas nas quais humanos e não humanos coabitam a sociedade do futuro — androides programados para servir e que, em algum ponto, rebelam-se e pleiteiam domínio.

Movimento 78 mostra que chegamos a este tempo. Por isso, apesar do estilo sóbrio de condução, sua trama conserva algo de aterrador. Talvez vivemos uma ilusão de controle, talvez os desafios de Kasparov e Lee Sedol foram os últimos em que realmente houve disputa. Talvez as inteligências artificiais transcenderam a condição de oponente, e agora vivemos num mundo sobre o qual perdemos o domínio e nem percebemos.

Movimento 78
Flávio Izhaki
Companhia das Letras
184 págs.
Flávio Izhaki
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1979. É autor dos romances De cabeça baixa (2008), Amanhã não tem ninguém (2013) — eleito pelos jornais O Globo e Estado de São Paulo como um dos melhores romances brasileiros do ano e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom — e Tentativas de capturar o ar (2016), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

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