Os nerds também amam

"A fantástica vida breve de Oscar Wao" narra a epopéia de uma família de dominicanos assombrada por uma maldição caribenha
Junot Díaz por Ramon Muniz
01/09/2009

Oscar é um clichê. Gordo, tímido, fã de Star Trek e romances sci-fi (ficção científica). Destituído de qualquer trato com o sexo oposto — virgem, é preciso dizer? Nada do que se espera do protagonista de um romance. Mas esse não é o caso de A fantástica vida breve de Oscar Wao, primeiro romance de Junot Díaz, lançado 11 anos depois do sucesso de seu primeiro livro, a coletânea de contos Afogado (Record).

Em sua obra mais recente, Díaz retoma o tema dos imigrantes latinos para contar a epopéia de uma família de dominicanos assombrada por uma maldição caribenha — o fukú — que traz todo tipo de má sorte para Oscar Wao, sua mãe e irmã.

Assim como seus personagens, Díaz nasceu em Santo Domingo, capital da República Dominicana, e imigrou para os Estados Unidos aos seis anos de idade. Atualmente, é professor de escrita criativa no prestigiado MIT (Massachusetts Institute of Technology) e editor da Boston Review.

O autor já era considerado um dos melhores escritores contemporâneos, mas o sucesso de A fantástica vida breve, que faturou prêmios como o Pulitzer 2008 de melhor ficção, o tornou uma celebridade.

Cultura pop
E não é para menos. O livro tem aquela química que mistura elementos regionais, toques de realismo fantástico e experimentação da linguagem que agrada aos “gringos”. Vez ou outra, os americanos elegem um escritor latino para idolatrar — o chileno Roberto Bolaño, por exemplo, autor de Os detetives selvagens, cultuado após a morte prematura em 2003 como o novo fenômeno da literatura latino-americana.

Além disso, Díaz emprega com eficiência recursos literários da vertente pós-moderna que prolifera em parte das academias norte-americanas, onde o desconstrucionismo de Jacques Derrida é mais popular do que na própria Europa.

Que recursos são esses? A intercalação de vozes narrativas — ou polifonia bakhtiniana —, a fragmentação do tempo, o “laboratório lingüístico”, que mistura dialetos e gírias latinas (preservados na tradução para o português), a interpolação de “baixa” e “alta” cultura e a intertextualidade, por meio da qual o texto dialoga com a cultura pop das HQs, animês, pulps, ficção-científica e RPG (Role-playing Game).

Mas não é nada disso que torna a leitura de A fantástica vida breve… um excelente investimento do precioso tempo do leitor.

O que realmente importa é que todas estas estratégias estilísticas resultam numa narrativa ágil e bem-humorada, que diverte e comove o leitor. Se fosse tão “cabeça” quanto Oscar, talvez não funcionasse tão bem.

Na verdade, não é preciso decifrar os códigos do subtexto, saber quem é Uatu — o Vigia, Galactus, Darkseid ou Sauron, para se identificar com uma típica família suburbana e latina dos anos 1980. Mesmo a figura desajeitada de Oscar deve ser uma das espécies mais comuns na fauna humana oitentista.

Qual sala de aula não tinha um nerd para ser zoado nas aulas de educação física e bajulado no dia da prova de matemática para passar cola? Eram chamados de CDF (cu-de-ferro). Hoje, são conhecidos como geeks, escrevem blogs, alguns ficam ricos e outros nos prestam socorro toda vez que o computador dá pau — e nos olham como se fôssemos de outro planeta por achar incompreensível o informatiquês.

Mas, nos anos 1980, não era nada fácil a vida de um nerd, ainda mais vivendo entre a cultura latina do macho.

Fica difícil, então, não se envolver com o pobre Oscar, cuja inocência e docilidade — quando visto pelos olhos da irmã — demandam ternura. Ou na chatice e manias, que ressaltam no relato do colega de quarto na universidade e revelam um romântico cafona, quase insuportável. O garoto, finalmente, deixa o leitor irritado com a teimosia suicida, a ponto de desejarmos: “Morra logo de uma vez, Oscar!”.

República das bananas
Como nos romances baratos lidos pelo desafortunado teenager, a história também tem sua própria versão do Mal, tão mais convincente pela força da realidade histórica da República Dominicana. Os acontecimentos narrados se passam à sombra do ditador Rafael Leónicas Trujillo Molina, o “El Jefe”, que governou o país de 1930-1961.

“Governar” não traduz bem o que foi o trujilato. Sustentado por Washington no período da Guerra Fria, Trujillo construiu uma “versão caribenha de Mordor” que faria inveja a qualquer general sociopata africano, ao estilo de Idi Amin, ou ao vizinho haitiano Papa Doc.

Assim, torturadores, delatores, polícia secreta e lúgubres canaviais que se tornam locais de suplício compõem o cenário de imolação da família de Oscar. Três gerações assombradas por um misterioso fukú que coloca suas vítimas no caminho de El Jefe.

Primeiro, o avô materno de Oscar, um médico e comerciante bem-sucedido que um dia, ao se recusar ceder a filha para saciar os desejos do “Calígula do Caribe”, desaparece nos porões da ditadura trujilense.

E não foi por pura falta de sorte que a mãe do nerd se envolve com uma versão dominicana do delegado Fleury, algoz do DOPs e integrante do esquadrão da morte brasileiro? Fukú, também!

Finalmente, será a vez de Oscar, que também vai enfrentar o maligno DNA. O fim, portanto, é inevitável, afinal de contas, será uma vida breve. O grande mistério do romance será algo mais prosaico: conseguirá Oscar transar antes de ser sacrificado?

American way of life
Se a República Dominicana será para o garoto ao mesmo tempo calvário e (talvez) redenção, o desterro voluntário nos subúrbios de Nova Jersey, com sua atmosfera apática e cinza, não oferecem melhores opções. É somente o avesso do sonho americano de sucesso e prosperidade.

É ali que Oscar passeia feito espectro autista, entre a mãe cancerosa, a irmã que foge de casa para viver com um loser e Yunior (principal narrador do livro que retorna de Afogado), o colega de quarto de faculdade que “pega” todas as garotas e mantém o nerd gordo sob tutela.

Apesar de incapaz de ter uma relação além da amizade com o sexo oposto, Oscar se apaixona o tempo todo, até por uma prostituta aposentada. Sujeito estranho, fã de J. R. R. Tolkien “Senhor dos Anéis” e do autor de space opera E. E. “Doc” Smith. Escritor fracassado, que deixa cadernos escritos de livros nunca publicados.

O apelido Wao vem da pronúncia hispânica de Wilde, uma sacada de Yunior para uma das esquisitices do amigo:

No Halloween, Oscar cometeu o erro de se vestir de Doctor Who [personagem de homônima série de ficção científica britânica dos anos 1960], fantasia pela qual, aliás, ele morria de amores. Quando o vi passando em Easton, com dois outros babacas do Departamento de Letras, fiquei pasmo ao constatar o quanto ele parecia com aquele gordo gay Oscar Wilde e comentei isso com o mané. Você está igualzinho a ele, o que, na verdade, não foi uma boa para O, porque o Melvin foi logo perguntando, Oscar Wao, quién es Oscar Wao, daí, a gente passou a chamar meu colega de quarto dessa forma.

Tanto no college americano quanto junto à família, Díaz compõe, além do contexto político da trama, uma fina costura do ambiente cultural dos imigrantes latinos nos Estados Unidos. Estão lá os preconceitos, as diferenças, o racismo e as fronteiras que permanecem intactas nas tradições, nos guetos. O espaço de Oscar é o gueto, intransponível.

Kriptonita
Na primeira parte do livro, a gênese. Como uma criança normal — talvez um sensível demais para a aspereza do meio — virou um nerd depressivo depois de uma desilusão amorosa. O cruel ensino médio, a mãe, Beli, conformada com o filho e com a doença; a irmã, Lola, e o colega Yunior que, ao contrário, tentam tornar o herói mais sociável para se livrar da sina dos amores platônicos.

A caixa de Pandora da família Cabral é finalmente aberta e o leitor conhece a tragédia da mãe, marcada na adolescência, e, na segunda parte, a história do avô, Abelard — espécie de “paciente zero” do fukú.

O rodízio narrativo Lola/Yunior, cada um com seu ponto de vista sobre Oscar, conferem uma diversidade que contrasta com a desolação e homogeneidade da ditadura dominicana, que parece operar tão bem a ponto de comandar o destino das personagens. Ou seria apenas mais um efeito da temida maldição?

Não sabemos. E nem sabemos ao certo o que é, ao final, a tal kriptonita que pode matar o herói. Será que Oscar se rende ao tédio do mundo real ou ao amor por uma prostituta? Quem sabe, simplesmente, fukú?

Mais sereno e conformado, vemos Oscar Wao, depois de graduar-se, retornar à terra natal. É o próprio pesadelo foucaultiano sob Olho de Sauron. É o momento da Queda.

A fantástica vida breve de Oscar Wao
Junot Díaz
Trad.: Flávia Anderson
Record
332 págs.
Junot Díaz
Nasceu em 1968 na República Dominicana e atualmente mora em Nova York, onde é escritor, professor de escrita criativa no MIT e editor da revista Boston Review. Ganhou o prêmio Pulitzer 2008 de melhor ficção pelo romance A fantástica vida breve de Oscar Wao (2007), onde retoma o tema dos imigrantes latinos de seu primeiro livro Afogado (1996). Tem vários contos publicados em revistas como The New Yorker. É considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos nos Estados Unidos.
José Renato Salatiel

é jornalista e professor universitário.

Rascunho