Os mundos de Tom Wolfe

Em "Eu sou Charlotte Simmons", Wolfe descortina como vivem os universitários norte-americanos
Tom Wolfe, autor de “Eu sou Charlotte Simmons”
01/06/2005

Pobre Tom Wolfe. Não deve ser fácil vir ao Brasil lançar um romance e ter que responder perguntas sobre novo jornalismo. Deve ser muito pior que ser perguntado por que veste somente ternos brancos, ou se é mesmo um dândi (?). Mas novo jornalismo! Tenhamos dó do homem.

Que tal uma pá de cal neste tal de new journalism? Motivos para isso não faltam. Um deles é que o tal ganhou reconhecimento por meio do trabalho de Wolfe há mais de quarenta anos (há quem diga que o novo jornalismo nasceu antes, mas só ficou popular com Wolfe e Gay Talese, na década de 60). Outras duas boas razões para enterrar o assunto é que, fora do Brasil, o novo jornalismo já foi esquecido; e por aqui ele nunca chegou a existir.

Aliás, o que existe hoje em todo o mundo é um “novo novo jornalismo”, este que vemos na internet, noticiando em tempo real o que a televisão só mostrará à noite, e o que os jornais publicarão apenas no dia seguinte. E não deixa de ser paradoxal que o veículo que tem um espaço virtual que pode abrigar, sem custo extra, laudas e laudas de texto elaborado, tenha que trazer a notícia num formato curto e simples, pois o jornal on-line trabalha no giro do relógio e seu leitor não está disposto a debruçar-se sobre um tratado numa tela de computador.

Tom Wolfe deixou de trabalhar como jornalista há muito tempo, e desde então vem construindo uma sólida carreira de escritor. Não se faz referência aqui ao ensaísta e cronista, autor de livros de observação como Ficar ou não ficar, Da Bauhaus ao nosso caos, Radical chique ou A palavra pintada, entre outros. Não foi para falar dessas obras que Tom Wolfe veio ao Brasil, e muito menos do finado new journalism. Ele esteve aqui para apresentar um calhamaço de 684 páginas chamado Eu sou Charlotte Simmons, seu novo romance.

O título da obra é muito americano e realmente soa esquisito. Assim como nos títulos de filmes, a versão brasileira poderia ter sido adaptada. Mas a tradução não teria como evitar o americanismo deste e de todos os romances de Tom Wolfe. Charlotte Simmons pode ser considerado o quarto capítulo de uma tetratologia involuntária, iniciada com Os eleitos, e que seguiu com A fogueira das vaidades e Um homem por inteiro. Uma tetratologia que reúne quatro mundos americanos.

Estes mundos são retratados com base em protagonistas cultuados pelo american way of life. Os eleitos (Rocco, 1988), publicado nos Estados Unidos em 1979, fala do astronauta, mostrando como um americano comum abandona sua vida para fazer parte de um clã especial, formado por aqueles que serão preparados para voar num foguete, para pisar na lua, para serem transformados em heróis nacionais.

Os futuros astronautas foram eleitos, e por isso devem deixar de conviver com os mortais para viver num local separado, tendo como companhia somente outros eleitos, para que nada perturbe o projeto que começa com a alienação de suas mentes, pois um herói não pode pensar em nada a não ser em ser herói, representante máximo do poder de sua nação. Tom Wolfe mergulhou neste mundo, o do herói americano, e trouxe-o a nós com detalhes que somente um bom jornalista consegue captar, mas relatados em uma estrutura que apenas um ótimo romancista tem habilidade para montar. Não é um romance, mas os desavisados tranqüilamente o receberiam como um livro de ficção, que reconstitui com riqueza de informações o início da corrida espacial no auge da Guerra Fria.

Depois veio A fogueira das vaidades (Rocco, 1982) que, graças ao filme de mesmo nome, transportou o nome de Wolfe pelo planeta. É um romance sobre outro herói americano: o dinheiro de Wall Street. Wolfe novamente tece uma trama sólida, que tem como pano de fundo uma sociedade habitada por membros de um clã também especial: aqueles preparados para ganhar e perder milhões com apenas um telefonema. É o mundo do dólar.

Já Um homem por inteiro (Rocco, 1999) conta a trajetória do grande empreendedor americano. Charles Croker é um incorporador imobiliário que sonha em aumentar seus negócios cada vez mais. Para isso, somente dinheiro não basta, é preciso trânsito nas esferas mais altas. Falcatruas, acertos políticos e uma temporada fazenda de caça de Charles, que ninguém é de ferro. É o mundo do poder.

Heroísmo, dinheiro, poder. Com apenas essa trilogia, Tom Wolfe já teria conquistado seu espaço como o romancista que resumiu a grande história americana contemporânea, até porque as três obras foram recheadas com diversão, sexo, traição, carrões, questão racial e política.

Mas Wolfe foi além e surpreendeu quem achava que sua fórmula tivesse sido esgotada com Um homem por inteiro. Em Eu sou Charlotte Simmons ele nos apresenta a universidade americana, uma das melhores delas, no que ela tem de melhor para oferecer: tradição, câmpus magnífico, esportes, professores brilhantes, e alunos estúpidos que só pensam em sexo.

Com Eu sou Charlotte Simmons, Wolfe nos mostra que os jovens americanos sonham em ir para a universidade com um objetivo principal na cabeça, que é não estudar, nem ter aulas com ganhadores de prêmio Nobel, ou muito menos se graduar. Eles querem é transar. A universidade americana é o mundo do sexo.

E sabem quem Tom Wolfe escolheu para ser a protagonista desta aventura? Uma virgem. Charlotte Simmons, nascida em uma pequena cidade nas montanhas, é um animal em extinção nos Estados Unidos. Uma virgem puritana que se surpreende ao saber que o sexo é liberado nos dormitórios das universidades. Não apenas o sexo é liberado, como os dormitórios são mistos.

Ah, esses dormitórios. O grande sonho do jovem americano não é exatamente ir para a universidade, mas para o dormitório da universidade. O segundo grau está acabando e ele já começa a prospecção, escolhendo umas quatro opções de college. O mais importante é que não seja em sua cidade, pois aí não faria sentido sair de casa. A universidade não é o ingresso para o mundo adulto, para a formação profissional, mas o passaporte para uma temporada de muito sexo, pouca droga e pouco rock-and-roll, pois o que mais rola é cerveja e rap.

Charlotte Simmons não sabia disso. Do alto das montanhas, imaginava que as melhores universidades americanas fossem como o resto do mundo pensa que são: muito estudo, debates intelectuais, o trampolim para uma carreira.

Logo na primeira reunião em seu alojamento, a supervisora garantiu que a bebida não era permitida e que o dormitório misto não representava perigo algum a sua virgindade:

“Não significa que os rapazes de seu andar vão correr à vontade pelos corredores e pular na cama das garotas. Esse comportamento é malvisto. É considerado ridículo e estúpido manter relações com alguém de sua própria casa. É o que costumamos chamar de dormicesto.”

O que a supervisora omitiu era que, mesmo não sendo permitida, a cerveja era consumida como se fosse água. E que se o dormicesto raramente ocorria, era mais do que comum uma companheira de quarto trazer um rapaz para a cama, obrigando a amiga a dormir seja lá onde fosse. Charlotte sentiu isso na pele já na primeira semana quando foi sexilada (exilada sexual) por sua companheira de quarto, uma riquinha desinibida que mal lhe cumprimentava.

Mas apesar de dois defeitos graves: ser inteligente e caipira, Charlotte tinha duas virtudes fundamentais para se dar bem na universidade: era bonita e gostosa. Logo ela passou a chamar a atenção no câmpus, tornando-se alvo da cobiça de Hoyt Thorpe, um dos veteranos mais descolados da Dupont, e de Jojo Johanssen, estrela do time de basquete da universidade.

Com Thorpe, Wolfe mostra os grupos de alunos cool e privilegiados financeiramente o suficiente para alugar uma casa e montar repúblicas próximas ao câmpus, as chamadas fraternidades, onde são realizadas as melhores festas.

Com Jojo, Wolfe revela como funcionam os programas de esportes universitários, base para os esportes profissionais americanos. Os atletas têm privilégios que são questionados, até mesmo em relação ao ingresso na universidade sem capacidade intelectual para tal. Mas o fato é que são apadrinhados pelo sistema, pois os mesmos que os questionam são os que torcem e alimentam a rivalidade com as outras universidades nas quadras esportivas.

Charlotte acaba envolvendo-se com os dois, além de tornar-se amiga de Adam Gellin, um nerd habilmente escalado por Wolfe para fazer a conexão entre os protagonistas. Adam é tutor nos estudos de Jojo, outra mordomia para os atletas, e escreve para o jornal da universidade, para o qual prepara uma matéria sobre como Thorpe flagrou o governador da Califórnia recebendo sexo oral de uma aluna, dentro do câmpus da Dupont.

A universidade americana era um mito nunca questionado. Wolfe mostra que ela é tão vulnerável quanto qualquer faculdade mundo afora. Revela também que os jovens universitários dos Estados Unidos são tão despreparados quando os nossos, ou os da Cochinchina. A única vantagem é que eles têm os dormitórios, onde podem praticar com facilidade o que mais lhes interessa. Mas não deixa de ser muito divertido este mundo do sexo, como a puritana Charlotte Simmons acaba logo descobrindo: “Assim, a garota do interior, a garota da Província Perdida, tornara-se uma presença no câmpus num prazo extraordinariamente curto, apenas seis meses…”

Eu sou Charlotte Simmons
Tom Wolfe
Rocco
684 págs.
Paulo Ambrósio
Rascunho