Desde a publicação de Sacrifícios humanos, livro de contos da equatoriana María Fernanda Ampuero, a comparação com sua primeira obra, Rinha de galos, é inevitável. Para além das epígrafes de Clarice Lispector que abrem os dois, existe uma evidente continuidade entre a escrita de um e de outro. Ambos já de cara são bastante curtos, um pouco mais de 100 páginas cada e uma quantidade similar de contos. Mas, acima de tudo, aquilo que chama atenção e aproxima as duas obras é a brutalidade e a visceralidade da violência retratada ao longo das histórias.
Ao abordar alguns leitores das narrativas de Ampuero, deparei-me com a resposta de que a leitura do conto de abertura de Rinha de galos era mais que suficiente que alguém poderia ler da autora por toda uma vida. “Leio o segundo conto desse livro na próxima encarnação.” Nele, temos uma mulher que acorda vendada e se dá conta pelos sons e cheiros ao redor que foi sequestrada. E está sendo vendida em um leilão de criminosos. Diante desse cenário, a personagem tem de buscar uma estratégia para sobreviver.
Nessa cena inicial, temos talvez uma das características mais marcantes do livro. Embora a atmosfera das histórias seja definitivamente de horror, não há em nenhum momento qualquer aparição do sobrenatural e do fantástico.
Ampuero trabalha a partir de um realismo brutal. Essa escolha parece de tal forma importante para o livro que no conto Monstros uma das personagens, Narcisa, uma pré-adolescente que trabalha como empregada doméstica apesar de ser poucos anos mais velha do que as meninas de quem cuida, avisa algumas vezes: “Não é dos mortos que se deve ter medo, mas dos vivos”.
Aparições
Fico pensando que a frase de Narcisa, e talvez esse conto todo, poderia ser facilmente incluído em Sacrifícios humanos, tal a proximidade entre os dois. No entanto, o interessante é que nesse segundo livro não há o mesmo apego ao realismo que havia em Rinha de galos. Aqui há aparições demoníacas, uma criança que anda com sanguessugas pelo corpo, mortos-vivos e todo um conjunto de aparições sobrenaturais. Apesar disso, o perigo, a violência e o horror permanecem sendo algo protagonizado principalmente por aqueles que estão vivos, auxiliados pelas estruturas sociais como o machismo, a misoginia e a xenofobia.
No meio disso tudo, os mortos e outras aparições do sobrenatural acabam surgindo por vezes quase como um respiro, algo totalmente ausente de Rinha de galos. Penso particularmente nos contos As escolhidas e Sacrifícios, dois dos melhores do livro e nos quais me peguei rindo após a leitura. Longe de diminuir a força da violência demonstrada pelas narrativas, acredito que essas aparições dão ainda mais força ao alerta que Narcisa tentava passar às meninas sob seus cuidados. Esse alerta não deixa de ser também um que Ampuero parece querer dar aos seus leitores. Os mortos talvez até estejam por aí, mas não lhes dê atenção além da conta, são os vivos que devemos temer.
No ponto dessa transformação da Rinha aos Sacrifícios, em que desaparece o apego ao realismo, existe uma comparação possível entre os livros de Ampuero e Mandíbula, romance da equatoriana Mónica Ojeda. Esse romance foi indicado pela própria Ampuero em entrevista ao El País como um dos três livros essenciais da literatura latino-americana do século 21. Na escrita das duas autoras, há uma centralidade do tema da violência. Tal como em Rinha de galos, Mandíbula também se inicia com uma cena de sequestro. No entanto, nos dois casos há o interesse em elaborar as muitas maneiras como a violência acaba por fazer parte das vidas cotidianas, dos vínculos familiares e das relações com as cidades de jovens, particularmente as mulheres.
Formação às avessas
A trama de Mandíbula e muitos dos contos de Sacrifícios humanos podem ser lidos como histórias de formação às avessas, nas quais as personagens precisam encontrar maneiras de seguir vivendo apesar dos horrores cotidianos. Não consigo deixar de pensar que para as duas autoras, crescer e amadurecer passam também pela necessidade de encarar a brutalidade presente na vida mais íntima e mais cotidiana, particularmente se você é uma jovem mulher, e ainda mais se você mora em uma grande cidade da América Latina em que violência está muito menos escondida.
Ampuero, contudo, deixa bastante claro na montagem de seu livro que a solução para os dilemas existenciais-sociais das personagens não é necessariamente fazer as malas e emigrar para alguma ex-metrópole colonial. Pois a situação de ser uma imigrante não é muito melhor, como nos contos Biografia e Lorena, em que a personagem que dá o título à história narra a cruel transformação do estrangeiro bonitão, por quem se apaixona, em um marido violento com quem mora em um país que não lhe oferece nenhuma segurança.
Diante desse cenário de caos em que não se vislumbram muitas soluções satisfatórias para o sofrimento, as histórias de terror contadas por Ampuero acabam por capturar a ambivalência com as quais as personagens precisam lidar. Se por um lado, amedrontam e podem muito bem aterrorizar quem as escuta ou as lê, por outro elas têm um certo poder de canalizar o medo daquilo que nos cerca e servir de escape para aqueles que se sentem ameaçados, muitas vezes com razão, por um mundo, por uma cidade, por suas famílias e por tudo aquilo que temos de mais íntimo.