Um estranho ambiente, um anacrônico atelier de cartografia. A profissão de copista, há tantos anos extinta, move o protagonista do romance de estreia de Roger Mello, W. Toda sua luta é para se tornar o mais perfeito dos copistas. “Sou copista e não copiador, entende, Elisa? É diferente.” E este aparentemente é o mote de todo romance, um contraponto entre o artista criativo, de fato, e o que apenas se ocupa em copiar estilos e fases artísticas.
Roger Mello fez uma carreira sólida como ilustrador, escritor de livros infantojuvenis, diretor teatral e dramaturgo. Ganhou os mais importantes prêmios da área, mas, inquieto, resolveu migrar para o romance dito adulto, em que o protagonista e narrador, W, numa suposta conversa com seu irmão Egon, conta da vida em torno do pai deles, um dos principais cartógrafos de seu tempo.
A rigor não há um enredo. Tudo se passa no território do inconsciente, do fluxo de consciência. É certo que fala de uma suposta venda de segredos cartográficos por parte do pai, o que o teria levado à morte, mas nem mesmo isso está nos pressupostos da certeza. Também o duelo W e Egon, opostos em quase tudo, Oeste e Leste, pode ser visto como base narrativa, pois isso não se sustenta se temos um único narrador, com brevíssimas passagens de um narrador onisciente.
Você esquece tão fácil das coisas como eu me lembro naturalmente de tudo. Fui preparado pra lembrar, é simples. Você foi preparado pra esquecer. Somos uma dupla horrível. Não, eu disse horrível, eu não disse uma dupla terrível. É diferente. Somos um monstro também, não vá começar a rir. Somos um monstro feito de duas partes dependentes. Lembra dos monstros simbiontes? Somos eles.
Há ainda um estranho fluxo de tempo, com viagens aéreas e passagens pela moderna Dubai.
Ao que parece Roger tentou, e conseguiu, criar uma trama múltipla, com várias pontas. A primeira destas pontas, e talvez a principal, estaria no ambiente de mistérios e segredos que cercava o mundo da cartografia, isso na era das grandes navegações. Quebrando este ritual, W tem um mapa tatuado nas costas como forma de contrabandear suas importantes informações, os segredos tidos como de estado.
De uma coisa nenhum de nós dois esquece: os mapas de Portugal são guardados a sete chaves no Armazém, na Casa da Mina. E mesmo um cartógrafo importante como o seu pai sempre foi obrigado a devolver os instrumentos ao sair de lá no fim do dia. E manter segredo sobre as informações dos navegadores.
Contudo isso só nos leva a um homem, W, que se quer anacrônico. Ele trabalha tudo com as mãos, artisticamente, se esmerando em desenhar zéfiros, rosas-dos-ventos, mantícoras, peixes-voadores, monstros pré-diluvianos. Demonstra como se dava a confecção das tintas e dos pergaminhos, e todos os instrumentos de um mundo passado. E neste mesmo ritmo salta para o presente onde tudo isso cheira a mofo, a esquecimento.
Na verdade, W se formaliza como um romance sobre sentidos. Primeiro é o medo de lidar com mistérios, depois o prazer da criação artística, mesmo quando se trabalha com algo utilitário, como os mapas. Seguem-se as sensações dos cheiros das tintas, da textura dos pergaminhos, o desagrado das gorduras impregnadas nas roupas.
Tudo é delírio, no entanto, nada se confirma, nem a existência dos outros personagens, nem mesmo o tempo em que ocorrem as ações. “Se você estivesse aqui, Egon, eu ia olhar pra você e dizer que o seu pai anda mais vivo agora, depois de morto.” Loucura, então? Apesar de ter transposto para o teatro o Elogio da loucura, de Erasmo de Roterdã, Roger não parece aqui disposto a fazer uma apologia à insanidade.
Sua intenção, parece, é estabelecer o fascínio de uma mitologia arcaica, formada pelos atraentes monstros desenhados nos mapas antigos. E daí surge este inquietante personagem, W, profundamente preso ao passado, mas fincado numa modernidade que não o encanta, que não o atrai, amarrado que está em um caminho sem volta. “A primeira vez que saiu de casa, W já não soube mais voltar.”
Numa linguagem que se divide entre o rigor lusitano quinhentista e a urgência dos tempos atuais, Roger Mello cria um romance de leitura tensa, mas divertida, e que deve ser olhado como uma apologia à beleza, mesmo quando se ocupa de monstros e lendas improváveis. Uma literatura escrita com as tintas do lirismo.