Os mandamentos do antipoeta

Com ironia, humor e sarcasmo, Nicanor Parra buscou tirar a expressão poética do pedestal, trazendo os desvalidos e necessitados para o centro dos versos
Ilustração: Nicanor Parra por Dê Almeida
05/12/2020

Além de ter sido compositor de canções folclóricas, professor de física e matemática, poeta satírico e tradutor — ou “transcriador” — de Shakespeare, o chileno Nicanor Parra (1914-2018) foi um construtor de microdramas poéticos. Em seu poema Autorretrato, que compõe o livro Poemas e antipoemas (1954), lemos o monólogo de um professor que denuncia as condições precárias dos trabalhadores de sua classe, mostrando aos jovens alunos o estado de degenerescência física e psicológica em que se encontra.

O autorretrato apresenta um homem cadavérico, sem sonhos nem esperanças, um exemplo vivo do indivíduo que se dedicou a uma tarefa e só recebeu em troca o indispensável à sua sobrevivência, “um pão imperdoável/ Duro como a cara do burguês/ E com cheiro e gosto de sangue”. A fala é direcionada a um público que pode ser também o próprio leitor, criando uma aproximação de ordem teatral, na tentativa de agir diretamente sobre a realidade política do espectador.

Em Solilóquio do indivíduo, do mesmo livro, nos deparamos com um poema antológico de 124 versos. Nele, o autor elabora a forma do solilóquio ao mesmo tempo em que realiza uma crítica da manipulação desta forma por meio do bordão “Eu sou o indivíduo”. Esta fórmula é repetida 19 vezes ao longo do poema. E além de imprimir um ritmo monótono à composição, ela marca a crítica ao traço individualista de uma poesia ensimesmada e egocêntrica. Aqui, o personagem narra a história do ser humano como uma construção centrada na ideia da individualidade, partindo da pré-história à modernidade e chegando ao seu inevitável fracasso. Nesse sentido, a repetição do bordão “Eu sou o indivíduo” também desempenha no poema a figura de uma reafirmação insistente da individualidade em diversas fases da história, a ponto de se tornar inoperante e banalizada.

Também na maioria dos poemas de Versos de salão (1962), o escritor desenvolve uma poesia dramática, dando voz à figura de um mestre de cerimônias, um sujeito eloquente, capaz de formalizar raciocínios agudos e nem sempre agradáveis, um sujeito dotado de uma dicção concisa e direta. Esse tom pode ser lido em quase todos os poemas do livro e se consolidou como um traço parriano radicalmente distinto da grandiloquência obscura, mágica e elevada que vemos em Pablo Neruda, por exemplo, quando lemos Residência na terra (1935) ou Canto geral (1950), textos marcados pela sisudez e solenidade do sujeito lírico que interpreta ou cria realidades às quais somente ele é capaz de acessar ou revelar.

A construção desta poética fundada em um princípio comunicativo já estava presente em Poemas e antipoemas, ela é a essência da antipoesia, tal como a praticava Nicanor Parra, mas é em Versos de salão que o poeta pôde aprofundar e consolidar essa prática. O poema Montanha russa explica, de forma dramática, essa mudança no status quo da poesia de sua época:

Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do tonto solene;
Até que eu vim
E me instalei com minha montanha russa.

Subam, se quiserem.
Claro que eu não me responsabilizo se descerem
Botando sangue pela boca e pelo nariz.

Esta metáfora da montanha russa pode se desdobrar na imagem do poeta como um mercador de atrações inéditas e radicais, um mercador itinerante à procura de um público para o seu parque de diversões. Seu exercício volta-se simultaneamente para duas frentes: as tradições do passado e as possibilidades estéticas do presente. Sua avaliação do passado é articulada por uma visão crítica realizada tanto pela negação de uma certa tradição, a do “recolhimento” do “tonto solene”, quanto no sentido da proposição do novo ou do diferente, a “distração”, o escândalo e o choque.

O poeta segue uma lógica do desbravamento da sensibilidade de seu público. Propõe experiências até então impensadas, mas não as impõe, antes alerta para as suas consequências, isentando-se de toda e qualquer responsabilidade sobre possíveis danos. No plano da leitura, é possível que os danos não sejam físicos como sugere a metáfora dos passageiros que descem da montanha russa “botando sangue pela boca e pelo nariz”, mas a transposição da imagem para o campo social afirma que danos morais estão praticamente garantidos.

Personagens
Os personagens de Nicanor Parra, suas várias faces, estão em permanente diálogo com algum interlocutor tendo como objetivo apontar dilemas morais, desvios  éticos, situações-limite, sempre com um ceticismo e um pessimismo que beiram o niilismo, mas que vislumbram, no interior do caos humano, a possibilidade de uma revolução transformadora. No poema Advertência, também presente em Versos de salão, esse diálogo é buscado por meio de uma conversa franca com o leitor: “Eu não permito que ninguém me diga/ Que não compreende os antipoemas/ Todos devem rir às gargalhadas.// Pra isso quebro a minha cabeça/ Para chegar à alma do leitor”.

O personagem construído pelo poeta chama atenção para o que vai se tornar uma constante em sua poesia: o riso e a gargalhada, muitas vezes resultantes da sátira, da ironia e do sarcasmo com que seus poemas são trabalhados. E a ironia de um livro como Versos de salão está justamente no fato de que os poemas que o compõem não são “versos de salão”, isto é, não são poemas declamatórios, bem comportados, altissonantes ou mesmo poemas de circunstância; muito pelo contrário, são poemas satíricos, cujo objetivo é incomodar ou até mesmo aterrorizar seus espectadores, como acontece nos últimos versos de Três poesias, quando o poeta escreveu, de modo estranho, contorcendo a sintaxe num anacoluto: “Só uma coisa é clara:/ Que a carne se enche de vermes”.

Em Canções russas (1967), ele utiliza o procedimento de despersonificação para dar voz a um personagem que atende aos seus ideais de construção de uma poesia capaz de abarcar também os desfavorecidos, uma poesia do homem comum. No poema Mendigo, o autor elenca uma série de profissões e suas principais características, seus respectivos papeis na sociedade. É uma descrição satírica, vale dizer, como quase todas as observações socioculturais de Nicanor Parra. Neste poema, a profissão do mendigo, segundo ele próprio, é cantar diante de janelas fechadas, para ver se lhe abrem e lhe dão um trocado. Como não enxergar aqui um paralelo entre a profissão do mendigo e a profissão do poeta? Ambos performam uma arte a fim ganhar o seu sustento; ambos, na maioria das vezes, têm o seu trabalho subestimado. Como não ver aqui, além do paralelo entre o mendigo e o poeta, uma alusão à famosa passagem de República, de Platão, que discorre sobre a inutilidade relativa dos poetas na sociedade?

Mendigo

Na cidade não se pode viver
Sem ter um ofício conhecido:
A polícia faz cumprir a lei. 

Alguns são soldados
Que derramam seu sangue pela pátria
(Isto vai entre aspas)
Outros são comerciantes astutos
Que te roubam um grama
Ou dois ou três quilos de ciriguelas

E os de mais além são sacerdotes
Que passeiam com um livro na mão.

Cada um conhece seu negócio.
E qual vocês acham que é o meu?

Cantar
olhando as janelas fechadas

Para ver se as abrem
E
  me
     deixam
             cair
                uma
                     moeda.

Não foram poucas as ocasiões em que Nicanor Parra se viu diante da pergunta: “O que é a antipoesia?”. Em diversas entrevistas, o poeta a definiu como uma poesia da linguagem comum, da fala cotidiana, cultivada pelas classes mais baixas, pelos menos estudados. Essa tomada de partido foi um movimento político cujo objetivo era o rebaixamento da poesia, retirando-a de uma esfera elitizada e pouco compreensível e levando-a para um lugar comum e democrático. Daí o giro parriano na direção da cultura popular e principalmente no sentido da canção popular, dos provérbios e anedotas extraídas das ruas, do imaginário campesino ou urbano. Com a tomada de partido pela linguagem comum, também entraram no imaginário poético de Nicanor Parra personagens menores, objetos desconsiderados pelos repertórios poéticos vigentes até então.

Paródia e despersonificação
A escrita de Nicanor se destacou por sua aparente facilidade, mas ao lado dessa espontaneidade estava um processo sofisticado e complexo de construção e composição poética. Nicanor Parra levou a comunicação, a construção das formas do discurso para o centro das disputas políticas e poéticas de sua época. A linguagem e as formas poéticas foram a essência geradora de sua antipoesia. Esse movimento, por si só, é um gesto paródico. A paródia (canto paralelo) é o deslocamento de um objeto, conceito ou obra de arte para um espaço ao lado, criado pelo parodista com o intuito de gerar um efeito cômico, sarcástico, político, etc. A antipoesia de Nicanor Parra, em muitos sentidos, é uma paródia desmedida dos grandes poetas chilenos Pablo Neruda, Gabriela Mistral e Pablo de Rokha. Daí a obsessão parriana em trabalhar e retrabalhar formas poéticas e retóricas elementares que sobreviveram a todas as épocas e sustentaram a própria existência da poesia lírica e da poesia dramática: o sermão, o solilóquio, o monólogo dramático, o epigrama e tantas outras.

Em seu livro Obra gruesa (1969), o poeta aplicou com maior sistematicidade a união das técnicas da paródia e da despersonificação dramática. O resultado é um livro ainda mais crítico que os anteriores, disparando abertamente na direção de costumes e alvos eleitos pelo poeta desde o início de sua carreira literária: os desvios da religião e da igreja, o capitalismo, os vícios humanos. Textos sagrados, como a oração do Pai nosso, são profanados, parodiados, convertidos em críticas a um sistema de crenças e a uma humanidade corrompida que não mereceria a atenção de um deus generoso como o deus cristão. No poema, as posições de poder se invertem e é o próprio deus quem sofre pelos erros humanos: “(…)// Pai nosso que estás onde estás/ Rodeado por anjos desleais/ Sinceramente: não sofras mais por nós (…)”.

Outros textos parodiados em Obra gruesa e em livros anteriores prepararam o terreno para o ápice da união dessas duas técnicas: o livreto com os Sermões e prédicas do Cristo de Elqui (1977), o primeiro de uma série de livros que resgatariam a memória de Domingo Zárate Veja, o “Cristo de Elqui”, personagem folclórico que percorreu o Chile dos anos 1930 pregando a palavra de Deus e cuja excentricidade, fervor e dedicação à palavra marcaram o imaginário chileno. Zárate escreveu inúmeros livretos com seus sermões, pensamentos e aforismos. Eles eram vendidos em suas andanças e pregações. Obviamente, muitos consideraram-no louco. Nicanor Parra não fez mais do que dar continuidade ao seu trabalho, ou a sua loucura. Realizado nos anos 1970, sob a ditadura sanguinária de Augusto Pinochet, o projeto dos sermões e prédicas do Cristo de Elqui permitiu que Nicanor Parra continuasse a realizar, de forma quase fictícia, suas críticas, sátiras e paródias bem-humoradas, inclusive em apresentações públicas. Os livros traziam ainda uma boa documentação a respeito do Cristo de Elqui, com fotografias, assinaturas, notícias, o que demonstra o grande interesse de Nicanor Parra pela vida e obra de um personagem da cultura popular assim como era grande o seu interesse pela própria cultura popular.

De acordo com a famosa “escala poética” esboçada por Fernando Pessoa, os poetas que atingem o mais alto grau da poesia são aqueles que conseguem levar “a poesia lírica — ou qualquer forma literária análoga em sua substância à poesia lírica — até à poesia dramática, sem, todavia, (…) lhe dar a forma do drama, nem explícita nem implicitamente”.

Nicanor Parra foi um desses poetas; assim como o poeta português, o chileno foi um poeta que era vários, “um poeta dramático escrevendo em poesia lírica”. No caso de Fernando Pessoa, a despersonalização radical da poesia lírica resultou no fenômeno da criação de seus heterônimos; já no caso de Nicanor Parra, ela foi traduzida na utilização recorrente de técnicas como o monólogo dramático, o solilóquio e sobretudo a paródia. Esta última, uma peça chave na diferenciação entre os dois grandes poetas. Se Fernando Pessoa levou a poesia lírica à condição de poesia dramática para elevá-la a um nível superior — o drama era o mais nobre dos gêneros poéticos, na visão de Aristóteles —, Nicanor Parra, ao contrário, levou-a a esta condição de forma irônica, com o objetivo de rebaixá-la, aproximando-a cada vez mais de seu público. Como ficou registrado em seu poema Manifesto, Parra considerava a poesia “um artigo de primeira necessidade” e o poeta “um homem como todos/ um pedreiro que constrói seu muro: um construtor de portas e janelas”. Isto é, um construtor de abertura para novos pontos de fuga ou para novos horizontes.

Só para maiores de cem anos
Nicanor Parra
Trad.: Joana Barossi e Cide Piquet
Editora 34
288 págs.
Danilo Mataveli

É poeta, crítico e professor. Publicou de forma independente a plaquete Especificamente sozinhos e Voluntários da insônia. Possui licenciatura em Letras (UFRJ) e mestrado em Ciência da Literatura (UFRJ). Atualmente cursa doutorado em Ciência da Literatura (UFRJ) e prepara um livro de poemas.

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