O menino do lado de lá, de J. R. Penteado, apresenta tantas camadas de significação que é difícil até de ter certeza da faixa etária a que se destina. Isabel Lopes Carvalho, no posfácio, com razão, descreve a obra como inclassificável. Existem, entretanto, alguns paralelos possíveis. Naturalmente, como ocorre com toda boa literatura, a análise a seguir é apenas uma das muitas existentes e pode até mesmo discordar da visão do autor. Ao ler O menino do lado de lá, dois títulos surgem em diálogo: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e As cidades invisíveis, de Italo Calvino. A ligação com Alice é sugerida não apenas na estrutura narrativa do livro, mas também no seguinte trecho:
De repente uma agressão o atingiu em cheio, no cerne de sua alma, e o derrubou da árvore protetora. Depois de um tempo, deitado na relva, refastelado e recuperando-se do bombardeio, tentou subir novamente, mas o tronco crescera tanto que o primeiro galho, potencial alavanca, estava numa altura intransponível. Ou será que ele que diminuíra para caber de alguma forma naquele mundo que parecia aguardá-lo e que no instante em que pensou isso já se sentia atrasado? Pensando em Alice cogitou se não teriam as frutas dali o mesmo efeito da poção que faz encolher e do bolo que faz crescer do País das Maravilhas e resolveu dar o nome da(s) princesa(s) de Alice, mesmo sem saber se viria um dia a chamá-las pelo nome, mas este lhe parecia um ótimo nome de princesa.
Algumas das questões humanistas presentes em Alice podem ser encontradas em O menino do lado de lá: a dor do crescimento, como lidar com perdas, a construção do Eu, o ínterim entre o Eu e o Outro, a existência de múltiplas realidades e as muitas camadas de significação do mundo. Para Penteado, talvez a grande questão seja esse ínterim, que ganha até mesmo o status de um local “físico”:
Dessa forma ele se aproximava protegido desde o Ínterim — como também era conhecido aquele espaço das árvores — vendo a distância tudo o que acontecia nos reinos sobrepostos e sem participar de nada, efetivamente, sentindo tudo.
A questão do Eu e do Outro e tudo o que existe no meio permeiam o livro que, mesmo não sendo de psicanálise, parece ter bebido nessa fonte. O trecho abaixo, retirado do ensaio Considerações sobre o mal-estar na civilização, de Giselle Falbo, joga luz na problemática:
O eu não está na origem, ele é resultado de um processo de construção que se opera na relação com o outro — o próximo. Para o recém-nascido ainda não há distinção entre o eu e o mundo externo. O eu só é contrastado pela primeira vez por um objeto — tomado com “exterioridade” — em função da ação específica, mediada pela linguagem, através da qual o próximo veicula satisfação aos estados de tensão gerados pelas urgências da vida. Mas o maior incentivo, tanto para que o eu se diferencie quanto para o reconhecimento de um exterior, é certamente proporcionado pelas frequentes e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer. É pela via da não relação entre o eu e o objeto da satisfação, pelo viés portanto do desprazer, que o próximo surge como dessemelhante, estranho. Consequentemente, a introdução da relação de objeto se faz, primariamente, sob a marca do ódio e do estranhamento, e se estrutura sobre a falta do objeto de satisfação que, perdido desde sempre, só existirá como nostalgia.
Saudável estranhamento
Há em Penteado um saudável estranhamento e, justamente por causa disso, um desejável espaço disponível para a construção empática do leitor. É no dessemelhante que construímos a alteridade, muito necessária na contemporaneidade. E é nessa viagem ao dessemelhante/semelhante que encontramos Calvino, em As cidades invisíveis:
― Você viaja para reviver o seu passado? — era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: ― Você viaja para reencontrar o seu futuro?
E a resposta de Marco:
― Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá
O menino do lado de lá, o menino do lado de cá e a menina do meu lado coexistem no discurso narrativo da mesma forma que os muitos espaços coexistem no lugar descritivo.
Os lugares em O menino… se alteram de forma estrutural, em um universo de fantasia e surrealismo. Ou seja, não é o ponto de vista do visitante que se altera, mas o local em si:
Até as árvores já não eram mais as mesmas, os galhos antes feitos braços paternos que o estimulavam e o apoiavam na subida agora se distanciavam do solo como uma mãe tresloucada. E os troncos choravam feito crianças abandonadas, criando um musgo escorregadio; inclusive suas árvores multifrutíferas — nas quais bastava segurar uma fruta e pensar em qual fruta gostaria que fosse para que nela se transformasse em sua mão, desde que é claro ainda estivesse presa ao galho da árvore — já não estavam mais funcionando corretamente, entraram em pane como um computador.
Já Calvino trata do assunto da mudança do lugar a partir do ponto de vista do visitante. Ou seja, não é o local que se altera mas o ponto de vista do visitante:
É o humor de quem a olha que dá a forma à cidade de Zemrude. Quem passa assobiando, com o nariz empinado por causa do assobio, conhece-a de baixo para cima: parapeitos, cortinas ao vento, esguichos. Quem caminha com o queixo no peito, com as unhas fincadas nas palmas das mãos, cravará os olhos à altura do chão, dos córregos, das fossas, das redes de pesca, da papelada. Não se pode dizer que um aspecto da cidade seja mais verdadeiro do que o outro, porém ouve-se falar da Zemrude de cima sobretudo por parte de quem se recorda dela ao penetrar na Zemrude de baixo, percorrendo todos os dias as mesmas ruas e reencontrando de manhã o mau humor do dia anterior incrustado ao pé dos muros. Cedo ou tarde chega o dia em que abaixamos o olhar para os tubos dos beirais e não conseguimos mais distingui-los da calçada. O caso inverso não é impossível, mas é mais raro: por isso, continuamos a andar pelas ruas de Zemrude com os olhos que agora escavam até as adegas, os alicerces, os poços.
Ideia que retoma um pouco depois, ainda em As cidades invisíveis:
Uma sibila, questionada sobre o destino de Marósia, disse:
― Vejo duas cidades: uma do rato, uma da andorinha.
A metáfora do lugar que muda, tanto a partir do ponto de vista do visitante quanto per se, é a do crescimento, a do conhecer-se. Isso faz de O menino do lado de lá um livro imprescindível. Conforme David Levy discorre no estudo A identidade narrativa: conhecer o si-mesmo é narrar sua história:
Conhecer o si-mesmo é narrar sua história e ele existe enquanto sua história se desenrola no tempo. Da mesma maneira, sua identidade confunde-se com a concordância-discordância, o agenciamento dos fatos numa intriga, com a imaginação criadora que produz metáforas capazes de reunir o diverso num todo. O self encontra na identidade narrativa a possibilidade de refigurar-se de maneira mais autêntica.
Essa noção das múltiplas camadas de realidade, de imaginação, de histórias e de Selfs faz a narrativa de Penteado ser, de fato, inclassificável. E, por isso mesmo, imperdível.