Os labirintos de Bolaño

Ironia, narrativas multifacetadas e discursos políticos marcam a obra do escritor
Roberto Bolaño por Panzica
01/08/2010

“Temos que viver a vida, tudo consiste nisso, simplesmente. Quem disse isso foi um bêbado que encontrei outro dia ao sair do bar La Mala Senda. A literatura não vale nada.” A frase é de um dos 50 personagens que aparecem no romance Os detetives selvagens (1998), do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003). Soa pouco original a desconfiança da arte como instrumento de mudança, sobretudo no contexto de violência histórica da América Latina (e ainda mais para a geração de Bolaño). No entanto, surpreende a moldura barroca com a qual as fronteiras entre política e literatura, ficção e realidade, poesia e brutalidade são costuradas em sua obra e, em especial, em seus dois romances mais volumosos — o segundo é o póstumo 2666 (2004), calhamaço de mais de 800 páginas recém-publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Morto aos 50 anos de idade, em decorrência de uma insuficiência hepática e enquanto aguardava um transplante de fígado, Bolaño começou escrevendo poemas, tendo publicado seus primeiros livros de poesias entre 1976 e 1984. Na década seguinte, passou por dificuldades financeiras até se dar conta de que a prosa seria o meio com o qual sustentaria a família: sua mulher espanhola Carolina López, com quem se casou em 1990, e seus filhos Alexandra e Lautaro (batizado em homenagem ao líder indígena da etnia mapuche que lutou contra os colonizadores espanhóis no Chile). O sucesso editorial — e a conseqüente salvação pecuniária — viria com as histórias curtas publicadas nos anos seguintes, como as coletâneas de contos Chamada telefônica (1993) e Putas assassinas (2001), e os romances A pista de gelo (1993), Literatura nazi na América (1996), Estrela distante (1996), Amuleto (1999) e Noturno no Chile (2000), entre outros. Descartando os livros de poemas e os primeiros romances, a parte mais substancial da obra de Bolaño — formada por quatro livros de poesia, doze romances, três coletâneas de contos e uma de artigos — foi publicada no período entre 1996 até sua morte, em 2003. Pelo menos um livro publicado por ano.

No começo da carreira como escritor profissional, Bolaño vivia dos prêmios em dinheiro que ganhava em concursos literários provincianos na Espanha. A pista de gelo, seu primeiro romance, ganhou um destes concursos. Porém, segundo amigos mais próximos, vivia sempre no limite. A consagração com os prêmios mais importantes, as elegias da crítica e o fenômeno da “bolañomania”, tudo isso viria com a tradução para o inglês de Os detetives selvagens, em 2007. Processo semelhante ao de outros escritores latino-americanos, reconhecidos após serem publicados na Europa ou nos Estados Unidos.

O livro foi indicado nas listas de melhores do ano pela imprensa americana e venceu os prêmios Herralde (1998) e Rómulo Gallegos (1999). No ano seguinte, 2666 (que Bolaño não viu impresso) chegou ao topo da lista dos indicados pela crítica, conquistou o National Book Critics Circle Award for Fiction e valeu comparações com escritores como James Joyce, Marcel Proust e Thomas Pynchon. Depois de Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez e Julio Cortázar, era a vez de Bolaño ser o escritor latino-americano mais celebrizado no panteão do mundo civilizado. Uma idolatria demasiada, superlativa, mas que não tira os méritos de ser um dos melhores escritores em língua espanhola da contemporaneidade.

2666 (o título é uma enigmática data, num futuro distante), em particular, é emblemático da fase mais intensa de sua produção. Consciente da gravidade de sua doença desde 1992, uma hepatite tipo C contraída, segundo disse em entrevistas, durante a fase em que estava viciado em heroína (fato contestado pela mulher e pelos amigos íntimos), Bolaño deixou instruções precisas aos editores para que o escrito fosse publicado em cinco livros, correspondentes aos cinco capítulos do romance — A parte dos críticos, A parte de Almafitano, A parte de Fate, A parte dos crimes e A parte de Archimboldi. A estratégia, de acordo com ele, garantiria o sustento de sua mulher e dos dois filhos por mais tempo após a morte do escritor. O amigo Ignacio Echevarría, a quem a tarefa foi confiada, e seu editor espanhol Jorge Herralde, da editora Anagrama, preferiram respeitar a integridade da obra, não obstante o caráter inacabado e, propositalmente, aberto de 2666 (a descoberta de um suposto sexto capítulo do livro chegou a ser anunciada por um jornal inglês, mas, segundo os editores, tratava-se de rascunhos da obra).

O zelo com a família contrasta, por vezes, com o poeta vagabundo e insolente que vagou pela América Latina e pela Europa, se envolveu com revolucionários de esquerda e não se furtava a angariar inimigos literários cada vez em que abria a boca em entrevistas e conferências.

Bolaño teve uma infância sem recursos, complicada pela timidez e a dislexia. O pai era motorista de caminhão e pugilista, e a mãe, professora de ensino básico. Em 1968, ele, os pais e a irmã se mudaram para a capital do México, onde ele deixaria a escola para ser poeta. A estadia em Cidade do México o marcaria o suficiente para ambientar na metrópole algumas de suas principais histórias. Para ele, o DF (Distrito Federal) era uma espécie de paraíso comparado às demais metrópoles da região que estavam sob ordens marciais à época.

Em 1973, aos 19 anos de idade e já trotskista, conheceu futuros líderes guerrilheiros em El Salvador e chegou ao Chile, governado pelo socialista Salvador Allende, para juntar-se aos revolucionários. Com o golpe militar do general Augusto Pinochet, teria passado oito dias preso. Foi solto com ajuda de dois colegas da escola que eram carcereiros, segundo contou diversas vezes, com algumas variações.

Marca da maldade
De qualquer forma, a experiência de viver sob uma ditadura, tão definidora para uma geração que se apaixonaria e depois se desiludiria com o comunismo, seria capital no universo bolañiano. Direta ou indiretamente, a violência das ditaduras latino-americanas se faz presente em quase todos os seus livros, como uma espécie de marca da maldade. Em 2666, por exemplo, os assassinatos de mulheres na fronteira do México com os Estados Unidos, talvez os relatos mais cruéis de toda a sua obra, servem de metáfora para os anos de torturas, desaparecimentos políticos e assassinatos ocorridos durante os regimes militares. Ao receber o prêmio Rômulo Gallegos em Caracas, em 1999, disse:

(…) tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida à minha própria geração, aos que nascíamos na década de 50 e aos que preferimos em um momento dado o exercício da milícia, neste caso seria mais correto dizer a militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa em que acreditávamos a mais generosa das causas do mundo, e que de certa forma o era, mas que na realidade não era. Seria demais dizer que lutamos com unhas e dentes, mas tivemos líderes corruptos, covardes, uma máquina de propaganda que foi pior do que um leprosário, lutamos por partidos que por terem vencido nos mandaram de imediato a um campo de trabalhos forçados, lutamos e pusemos todas a nossa generosidade em um ideal que há mais de 50 anos estava morto, e alguns já sabíamos (…) E agora destes jovens não sobrou nada, os que não morreram na Bolívia foram mortos na Argentina ou no Peru, e aqueles que sobreviveram foram morrer no Chile ou no México, e aos que não mataram lá, mataram depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador. Toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos. E essa é a mola que move a Cervantes para escolher os militares em descrédito da poesia.

Nenhum outro escritor latino-americano, seja o engajado Pablo Neruda ou o apolítico J. L. Borges, retratou essas décadas com tamanha virulência, frieza e pessimismo, quase como um destino, como diz a abertura do primeiro conto de Putas assassinas, O Olho Silva:

Vejam como são as coisas: Mauricio Silva, vulgo o Olho, sempre tentou escapar da violência, mesmo com o risco de ser considerado covarde, mas da violência, da verdadeira violência, não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina na década de cinqüenta, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende.

A relação dos personagens, em sua maioria poetas e escritores, é ambígua ou pusilânime frente aos acontecimentos. Como Auxilio Lacouture, personagem do capítulo 4 da segunda parte de Os detetives selvagens, e que se auto-intitula “mãe da poesia mexicana”. Durante o sítio da Universidade Autônoma do México pelo Exército, evento que antecedeu o “massacre de Tlatelolco”, em 1968, a mulher se esconde no banheiro feminino do campus, onde “resiste” à ocupação lendo um livro do poeta espanhol Pedro Garfias. Essa história, que ocupa dez páginas, foi posteriormente ampliada na forma de um novo livro, Amuleto (de 136 páginas, na tradução para o português), publicado um ano depois.

Na mesma linha está o padre e crítico literário Sebastian Urrutia Lacroix que, após anos de estudos na Europa, retorna ao Chile em meio às agitações do golpe militar. O padre ignora os fatos que ocorrem à sua volta para refugiar-se na leitura dos clássicos da literatura grega: “(….) depois veio o golpe de Estado, o levante, o pronunciamento militar, bombardearam La Moneda, e, quando terminou o bombardeio, o presidente se suicidou e tudo acabou. Eu fiquei quieto, com um dedo na página que estava lendo, e pensei: que paz”. E, após o golpe, ele é chamado para dar aulas de marxismo (sic) a Pinochet e os militares da Junta que governam o país por quase 20 anos.

Mas talvez o melhor personagem, neste contexto político, seja o aviador Carlos Wieder, que usa o pseudônimo do poeta Alberto Ruiz-Tagle, cuja história é mencionada numa passagem de Literatura nazi na América (enciclopédia que remete a O livro dos seres imaginários, de Borges), e protagoniza Estrela distante, um dos melhores livros de Bolaño. O poeta medíocre que freqüentava oficinas literárias na Universidade de Conceptión antes do golpe, se torna um algoz dos estudantes sob o governo de Pinochet. Entre um assassinato e outro, revive seus tempos de poeta escrevendo versos orwellianos com fumaça nos céus do Chile — “A morte é amizade”, “A morte é comunhão”, “A morte é responsabilidade” etc. Uma versão macabra da estética da política prenunciada pelo filósofo alemão Walter Benjamin no auge dos regimes nazi-fascistas na Europa.

A figura do intelectual que se engajou em utopias e depois viveu no exílio, representativa da geração de Bolaño e melhor retratada no “testamento” Os detetives selvagens, adquire uma textura opaca em contraste com as cores vivas do contexto político dos anos 1970. De qualquer modo, a literatura, em Bolaño, pouco ou nada pode fazer para mudar o destino violento dos homens e das nações. O artista espia por frestas, como a poeta Auxilio Lacouture; se encastela em suas torres de marfim (padre Sebastian Lacroix); suja as mãos de sangue, conforme dizia Jean-Paul Sartre, mas o faz com o sangue dos inocentes, como Carlos Wieder; ou se entrega à resolução de mistérios literários, tal como os poetas e acadêmicos em Os detetives selvagens e 2666.

Ficção e realidade
É preciso dizer que os personagens são recorrentes e transitam de uma obra para outra, traçando um quadro mais amplo e coeso, ainda que disposto em peças espalhadas, aparentemente, ao acaso.

A eles, Bolaño mistura sua própria identidade, história e desventuras. Depois de fugir do Chile, o escritor vagou por países da Europa e pelos Estados Unidos, antes de se fixar no balneário catalão de Blanes, próximo a Barcelona, no começo dos anos 1980. Durante esses “anos selvagens”, exerceu diversas funções, como jornalista, vigilante noturno em um camping, garçom, lavador de pratos, carregador de malas, lixeiro e vendedor de bijuterias (explica-se: escrevia seus livros à noite, após o cumprimento de cada expediente). Algumas dessas profissões ele empresta a seus personagens, como os dois protagonistas de seu primeiro romance, A pista de gelo (um escritor que tem um bar e vende bijuterias e um poeta que é vigia de camping).

A vida errante e o desterro eram, ainda, temas recorrentes em suas entrevistas. Quando perguntavam a Bolaño se era chileno, mexicano ou espanhol, dizia ser latino-americano e complementava, como fez em sua última entrevista, concedida a Mônica Maristain na Playboy mexicana, em 2003: “Minha única pátria são meus dois filhos, Lautaro e Alexandra. E talvez, mas em segundo plano, alguns instantes, algumas ruas, alguns rostos ou cenas ou livros que estão dentro de mim e que algum dia esquecerei, que é o melhor que alguém pode fazer pela pátria”.

O escritor e suas lendas (o roubo de livros é talvez a mais famosa) se confundem com a obra. Ele é o principal narrador em pelo menos três contos de Putas assassinas (Gómez Palacio, Últimos entardeceres na terra e Dias de 1978) — quatro, caso se acrescente o alter ego em Fotos — e ele próprio, B., em Encontro com Enrique Lihn. Os detetives selvagens, livro em que satiriza e romantiza seus contemporâneos, é, por sinal, uns dos escritos mais autobiográficos do autor. Em 1974, após escapar dos cárceres chilenos e retornar ao México, Bolaño foi procurado pelo amigo e poeta Mario Santiago (morto em 1998), com quem forma um grupo vanguardista chamado Movimento Infra-realista de Poesia, com influências dadaístas, surrealistas, beatniks e rimbaudianas. O grupo se ocupa em agredir o establishment literário e tem como principal alvo o poeta mexicano Octavio Paz. Contam que interrompiam as sessões de leitura do mestre aos gritos e que chegaram a derramar vinho na camisa de Paz.

O mesmo espírito rebelde se faz presente em algumas das melhores — e mais engraçadas — passagens de Os detetives selvagens, que tem em seus protagonistas centrais o próprio Bolaño, no quase acrônimo Arturo Belano, e Mario Santiago como Ulises Lima (também uma homenagem ao Ulisses, de Joyce), líderes do grupo vanguardista mexicano chamado real-visceralistas. Neste livro, assim como em outros e em conferências e entrevistas, ele mira sua artilharia contra escritores latino-americanos que compõem os cânones e academias. Ficaram famosos os disparos contra autores como Isabel Allende, Pablo Neruda (“dois livros extraordinários e nada mais”) e Gabriel García Márquez (“um homem encantado por ter conhecido tantos presidentes e arcebispos”) e Mario Vargas Llosa. Até Paulo Coelho não escapou da leitura exigente de Bolaño. Ao mesmo tempo, conservava admiração por Borges, Bioy Casares, Juan Carlos Onetti e Julio Cortázar (cujo Jogo da amarelinha, assim como A vida modo de usar, de Georges Perec, é um espelho de Os detetives selvagens).

Em parte de seus escritos, que inclui A pista de gelo, Os detetives selvagens e 2666, Bolaño recorre à narrativa policial para dar ritmo e coerência à trama multifacetada. Nestes últimos dois romances, o enigma envolve o desaparecimento de dois escritores. Em Os detetives selvagens, a busca é pela poetisa mexicana Cesárea Tijanero, que nos anos 1920 criou o movimento dos real-visceralistas e desapareceu após a Revolução Mexicana, numa versão feminina do escritor americano Ambrose Bierce, também desaparecido na poeira da revolução. A existência de Cesárea é confirmada por um único poema icônico publicado numa revista antiga, que o uruguaio Ulises Lima e o chileno Arturo Belano descobrem ao entrevistar um velho poeta mexicano, Almadeo Salvatierra. A busca por Cesárea os leva até o deserto de Sonora, próximo à fronteira com o Texas, ponto também de ligação com 2666.

Neste livro póstumo, um grupo de quatro acadêmicos (o francês Jean-Claude Pelletier, o italiano Piero Morini, o espanhol Manuel Espinoza e a inglesa Liz Norton) procuram pelo recluso romancista alemão Benno von Archimboldi, uma espécie de Thomas Pynchon ou J. D. Salinger do qual ninguém conhece sequer as feições.

Barroco
As tramas, porém, se diluem numa estrutura narrativa que lembra experimentos literários, recheadas de recursos pós-modernistas, como a intertextualidade e a polifonia. O formato funciona melhor em Os detetives selvagens, apesar de ser mais extremo em 2666. Os detetives selvagens é composto de três partes, com uma aparente ordem cronológica. A primeira, Mexicanos perdidos no México (1975), traz o diário de um poeta Juan García Madero, de 17 anos, estudante de Direito que discute com professores da oficina de literatura, convive com bêbados, drogados e prostitutas na boemia da Cidade do México, escreve poemas e rouba livros. O diário é retomado na terceira e última parte, Os desertos de Sonora (1976), em que ele, os poetas real-visceralistas e uma prostituta chamada Lupe são perseguidos por um cafetão e um policial, ao mesmo tempo em que procuram no deserto pela poetisa desaparecida.

O “miolo” do livro, mais interessante, se intitula Os detetives selvagens (1976-1996). Neste capítulo lemos o relato de mais de 38 pessoas, passando por oito países diferentes e perfazendo um total de 20 anos, através dos quais acompanhamos as peregrinações de Ulises Lima e Arturo Belano. O curioso é que os protagonistas do livro nunca aparecem como narradores, mas são conhecidos por diferentes pontos de vista, ora por seus defeitos (seriam traficantes e vagabundos), ora por suas qualidades (jovens talentosos e idealistas). Ao leitor cabe reconstruir suas personalidades ao passo que monta o quebra-cabeça da trama. Somente após vencer mais de 350 páginas, o leitor encontra referências mais sólidas sobre o mistério que envolve o sumiço da poetisa mexicana. Para complicar as coisas, há várias pistas falsas e histórias e personagens que não se ligam à trama central.

2666 é mais radical, não obstante menos coeso, com uma primeira parte dedicada aos críticos acadêmicos, outra sobre um professor de filosofia viúvo (Oscar Almafitano) e uma terceira sobre um jornalista negro (Quincy Willians), contratado para cobrir uma luta de boxe no México. A quarta parte, mais violenta, se passa na cidade fictícia de Santa Teresa (identificada como Ciudad Juárez, na fronteira com os Estados Unidos, assolada por esquadrões da morte e disputas entre narcotraficantes), onde ocorre o estupro e assassinato de centenas de mulheres. Trata-se do centro da história, para a qual convergem — ou deveriam convergir — os personagens e as tramas do livro. E, no último capítulo, tem-se o próprio Benno von Archimboldi, no front de batalha da Segunda Guerra Mundial.

O que chama a atenção na narrativa destes romances, mais do que a feitura de “modelos para armar” que lembram Cortázar e Perec, é o emaranhado de relatos que podem ou não ter qualquer conexão com a história principal. Bolaño, que se dizia, principalmente, poeta, parece funcionar muito melhor como contador de histórias. Assim, por exemplo, no capítulo sobre os crimes em Santa Teresa, tem-se o caso do criminoso que viola templos cristãos, e em Os detetives selvagens, o conto de Clara Cabeza, a secretária de Octavio Paz (alvo de um plano frustrado de seqüestro pelos real-visceralistas).

Os personagens têm ainda o hábito de saírem do foco principal para contarem fatos pessoais e fazerem confissões que parecem ter pouca importância, a despeito da força hipnótica que a escrita de Bolaño pode exercer sobre o leitor. Isso acontece principalmente na segunda parte de Os detetives selvagens.

O resultado é uma estética barroca, no sentido dado pelo filósofo Gilles Deleuze em A dobra — Leibniz e o barroco: “O traço do barroco é a dobra que vai ao infinito (…) Diz-se que um labirinto é múltiplo etimologicamente, porque tem muitas dobras. O múltiplo é não só o que tem muitas partes, mas o que é dobrado de muitas maneiras”. Da mesma forma, a história em Bolaño se fragmenta em múltiplos relatos, compondo um labirinto em que, pelo menos no caso de 2666, nem sempre se sai, mas que sempre desorienta e fascina o leitor. O que dá à obra de Bolaño esse formato labiríntico e multifacetado — que deixemos claro, é uma de suas principais características — são as dobras e a sobreposição de narrativas, na qual se pode partir de qualquer ponto, para depois retornar a um centro lógico. Num estudo publicado no final dos anos 1980, A Idade Neobarroca, o crítico italiano Omar Calabrese, identificou esse traço como um dos mais marcantes do “espírito da época”, para substituir o termo vago “pós-modernismo”, presente em produtos culturais da sociedade de massa. Aqui, como em Bolaño, a retidão clássica dá lugar às dobras, espirais e labirintos do barroco. Será esse o segredo do poeta chileno?

Ironia
O efeito realístico da obra fica por conta da prosa objetiva e direta de Bolaño, com pouca descrição e quase nenhum lirismo. Algo que Borges já havia buscado em seus contos, apesar do escritor chileno ser muito mais “físico” e, como já mencionado, mais afeito a construções complexas e barrocas. O que se acentua, na perspectiva do escritor, é o pessimismo e a ironia que recordam Machado de Assis e Robert Musil, e que em alguns momentos chegam ao exagero e ao escracho (mais um traço barroco), como quando, em Os detetives selvagens, ele faz um breve inventário de poetas homossexuais:

Dentro do imenso oceano da poesia, distinguia várias correntes: bichonas, bichas, bicharocas, bichas-loucas, bonecas, borboletas, ninfos e bâmbis. Walt Whitman, por exemplo, era um poeta bichona. Pablo Neruda, um poeta bicha. William Blake era uma bichona, sem sombra de dúvida, e Octavio Paz, bicha. Borges era bâmbi, quer dizer, de repente podia ser bichona e de repente simplesmente assexuado. Rubén Darío era uma bicha-louca, na verdade a rainha e o paradigma das bichas-loucas.

Em outras passagens, como em A parte dos crimes, penúltimo capítulo de 2666, o texto assume um tom jornalístico, de um observador neutro que apenas descreve o que vê sem fazer qualquer juízo valorativo e sem qualquer pretensão de acrescentar leveza ao que é existência bruta:

A primeira mulher morta no ano de 1994 foi encontrada por uns caminhoneiros num desvio da estrada de Nogales, no meio do deserto. Os caminhoneiros, ambos mexicanos, trabalhavam para a maquiladora Key Corp e, naquela tarde, apesar de estarem com os caminhões carregados, decidiram ir comer e beber num restaurante chamado El Ajo, onde um dos caminhoneiros, Antonio Villas Martínez, era conhecido. Quando se dirigiram para lá, o outro caminhoneiro, Rigoberto Reséndiz, notou um brilho no deserto que o deixou ofuscado por uns instantes. Pensando tratar-se de uma brincadeira, se comunicou por rádio com o colega Villa Martínez, e os caminhões pararam. A estrada estava vazia. Villas Martinez tentou convencer Reséndiz de que o que o havia ofuscado fora o reflexo do sol numa garrafa ou casos de vidro, mas então o outro viu um vulto a uns trezentos metros da estrada e se dirigiu até ele. Pouco depois, Villa Martínez viu que Reséndiz o chamava com um assobio e saiu da estrada, não sem antes certificar-se de que os dois caminhões estavam bem trancados. Quando chegou onde o colega o esperava viu o cadáver, que apesar de estar com o rosto completamente desfigurado não dava margens a dúvidas de que era de uma mulher. Curiosamente, a primeira coisa em que prestou atenção foi o sapato, usava sandálias de couro trabalhado, de boa qualidade. Villas Martinez se persignou. O que fazemos, compadre?, ouviu Roséndiz dizer. Pelo tom de voz do amigo compreendeu que a pergunta era apenas retórica. Avisar a polícia, respondeu. Boa idéia, disse Reséndiz. Na cintura da morta viu um cinto com uma grande fivela de metal. Foi o que ofuscou você, compadre, falou.

Difícil vislumbrar o poeta Bolaño, uma vez que, quando sai do conforto do observador imparcial, cai, por vezes, em soluções fáceis, como na seguinte passagem de 2666: “A brisa que soprava naquela hora pelas ruas de Santa Teresa era fresca mesmo. A lua, cheia de cicatrizes, ainda brilhava no céu”.

Nada que comprometa o prazer intelectual de adentrar os labirintos verticais de Bolaño, com passagens que levam a lugar nenhum, outras que se conectam e cujos centros estão, paradoxalmente, nas fronteiras: lugar de extremo perigo no qual a literatura, tão desimportante diante da vida, é também ineficaz contra a maldade. Ela não traz redenção nem impede o avanço das trevas. E, mesmo assim, é preciso continuar escrevendo, construindo labirintos de significados: “Bom, sigo vivo, sigo lendo, sigo escrevendo e vendo filmes, e como disse Arturo Prat (herói da Marinha chilena) aos suicidas de Esmeralda, enquanto eu viver, esta bandeira não baixará.”

Obras editadas no Brasil (todas pela Companhia das Letras):

Noturno do Chile (2004)
Os detetives selvagens (2006)
A pista de gelo (2007)
Amuleto (2008)
Putas assassinas (2008)
Estrela distante (2009)
2666 (2010)

Todas foram traduzidas por Eduardo Brandão, exceto Estrela distante, traduzida por Bernardo Ajzenberg.

José Renato Salatiel

é jornalista e professor universitário.

Rascunho