Os germes ao vento e os esforços ordenadores

"A arte do romance" traz prefácios que Henry James escreveu para discutir a sua ficção
Henry James aspira a leitores mais refinados
01/08/2004

A editora Globo, com a publicação de A arte do romance — Antologia de prefácios (tradução, organização e notas de Marcelo Pen), presta enorme serviço aos admiradores brasileiros de Henry James, que esperaram muito tempo para conhecer em português essa célebre reflexão do escritor sobre a própria obra. Os prefácios de James foram enfeixados na chamada “Edição de Nova York” (1907-1909), calhamaço de luxo que lhe tomou muito tempo e cuidados, embora o resultado de vendas não tenha lhe agradado. Ficaria mais satisfeito se tivesse podido saber que imensa influência crítica o seu empreendimento teria no futuro. Quem quiser conhecer mais sobre a arte jamesiana — e sobre a própria arte do romance — não pode deixar de passar por esses prefácios.

Interessam a quantos escritores estejam na ativa, mesmo aos mais resistentes a esse aspecto da arte literária que consiste na tentativa, efetuada pelo próprio escritor, de rastrear as origens de sua criação e entender, afinal, que espécie de monstro pariu. Não é incomum que um escritor se recuse a ser claro a respeito da gênese de seus fantasmas, ainda que, com algum esforço ordenador, eles pudessem ser identificados e, apesar das implicações grandemente imponderáveis que toda criação vai assumindo a partir desse ponto, razoavelmente percebidos. Com freqüência entra em ação o gozo particular do artesão pelos segredos de seu ofício e o desejo de deixá-lo permanecer mistificado e impenetrável. O “mistério”, afinal, é lisonjeiro, corporativamente. Mas há alguns outros, generosos ou ingênuos ou mais desesperadamente lúcidos, para os quais isso se coloca como um problema apaixonante, que será necessário tentar compartilhar com os leitores.

Henry James está bem consciente disso ao longo do esforço ordenador que empreendeu. Ele visivelmente aspira a leitores mais refinados, capazes de se desprender do puro entretenimento da leitura para o interesse maior da feitura, do mistério psicológico da criação. Não se ilude muito a respeito do pouco interesse que isso poderá ter para a imensa maioria dos leitores — essa que recebe o produto acabado nas mãos e quase nada interroga sobre os elementos da feitura que lhe proporcionou dado encanto —, mas enfrenta a questão. De vez em quando, lendo esses prefácios — e especialmente quando ele está se referindo a um dos seus muitos romances que não chegamos a ler —, podemos ter o impulso a rejeitar o que parece ser narcisismo ou defesa de “pai coruja” a um filho cuja beleza ou excelência não verificamos. Portanto, o livro será melhor aproveitado para quem tiver conhecimento de um espectro mais largo da criação jamesiana. Convém ter lido James, e bastante.

James começa sempre por traçar a origem de uma obra pelo ano de publicação, o lugar onde foi publicada, pelas condições em que estava naquele momento, as idéias que experimentava, a influência do ambiente e o que chama de “germe”. Esse germe, partícula que pode decidir o autor a uma obra de grande fôlego e amplitude, pode ser algo irrelevante, e ele chega a achar que as sugestões menores, mais vagas, é que podem ser as mais estimulantes, contanto que caiam no terreno e na hora propícios. A gênese de A volta do parafuso, por exemplo, remete a uma menção de espíritos de criados maus que queriam se apoderar de um casal de crianças, mas isso era nebuloso, e tinha sido insuficientemente contado por uma mulher a um anfitrião de um grupo de pessoas num círculo em torno de uma lareira numa tarde de inverno; veio à tona quando foi mencionada a escassa qualidade das histórias de fantasmas naquele tempo. Em todo caso, temos aí o quadro de abertura da novela, que começa pela primeira pessoa do plural e onde podemos, sem muito esforço, localizar um ouvinte particularmente interessado — James, na certa — e nos maravilhar com todas as ambigüidades, sugestões e terrores fictícios que daí derivaram. James também chama a esse germe de “preciosa pitada” que inclinará o criador a uma dada direção fecunda.

Vamos vê-lo, ao longo dos oito prefácios, cutucando o tigre. O romance, gênero de enorme flexibilidade, precisamente porque pode assumir tantas formas e ser tão desmedido, coloca o criador sempre diante da angústia de ter que escolher, selecionar, delimitar, definir um centro, lidar com um sem-fim de possibilidades apalpando a direção certa, os personagens mais claros, e, na verdade, sucumbir à falta de forma, à vagueza e à indefinição é mais freqüente do que se menciona. Ele acredita que duas coisas são fundamentais ao sucesso do gênero: interesse e intensidade. O problema de trabalhar com personagens num dado tecido de tempo e espaço, porém, envolve todos os riscos que sabemos e mais alguns, evocados ou sugeridos pela sua sutileza e seu perfeccionismo. O erro e o grotesco, a frouxidão e a indecisão, nos espreitam a cada curva do caminho. O irônico é que, tentando clarear o mistério, ele por vezes o faça mais misterioso e arbitrário ainda. Não quer dizer “não há como explicar o que fiz”, mas é isso que acaba dizendo, de um modo ou de outro. Esboça o que pode ser considerado uma teoria a partir de suas próprias experiências, mas sem certezas, sem dogmas.

A observação de suas obras em retrospecto tem o conforto que costuma nos dar o livro pronto, publicado, e já — para bem e mal — julgado, mas James era, como todo artista refinado e disposto a pensar seu fazer, bem lúcido em apontar seus malogros e reconhecer a inutilidade de alguns desses lamentos. Tem orgulho de seus acertos — e é até um pouco irritante nisso — e, com suas decepções, toca em pontos aos quais não podemos ficar indiferentes. E as revelações são ricas. É curioso, por exemplo, o que diz a respeito de cidades consideradas estimulantes, falando de Veneza no prefácio de Retrato de uma senhora: “Como os lugares que falam tanto em geral à imaginação podem deixar de oferecer-lhe, no momento preciso, justamente aquilo que ela mais deseja? Lembro-me muitas vezes, em belos lugares, de ter mergulhado nesse deslumbramento. Parece-me que, sob esse apelo, eles expressam um pouco demais — mais do que se podia usar nesse caso; de modo que, no que se refere ao quadro circundante, afinal nos vemos trabalhando de modo menos adequado do que se estivéssemos na presença do moderado e do neutro, ao qual podemos emprestar algo da luz de nossa visão”.

E, por fim, é a humildade que acabará — como em muitas reflexões lúcidas sobre o mistério da arte — nos dando o que nos parece mais justo e apropriado: “Quanto à origem de nossos próprios germes trazidos pelo vento, quem pode dizer, quando você pergunta, de onde eles vêm? Precisamos retroceder demais, voltar demasiado para trás, para respondê-lo. Mas e se tudo que o que podemos dizer é que eles vêm de cada região do firmamento, que eles estão ali em quase cada curva do caminho? Eles se acumulam, e nós sempre os estamos colhendo, selecionando-os. São o sopro da vida — pelo que quero dizer que a vida, a seu modo, exala-os sobre nós.”

A arte do romance
Henry James
Globo
319 págs.
Chico Lopes

Nasceu em 1952, em Novo Horizonte (SP). É autor do romance O estranho no corredor (Editora 34, 2011) e dos contos de Nó de sombras (IMS, 2000), Dobras da noite (IMS, 2004) e Hóspedes do vento (Nakin, 2010). Recentemente, publicou sua primeira coletânea de poemas: Caderno provinciano (Patuá).

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