Os excessos de um poeta utópico

Memórias do exílio de Manoel de Andrade se perdem entre páginas exaustivas
Manoel de Andrade, autor de “Nos rastros da utopia”
03/06/2014

Dude atuava na ala esquerda do Partido Comunista e se propôs a tirar quatro mil cópias do poema e usar alguns militantes do Partido para distribuí-las, discretamente, nas universidades, centros acadêmicos, sindicatos, organizações de classe, etc. […] O que eu jamais poderia ter imaginado é que aquela ideia luminosa do Dude e da panfletagem do meu poema ao Che, em Curitiba, em plena ditadura militar, mudaria todo o futuro da minha vida, obrigando-me a deixar o Brasil, e durante quatro anos peregrinar como um poeta errante ao longo de dezesseis países da América Latina.

Visto em retrospectiva, parece muita inocência de Manoel de Andrade acreditar que um poema de grande repercussão em homenagem a Che Guevara passaria incólume pelos braços da ditadura, que sufocavam qualquer manifestação artística de alguma forma crítica ao regime. Contudo, à época, provavelmente essa percepção não era tão aguçada. Restou a Andrade deixar o país e perambular pelo parque de diversões dos Estados Unidos, o qual tomava providências para evitar que o comunismo ou o socialismo vingasse nos países latino-americanos. Por onde passou, o poeta encontrou solidariedade — palavra-chave da empreitada — de pessoas comuns e, principalmente, de outros ativistas de esquerda.

Mais de quarenta anos depois, Manoel de Andrade transformou a sua forçada aventura no livro Nos rastros da utopia. O poeta apoiou-se principalmente em cartas enviadas aos familiares durante o período, nos recortes de jornais que guardou, num pequeno caderno de endereços, nas datas de seu antigo passaporte e em sua “extraordinária memória” para construir uma narrativa de viagem permeada por historicismo, ensaísmo político e muitas recordações afetivas.

A viagem de Andrade começa pelo próprio Brasil, quando parte rumo ao nordeste para conhecer a parte do país onde jamais pisara e da qual traz passagens valiosas, como os encontros com vaqueiros e jangadeiros. O poeta dá vida e complexidade a esses personagens típicos e constata realidades interessantes, como “Os nordestinos do sertão emigram para as grandes cidades da região e para o sul do país, mas os pescadores jamais deixam o litoral”. Também se mostra em campo, convivendo com essas pessoas. Animei-me, achei que esse seria o tom do livro; contudo, não é exatamente o que acontece. Ao longo da obra, as pessoas são mais citadas e rascunhadas do que propriamente descritas e mostradas em movimento, com alguma representatividade mais abrangente do que a primeira impressão. Uma pena.

Pena que se estende para outro ponto. Nos rastros da utopia é repleto de passagens e histórias excelentes, algumas até que justificariam um livro apenas para si. Para ficarmos apenas em dois exemplos, uma noite Andrade dorme dentro do parque histórico de Machu Pichu; em outra, numa cama exposta no Museu Histórico de Cusco, a mesma em que Simón Bolívar teria dormido quando passou pela cidade. São momentos mágicos, sensacionais, únicos, que poderiam ter sido mais bem explorados, com mais detalhes, sensações, emoções, divagações…

Mais derrapadas
Andrade derrapa também no cuidado com as palavras — algo ainda mais grave para um poeta —, como no seguinte trecho: “Acostumado às grandes distâncias e a dispor de um longo tempo para tudo, seu sentido de espaço e duração é sempre relativo. Dir-se-ia que ele, tal como o jangadeiro em alto-mar, vive num tempo mágico, naquele sentido de duração do tempo que permanece, fora do tempo linear e contínuo do relógio”. (As marcações são minhas.) Será mesmo necessário repetir a palavra “tempo” quatro vezes, aparentemente sem objetivar nenhum efeito estilístico? Outra passagem problemática: “Boa tarde, os senhores poderiam me conseguir um pouco de água? — cumprimentei-os, perguntando”. Precisava mesmo do “cumprimente-os, perguntando”? O “boa tarde” já não evidencia o cumprimento, enquanto a interrogação transforma a oração numa pergunta?

Há também excessos com detalhes que pouco agregam à história, exageros como o resumo e a resenha de uma obra literária — Huasipungo, clássico indigenista do equatoriano Jorge Icaza — e a necessidade de se homenagear muitas pessoas. É bonita a gratidão do autor, mas não considero uma obra literária o melhor lugar para se acertar dívidas fraternas de pouco valor à narrativa. A mim, soa como falta de cuidado, mas não culpo exclusivamente Andrade. Pode até ser que o editor tenha alertado quanto aos excessos e o autor não tenha dado ouvidos; o editor, no entanto, deveria mostrar que passagens excelentes podem passar despercebidas numa história contada em mais de novecentas páginas (muitas delas desnecessárias) e poderia orientá-lo a transformar suas memórias e sua aventura numa narrativa sólida e coesa. Ainda caberia à editora evitar os problemas com o português — palavras com grafia errada, pontuações equivocadas e repetição de linhas.

Em defesa dos oprimidos
Há, entretanto, méritos a se destacar.

É precioso o registro de Andrade sobre como poetas de diversas nações se posicionavam e incomodavam os poderosos — tanto que muitos acabaram exilados (como o próprio autor), torturados ou até mesmo assassinados pelos fardados. E para mostrar como foi perseguido politicamente no Brasil, o autor não tem pudores em expor os documentos relacionados à sua pessoa: descobre e mostra os registros que os militares faziam de seus passos — aterrorizante se deparar com um relato de todas as suas atividades —, assim como os comunicados que os militares trocavam entre si e que, em algum momento, citavam-no, e apresenta todo o seu processo de anistia, revelando inclusive quanto recebe de pensão.

Andrade também faz de Nos rastros da utopia um relato dos povos que resistiram, porém tombaram ao longo da história latino-americana após a chegada de Cristóvão Colombo, essenciais em sua caminhada. “Meus passos pela América não teriam sido tão fecundos se não tivesse encontrado os rastros libertários de Lautaro e Caupolicán, Túpac Amaru e Túpac Katari, Bartolina Sisa e Micaela Bastidas, Juana Azurduy e Manuela Sáenz, bem como, em episódios mais recentes, os exemplos memoráveis dos poetas Javier Heraud, Otto René Castillo e a luta atual e incondicional do ex-guerrilheiro Hugo Blanco em favor do indígena”, escreve.

Ao apresentar histórias não oficiais, a história dos derrotados, não há como deixar de comparar a obra com As veias abertas da América Latina (1971), de Eduardo Galeano. Contudo, Andrade se perde nessas incursões ao passado. Em muitas oportunidades vai bastante longe, imerge no que aconteceu e esquece de si mesmo. Em nítidos rompimentos, praticamente abandona a sua história para contar outra. Ainda que alguns relatos sejam extremamento oportunos, como o massacre sofrido pelos mapuches no Chile (“o maior holocausto, na trágica história dos povos indígenas da América”), são construídos de modo didático demais, exaustivo.

Enfim, Nos rastros da utopia é mais uma obra que surge quando relembramos dos cinquenta anos do golpe militar no Brasil (do que li até aqui, destaco principalmente as de Bernardo Kucinski, K. e Você vai voltar pra mim). É um relato oportuno, com um viés bastante interessante, mas repleto de poréns. Acredito que uma edição futura, melhor trabalhada, enxugada, possa fazer bem à obra.

Nos rastros da utopia
Manoel de Andrade
Escrituras
912 págs.
Manoel de Andrade
Nasceu em Rio Negrinho (SC), em 1940. Formou-se em Direito, em 1965, e seguiu pelo caminho das letras como poeta, publicando, entre outros, Poemas para a liberdade.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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