Os estragos do tempo

Em “O professor”, Cristovão Tezza amplifica, pela linguagem, a temática e estrutura iniciadas no romance “Trapo”
O escritor Cristovao Tezza em seu apartamento em Curitiba. Foto: Guilherme Pupo
01/11/2014

Quando, em 2009, Cristovão Tezza demitiu-se da universidade, bem antes da aposentadoria, alguns o acharam destemido demais. O fato é que a postura tão incomum na cultura do funcionalismo brasileiro desvela situação e espírito desse escritor: amparado pelo reconhecimento de sua obra, quer dedicar-se integralmente à escrita, bastante ciente de seu lugar na literatura brasileira contemporânea.

Tezza tem sido arrimado por extensa crítica elogiosa, algumas derramadas, outras entusiasmadas, algumas seriíssimas e raras desanimadoras. Cortês e inexcedível em simpatia e disponibilidade, tem atendido a grande número de entrevistas e debates Brasil afora, obrigando-se a explicar a biografia, suas escolhas temáticas, a sofisticada técnica ficcional e muitas vezes instado a analisar seus próprios romances.

Por que resvalo nesse aspecto? Porque me parece que o grande Cristovão Tezza começa a carregar sobre os ombros um peso incômodo: resenhado e premiado copiosamente, experiente romancista e ex-professor da área, talvez carregue a necessidade da superação de si mesmo a cada obra nova. Não há novidade artística nessa inquietação, e, no caso, parece conforme, pois a acolhida a este último romance tem sido entusiasta. “Há uma sensação de obra-prima”, diz um crítico; “Um lance de mestre”, diz outro. O próprio Tezza considera O professor seu “melhor romance até aqui”. (Gazeta do Povo, fevereiro de 2014).

Depois de O filho eterno, Tezza escreve para si, para nós, para seus pares; mas sobretudo para buscar o tom mais apto da própria linguagem para enfrentar “por dentro” a agônica antinomia de seus protagonistas no mundo.

Isso talvez explique a estrutura tão complexa de O professor. Por isso creio não ser irresponsável ler o magnífico romance – que elogio antes de resenhar — também como um tour de force do escritor, pai, e professor.

E, para que se entendam um pouco mais minhas conjecturas: O professor, tão imerso nas potencialidades da própria matéria da criação, retoma obra anterior de Tezza — Trapo (1995). Esta, muito mais modesta na estrutura e na complexidade de foco narrativo (mas evocadora dos mesmos temas), trata de um ultrapassado professor secundário de língua portuguesa (aposentado, viúvo, solitário e conservador), cuja arma de resistência ao mundo é mergulhar na leitura literária. Professor Manuel, por acaso, enovela-se no texto e na juventude contestadora de um jovem poeta suicida, apelidado de Trapo.

Não é comum que batam à porta depois do Jornal Nacional, quando desligo a televisão e volto para meus livros, para as sutilezas da literatura e da linguística, com um prazer que nunca tive nos meus trinta anos de magistério.

Já aqui tendo em foco muitos dos conflitos do professor vindouro, Tezza alterna três discursos: o presente medíocre de Manuel, os textos deixados por Trapo e a obra que o professor virá a escrever — numa interessante superposição discursiva ao final da obra.

O enredo do outro professor
No romance O professor, Tezza ilumina para o leitor algumas horas da vida de Heliseu, 70 anos, viúvo e solitário professor universitário de filologia românica. Ao fim da manhã em que se insere a narrativa, receberá uma homenagem de seus pares (em evento de sabor eufemista diante da aposentadoria compulsória de alguém — dor insuportável para tantos mestres). Entre levantar-se, tomar o café, ler o jornal, fazer suas abluções e vestir-se poucas horas se passam.

A estratégia de estreitamento temporal não é novidade, claro, mas, nessas poucas horas, o leitor mergulhará, sob foco narrativo bem mais sofisticado, num cruzamento atroz das lembranças do protagonista: na infância, fora testemunha da morte da mãe, numa queda escada abaixo, tê-la-ia empurrado o pai?; o casamento insosso com a pragmática Mônica; a relação amargurada com o único filho, gay, que vive longe; o caso apaixonado de seis anos com uma jovem e ousada orientanda francesa, Therèze (que o deixa após a oportuna defesa da tese); o desprezo de seus pares por não ter se engajado em atividade política nos turbulentos anos de ditadura; a indiferença de alunos que, em detrimento da filologia românica (sua disciplina e paixão de sua vida) só se interessam pela nova linguística; e, finalmente, a morte da mulher, que cai da sacada e a quem não conseguiu (ou não quis?) segurar.

O tema
O romance deixa um travo muito amargo, incomoda e nos leva a manducar trechos e frases — numa rotação bem maior do que a já aplaudida em O filho eterno.

Talvez porque em O filho eterno, por mais vigorosa que seja a realização, o leitor deparava com o autobiográfico explícito, aquele que traz a dor alheia — não a minha, nem a tua. Aqui, em O professor, Tezza, amplificando muito o que iniciara em Trapo, nos obriga a ler a história de todos nós: a quase certeza da mediocridade, dissimilada em falsa autovalorização e soberba; a certeza de que o pai, os colegas, a mulher, o filho e a amante nunca lhe ofereceram o respeito e o afeto que julgara merecer.

Tezza já sugerira em Trapo que, para negar a mediocridade e a velhice e adiar a morte fora preciso ao professor mergulhar no discurso de um jovem suicida e dele vir a tecer a própria narrativa e a realização do “seu” próprio romance. Agora, neste novo professor, misturando enfoques e discursos mais vigorosamente, desvela o tormento de Heliseu, assoberbado entre a tessitura da memória, a elaboração mental do pequeno discurso (que será obrigado a fazer) e o eco dos conteúdos de aula e trechos mentais em português arcaico. Mas, hoje, sentado no vaso sanitário (captações como estas são magníficas no novo romance), ao fitar o mesmo azulejo trincado para o qual olha há uns 30 anos, padece da mesma amargura que o professor Manuel, diante do ranger de sua escada num sobrado decadente.

A técnica narrativa
Tezza quer que compreendamos Heliseu na tessitura extremamente elaborada dos fios narrativos que se imbricam em enredo muito mais ressequido que o de Trapo.

Nesta narrativa, cada vez mais complexa — talvez sob a tarefa compulsória de que falei atrás —, a narração se manifesta num cruzamento quase inédito de primeira com terceira pessoa, diluindo qualquer superioridade possível de um narrador onisciente.

Aqui está um dos maiores avanços técnicos de Tezza, em relação a Trapo, e um dos grandes desafios para o leitor. Ao mesmo tempo, estamos diante do monólogo interior de Heliseu, multifacetado entre camadas da primeira pessoa que recorda a vida, a que pensa e elabora uma fala para a plateia e outra, que, tão melancólica, quer realocar na mente o saber de uma vida toda. Evidentemente assim, se misturam também os tempos do narrar.

E isso subitamente e absurdamente e estupidamente o interessou, sim, me conte, e Heliseu riu com a lembrança, a maconha no cérebro, abraçado na cama à mulher mais bela e inteligente que jamais toquei e ela me engana com um diacrítico, eheh, colegas, este Heliseu que vos fala é um pândego! Como adjetivo, diacrítico, aquilo que separa e que distingue, é o mesmo que patognomônico, ou sintoma de uma doença. Pathos. Senhores, as coisas são palavras.

Temos assim um tenso cruzamento entre o foco narrativo em primeira, terceira… e segunda pessoa (refiro-me ao ensaio mental do discurso). Segundo o autor, esse é um “narrador dobrado, em que a frase passa de um ângulo a outro”. Com diz Tezza: “acho que nossa cabeça funciona assim e tenho certa obsessão pelos nossos modos de apreensão da realidade” (O Estado de S. Paulo, Caderno 2).

Num momento eu meio que desisti, senhores. Depois dos idos de março, Therèze dilui-se na lembrança e fui apenas vivendo por instinto, respirando cuidadoso o ar da cátedra que me sobrou. Mas as aulas nos preenchem, não? Aqueles alunos todos prestando atenção. Dos anos seguintes nom achamos cousas notaves que de contar sejam, dizia Azuarra em sua Crônica.

Cristovão Tezza, o autor, precisa transpor pela linguagem — forçando seus limites técnicos — o conflito agônico entre o herói e sua existência num mundo do qual já não faz parte. É hora de “fechar o sentido da vida”. Esta lucidez, o professor Manuel não alcançou nos quarenta dias de sua epopeia.

Pois é, de maneira mais dura e universalizante que o professor Manuel, é disso que trata a manhã do novo professor — com carreira mais elevada, cultura muito mais ampla e angústias maiores: buscar, no abandono e na velhice (antevisão da morte), o sentido da própria vida. Tezza já refletia sobre isso, e a figura de enfrentamento da vida, por dentro da densidade da linguagem tendeu a adensar-se também.

Se os frutos estiverem envelhecidos e murchos, resta a última atuação, concedida pela voz narrativa externa:

Meteu o papel no bolso, satisfeito, e correu uma última vez para o espelho, demorando-se um pouco a mais. Estou bem.

Quanto ao romancista, como um operário sem férias, parece seguir caminho para registrar o conflito de que somos (Manuel, Heliseu, você e eu) constituídos existencialmente através do único meio possível: os aspectos construtivos da própria linguagem, ou seja, através da experiência com que as estruturas narrativas vão sendo pensadas e superadas, livro a livro. Tezza rejeita, com razão, o biografismo. Mas quem mais, além dele mesmo para enfrentar as várias possibilidades da linguagem?

O professor
Cristovão Tezza
Record
240 págs.
Cristovão Tezza
Nasceu em Lages (SC) em 1952, mas vive em Curitiba desde a infância. Foi professor de Teoria Literária na UFPR. Em 1988, publica o romance Trapo, que lhe dá projeção nacional. Em 2007, com O filho eterno (unanimidade de crítica e de público, o que é raríssimo) — torna-se quase uma celebridade, pois o romance ganhou todos os maiores prêmios brasileiros e internacionais e lhe permitiu dedicar-se à literatura. Outras obras: Juliano Pavollini (1989), Uma noite em Curitiba (1995), O fotógrafo (2004).
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho