Cerca de um sétimo da população da terra está na China, república socialista governada por um único partido. No entanto, ao longo de 4.000 anos, o sistema político chinês foi baseado em dinastias. A última foi a Qing, que perdeu o poder em 1911 com a fundação da República da China pelo Partido Nacionalista Kuomintang. Na primeira metade do século 20, quando o país afundou em guerras civis, eram os comunistas e os partidários do Kuomintang que catalisavam os ideais. Vitoriosos, os comunistas, sob o comando de Mao Tse-Tung, estabeleceram em 1949 a República Popular da China (RPC).
Mao tentou conduzir o chamado Grande Salto Adiante, projeto que pretendia transformar a RPC em uma nação desenvolvida e igualitária. O plano previa a coletivização do campo e a industrialização urbana. A primeira etapa do programa resultou em um aumento sem precedentes da superfície cultivada e da produção agrícola. Mas, no conjunto, as medidas adotadas conduziram, no fundo, ao caos: calcula-se que 20 milhões pessoas morreram de fome ao longo de uma década.
O fracasso se deveu a vários fatores, e todas as possíveis explicações, além de parciais, continuam muito marcadas por discursos ideológicos. Secas e inundações assolaram o país entre 1949 e 1960, é verdade, mas problemas de ordem estrutural — carência de pessoal especializado, migração da mão-de-obra do campo para as cidades, sistema de transportes débil, etc. — tiveram peso também, assim como a ruptura das relações com a União Soviética, que fornecia à China tecnologia, equipamentos e profissionais qualificados.
A relação entre chineses e russos desandou em parte porque Nikita Kruschev havia denunciado os desmandos de Stálin e dado início a visitas e diálogos com o Ocidente. Desde então, a China não adotou mais o que se possa chamar de “modelo soviético” de socialismo. Em 1959, Mao foi sucedido por Liu Shaoqi, que retirou seu antecessor da administração dos assuntos econômicos, deixando-os a cargo de Deng Xiaoping. Novas divergências atiçaram radicalismos diversos, então.
Em 1966, Mao e seus aliados iniciam a Revolução Cultural Proletária, uma campanha politico-ideológica brutal, que tinha como maior objetivo neutralizar a oposição. Grupos de jovens da Guarda Vermelha atacavam violentamente todo e qualquer suspeito de deslealdade ao regime e ao modo de pensar de Mao. Os principais alvos eram os burocratas e os intelectuais alinhados com o Ocidente ou com a União Soviética.
Para se ter uma idéia, o ensino superior foi desativado sob o argumento de que as universidades eram “um antro de intelectuais” (ser intelectual era um demérito, na época). A obra referencial passou a ser O livro vermelho, coletânea de citações de Mao exaltando o nacionalismo e cultuando a personalidade do Grande Líder, ou seja, Mao. Até hoje aquela luta insana por poder e a desordem social decorrente dela intrigam os especialistas em psicologia de massa, visto que a “lavagem cerebral” perdurou pelo menos até a morte de Mao, em 1976.
A literatura como revisão histórica
Com Mao fora do jogo, a China empreende a partir de 1978 um conjunto de reformas que seriam a base da Grande Potência de que tanto ouvimos falar hoje na mídia. (Diz-se que os efeitos da crise financeira de 2008 teriam sido ainda mais nefastos se o índice de crescimento econômico anual da China não fosse muito superior à média mundial.) Essa imensurável força adquirida pela China nas negociações globais tem-se refletido também nas artes. A literatura chinesa contemporânea é hoje um dos mais importantes canais para o entendimento da dinâmica cultural do país.
Os intercâmbios com o Brasil — outro emergente — também se intensificaram nos últimos anos. Os autores chineses publicados no Brasil ainda não vendem aqui nem um décimo do que vendeu na China o romance A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães (1825-1884), por exemplo, que, impulsionado pelo sucesso da telenovela, ultrapassou a marca de 500 mil exemplares. Por outro lado, o leitor brasileiro agora tem acesso a vários escritores chineses, como Gao Xingjian (Nobel de Literatura em 2000), Ha Jin, Dai Sijie, Ting-Xing Ye, Guo Jingming, Su Tong, Ma Jian, Jung Chang, Xinran, Liao Yiwu e Yu Hua.
De Yu Hua, a Companhia das Letras lançou três romances entre 2008 e 2011: Viver, que deu origem ao filme homônimo de Zhang Yimou, vencedor do grande prêmio do júri no Festival de Cannes de 1994; Irmãos; e Crônica de um vendedor de sangue. Por tecer críticas sutis, porém fortes, à Revolução Cultural, a obra de Yu Hua, assim como a de outros escritores chineses publicados a partir da década de 1980, foi rotulada de “literatura da ferida”.
Em Viver, Hua usa um jovem andarilho coletor de histórias e canções folclóricas como porta-voz da história de Fugui, ex-dono de terras expropriadas pelo regime comunista. Crônica de um vendedor de sangue, por sua vez, conta como viviam os chineses pobres no final dos anos 1950. O protagonista é o operário Xu Sanguan, que empurra carrinhos cheios de casulos de bichos-da-seda numa indústria têxtil. Ele tem de vender o sangue, literalmente, para poder sustentar sua família.
O Grande Salto e a Revolução Cultural são o pano de fundo destes dois romances de Yu Hua, que nasceu em 1960, época em que um simples gesto inadvertido poderia ser tachado de “burguês” ou “contra-revolucionário” e dar margem a uma perseguição implacável pelos temidos soldados da Guarda Vermelha. Nas duas obras a experiência pessoal do autor se alia ao contexto histórico. Filho de médicos, Hua passou a infância em um hospital. Todos os dias, declarou à The New York Times Magazine, via filas de camponeses dispostos a vender sangue para complementar a renda nos anos maoístas.
A História como revisão da vida
A venda de sangue em condições duvidosas de higiene para bancos de abastecimento e indústrias farmacêuticas era comum naquela época tão repressiva quanto deprimente. Opressão e tragédia, aliás, são fortes marcas da obra de Hua (fumante inveterado de cigarros Panda, apesar das proibições e dos discursos cientificamente corretos). Por outro lado, ele usa o humor (negro) com extrema habilidade, demonstrando a precariedade nonsense em que vivem seus personagens. A saga de Xu Sanguan em Crônica é pontuada por traições, intrigas e uma incrível diversidade de agricultores e operários incrivelmente ignorantes.
Já casado e pai de um filho, Yu Hua viu o igualitarismo maoísta ser substituído nas últimas duas décadas pelo desenfreado desejo coletivo de prosperidade material; e o autobiográfico China in ten words (ainda sem tradução para o português e impedido de circular em seu país) provoca risadas novamente ao lembrar a impossibilidade de acesso a livros estrangeiros durante a Revolução Cultural. Os únicos disponíveis eram Obras escolhidas de Mao Tsé-Tung e O livro vermelho. Quando a loucura daqueles dez anos chegou ao fim, Hua pôde devorar as obras do japonês Yasunari Kawabata (1899-1972), Nobel de Literatura em 1968, e de Kafka (1883-1924), seus favoritos.
Ele garante que não altera seus textos com vistas à censura. Acredita que se um livro seu é proibido, sempre é possível lançá-lo em Taiwan, onde não há esse tipo de restrição. A maneira como relatou os protestos pró-democracia em 1989 na Praça Tiananmen, que terminaram em sangrenta repressão no dia 4 de junho daquele ano, é uma das razões que os censores apresentaram para justificar o banimento de China in ten words. Sabe-se que, na Grande Potência Emergente do Século 21, o “4 de junho” é um tema proibido, e que ainda pode dar cadeia.
Em Irmãos, Hua se refere ao mesmo evento, também conhecido como “o massacre da Praça da Paz Celestial”, como “o dia 35 de maio”. Este ambicioso romance, publicado originalmente em dois volumes, apresenta de maneira épica a trajetória de dois irmãos — dos anos 1960 até a abertura econômica, quando o enriquecimento (lícito ou ilícito, segundo o autor) deixa de ser visto como depreciativo e se torna a grande ambição da maioria dos chineses. Os destinos dos dois irmãos — Li Carequinha e Song Gang — tornam-se opostos à medida que o país substitui o comunismo pela economia de mercado.
Cyberativista com 15 milhões de seguidores em uma conta camuflada no Twitter, Yu Hua posta críticas freqüentemente ao governo chinês, que as deleta em seguida. A censura também afetou Viver, obra que projetou Yu Hua internacionalmente. Quase 20 anos após a sua publicação, Viver ainda vende uma média de 100 mil cópias por ano na China, o que é considerado “extraordinário”, dadas as circunstâncias. Parte do sucesso se deve ao filme de Zhang Yimou. Apesar de proibido até hoje, ele é facilmente encontrado por lá nas incontáveis lojas de DVDs piratas.
A vida como operação incondicional
Do ponto de vista conceitual, os três romances de Yu Hua lançados no Brasil não podem ser chamados de “históricos”, até porque Hua não enfatiza a “diegese de tempos remotos” (no dizer de Lukács). Viver e Crônica tampouco apresentam uma reconstituição minuciosa de época em termos culturais, sociais, axiológicos ou jurídicos. O que esses dois romances têm em comum é uma densidade tão realista quanto alegórica. As ocorrências e as atmosferas transcorrem no âmbito subliminar da existência dos personagens, e transmitem uma melancolia leniente.
Os protagonistas Fugui e Xu Sanguan, respectivamente, apesar da pobreza incontornável, da carência de ternura, do endurecimento das matrizes políticas e das tragédias pessoais, acabam atingindo um “estado de graça”. Na juventude eles abusaram de suas esposas e constrangeram seus filhos, mas, ao fim da vida, tornam-se homens decentes, maridos amorosos e pais sensíveis, restaurando a dignidade e aliviando suas almas do sofrimento que causaram a seus convivas e das agruras que a História lhes impôs.
Assim como outros escritores chineses contemporâneos, Yu Hua apresenta em tom propositalmente sóbrio e distante imagens de uma sociedade injusta, onde a penúria de um provoca o riso do outro, já que a esmagadora maioria não tem idéia certa do que está acontecendo. Hua recicla a temática da deterioração da carne provocada pelo trabalho braçal não recompensado. O ponto central das duas narrativas, então, é o Sistema, o Grande Sistema, que suga o sangue no plano individual tanto quanto no coletivo.
Por cada 400 ml de sangue, Xu Sanguan recebe 35 iuanes, mais do que se ganha trabalhando seis meses no campo. Já o caso de Youqing, filho de Fugui em Viver, é menos direto. Youqing não morre de tanto fornecer sangue em troca de dinheiro, como os muitos personagens de Crônica que guardam relação direta com a vida real dos chineses durante o Grande Salto. Youqing sucumbe durante uma transfusão em que tentavam salvar a mulher de um oficial depois de um parto complicado. Fengxia, a irmã de Youqing, também sangra até a morte ao dar à luz um menino no mesmo hospital onde ela perdera o irmão.
As sucessivas tragédias são narradas com uma frieza que invariavelmente amplia a alienação dos personagens. O fato de Fugui e Xu Sanguan recuperarem a dignidade indica uma otimista visão de mundo de Yu Hua, sem que isso contenha um valor literário per se. Por outro lado, essa aparente fé no humano é o que diferencia Hua de outros ficcionistas chineses, segundo especialistas. Eis a mensagem subjacente: o cidadão chinês “comum” demonstrou nas últimas décadas uma insuspeita capacidade de superação. De fato, a resiliência é marcante em Viver e em Crônica.
Embora os dois romances compartilhem uma visão em comum das vicissitudes da História e ofereçam experiências de indivíduos lutando para sobreviver em um cenário hostil, as estruturas narrativas dos dois romances são bastante diferentes. Em Viver, Hua busca uma forma mais universal: a épica história de um único homem por trás de meio século de convulsão política e social. O desejo manifesto de Fugui de olhar para o passado resulta em uma narração excepcional. Episódios imprevisíveis impedem o cultivo de um olhar indulgente sobre o protagonista, que, no período de vacas gordas, era uma espécie de playboy.
Crônica apresenta uma estrutura enxuta, com capítulos curtos, um narrador (frio e distante) em terceira pessoa e muitos diálogos. A linguagem até parece uma daquelas reportagens que nos vendem como absolutamente objetiva e isenta. A ascensão e a queda das cantinas públicas durante o Grande Salto, por exemplo, estão sintetizadas num capítulo curto — capítulo 18 (leia trecho nesta página) — em que Xu Sanguan diz à sua mulher, Xu Yulan, que “quem quiser comer deve ir à cantina” e, em seguida, “fecharam todas as cantinas da cidade”.
Em meio aos disparates do poder, quando ordem e desordem adquirem natureza idêntica, os personagens só podem contar consigo mesmos, apesar do primitivismo emocional onipresente: “Uma pessoa pode vender roscas, vender uma casa, vender sua terra, mas nunca vender seu sangue. É melhor vender o corpo do que o sangue! Ao menos o corpo de uma pessoa pertence a ela. Mas vender o sangue é como vender os ancestrais. Você vendeu seus ancestrais, Xu Sanguan”, objeta Xu Yulan ao descobrir que o marido caíra em tentação. A China de Yu Hua é um gigante tão dilacerado quanto surdo.