A solidão é estável: nenhum tropeço perturba seu ritmo contínuo e monótono, suas cores pálidas, seu rumor discreto e angustiante. A solidão relega à espera, mas uma espera que logo se revela inócua, já que nenhum acontecimento irrompe para quebrar a retidão dos dias. E daí o tempo se arrasta, pesado e pegajoso. Em Pedro Páramo, Juan Rulfo parece dar a materialidade de um povoado abandonado à solidão: um lugar esquecido e inóspito, vazio durante o dia e, à noite, repleto de almas em busca de um vivo que possa rezar por elas.
A estrutura do livro também remete a uma busca em vão: começa com a narração em primeira pessoa de Juan Preciado, que vai até o povoado de Comala para procurar pelo pai, Pedro Páramo, e termina com a morte de Páramo. Como a morte desse personagem — o ponto final do romance — é muito anterior à chegada de Juan — o início da narrativa —, fica a sensação de esvaziamento também de propósitos que possam movimentar uma existência. A história de Pedro Páramo é exemplar nesse sentido: movido pela vingança e pela ganância, com violência ele constrói a grandeza da fazenda Media Luna, no entanto nunca consegue alcançar o que mais queria ter, o afeto de sua última esposa, Susana, que, inválida e fincada numa cama, dedica os dias às lembranças do amor por outro homem.
O romance é povoado, sobretudo, por mortos. Os vivos restantes em Comala são basicamente um casal incestuoso de irmãos, o que não deixa de ser uma condenação ao fim da linhagem, à desaparição. Pensar em como se dá a preservação de presença dos ausentes parece uma tarefa difícil, até por uma constituição narrativa que não isenta a existência dos fantasmas de espanto ao mesmo tempo que não faz de suas aparições coisas da ordem do mal-assombrado ou do sobrenatural. É uma premissa ilógica, potente e capaz de expressar o que a vida carrega de contraditório. A capacidade de assustar por parte dos fantasmas está menos no medo pela presença deles em si do que nos estatutos que a morte pode ter para os vivos. O solitário Pedro Páramo no final da vida, por exemplo, expressa o pavor de fantasmas porque teme um acerto de contas com si próprio: “Porque tinha medo das noites que enchiam a escuridão dos fantasmas. De encerrar-se com seus fantasmas. Disso tinha medo”.
Um primeiro caminho para se aproximar dos mortos vivos de Rulfo poderia se dar com o amparo de Julio Cortázar. O escritor argentino propõe certa inadequação do termo “fantástico”, que não diria muito por si mesmo já que é mais uma negação da interpretação do realismo como a ambientação em “um mundo regido mais ou menos harmoniosamente por um sistema de leis e princípios, de relações de causa e efeito, de psicologias bem definidas, de geografias bem cartografadas”[1]. As almas penadas de Rulfo estão fora do alcance de leis claramente associadas à dinâmica da realidade perceptível, contudo, é na distância desse registro que elas precisamente falam sobre a vida, em seu caráter mais palpável. A morte e a inquietude dos finados dizem sobre a finitude, as recordações, o absurdo que é seguir em frente quando perdemos alguém que norteava nossa existência.
A lacuna entre a geografia bem cartografada e a construção do povoado de Comala parece ganhar forma com o recurso recorrente das imagens mediadas por comparações conjugadas no subjuntivo, que delineiam sensações com beleza ímpar: “Não, não era possível calcular a fundura do silêncio que produziu aquele grito. Como se a terra tivesse se esvaziado do seu ar. Nenhum som; nem o do suspiro, nem o da batida do coração; como se até o ruído da consciência tivesse parado”, ou “seu corpo impedindo a chegada do dia; deixando aparecer, através de seus braços, fiapos de céu, e debaixo dos seus pés réstias de luz; uma luz borrifada como se o chão debaixo dela estivesse inundado de lágrimas”. A comparação, carregada de lirismo, e a escolha pelo modo verbal destinado à expressão de desejos ou da irrealidade são como que operadores capazes de transformar o espaço seco, inundando-o de imaginação.
Outro caminho de interpretação seria o que leva em conta a estrutura de Pedro Páramo. O narrador Juan Preciado leva o leitor até o povoado, e, como quem encontra desavisadamente o texto, também ele não está acostumado com o prolongamento da presença de defuntos. Inicialmente, Juan não compreende, não sabe distinguir quem é de carne e osso e quem é uma alma vagante. Ao entender que está ouvindo grunhidos e histórias dos mortos, se assusta e se espanta. Em seguida, ele mesmo deixa de existir e a narrativa perde a condução de sua perspectiva para ser encaminhada por fiapos de vozes finadas, costurados delicadamente e encadeados por um nexo que vai se revelando aos poucos, junto ao prosseguimento da leitura. De certo modo, como Juan, vamos nos acostumando com a presença dos mortos, curiosos para conhecer suas respectivas vidas e, assim, entender um pouco sobre suas existências como fantasmas.
Passos ocos
A abertura do romance apresenta a intenção de Juan Preciado de conhecer o pai. A missão lhe é delegada pela mãe, natural de Comala, que acabara de morrer. Pouco antes de chegar ao povoado, Juan descobre que Pedro Páramo morreu há muito tempo. Depois do espanto inicial e de sua própria morte, o jovem é apresentado à história do pai pela polifonia fúnebre.
Ao chegar em Comala, Juan se depara com o completo isolamento do lugar: “Havíamos deixado o ar quente lá de cima e fomos nos afundando no puro calor sem ar. Tudo parecia à espera de alguma coisa”; “Ouvia meus passos caírem sobre as pedras redondas que empedravam as ruas. Meus passos ocos, repetindo seu som no eco das paredes tingidas pelo sol do entardecer”. Este é o povoado que se tem diante dos olhos, cenário tomado pela aridez, pelo calor sufocante, por restos de um tempo passado. Já a Comala que os mortos mostram a Juan é um lugar vivo, animado por histórias de destruições e amores, ganâncias e afeições, culpas e gestos.
Ao honrar o desígnio da mãe, Juan, como portador de traços da genitora, leva o corpo dela de volta à terra natal e efetivamente conhece o pai, por meio da ação de Pedro Páramo no povoado, pela forma que sua presença é guardada pelos mortos, pelo sentido posterior que a desolação do lugar assume ao passo que a trajetória de Páramo vai sendo contada. A aridez de Comala é resultado direto da ambição e da crueldade do personagem, e o isolamento do cenário vai sendo aderido a uma narrativa por meio das vozes dos finados que habitaram o lugar.
Os murmúrios e o deserto
Não deixa de ser enigmático e curioso que nenhum dos Páramo, nem o pai de Pedro nem o único filho que carrega seu sobrenome, encarnem como fantasmas para narrar a história de Comala. E a ausência deles no coro dos mortos provoca questionamentos sobre a natureza da condenação que impede o descanso final.
A palavra eco parece uma pista importante. É o termo usado por Juan para expressar o vazio que ele encontra durante o dia em Comala e reaparecerá para falar dos fantasmas que vagam pelas noites do lugar, como um eco que fica preso no cômodo onde um personagem fora assassinado ou, de modo mais geral, como a única presença que preenche o povoado. Eco como a reverberação de uma onda sonora faz pensar que a sina dos mortos é um prolongamento de quando eram vivos. Também diz sobre o vazio do cenário, que nomeia o personagem central do romance: Páramo, um planalto deserto.
A presença dos fantasmas como ecos, então, induz a leitura de certa repetição de um estímulo emitido ainda em vida, amplificada pelo isolamento. Juan — que vai até Comala para conhecer o pai por causa de um desejo da mãe — como fantasma escuta relatos sobre a vida de Pedro Páramo e divide a sepultura com Dorotea, uma mulher que passou a vida procurando por um filho que nunca existiu. Eduviges, a hospitaleira personagem que sempre recebia os forasteiros, vive após a morte guardando um quarto vazio em uma casa repleta de objetos que as pessoas deixaram antes de partir de Comala, ainda com a esperança de voltar um dia para reavê-los. Susana, a melancólica esposa de Pedro Páramo, passa a eternidade se recordando de tempos felizes e perdidos, como já fazia nos delírios que antecederam sua morte.
Dorotea diz a Juan que “a única coisa que faz com que a gente mova os pés é a esperança de que ao morrer nos levem de um lugar a outro”. As palavras da personagem levariam a crer que a vida é uma tentativa de construção de algo que sobreviva à morte, a lembrança alheia de nossa existência como o que poderia conferir o sentido necessário para levantar e se mover. E a sobrevida, nessa direção, talvez seja um lamento pela ausência de um vivo que possa recordar.
Já a voz finada de Susana coloca que a lembrança de tempos passados é um recurso para esquecer a solidão. É uma perspectiva valiosa já que a personagem é o que Pedro Páramo nunca pôde dominar como posse, o ponto limite de seu poderio, e a recusa dela e a sua morte formam o princípio do fim de Comala. De acordo com essa alma penada, os ecos dos fantasmas seriam como um inventário dos fragmentos de histórias, que resguarda o lugar remoto do completo apagamento, uma forma de expressar a impermanência, a rebeldia do tempo, de relatar que o vazio já fora povoado e animado por pulsões humanas.
No prefácio desta nova edição, Eric Nepomuceno, tradutor do romance — e de tantos outros autores capitais da literatura latino-americana, como García Márquez e Eduardo Galeano —, apresenta dois títulos provisório de Pedro Páramo: Los desiertos de la Tierra e Los murmullos. As mudanças indicam o insistente trabalho de lapidação, aspecto enfatizado por Nepomuceno, desse texto tão enxuto e enigmático, bem como ajudam a compreender a construção da tonalidade de aridez, tão pungente na narrativa, e de determinado recorte de campo semântico do livro — sussurros, infecundidade, ar rarefeito, lugar longínquo.
Ainda no prefácio, é apresentado um fiapo da voz de Rulfo que justificava a escrita de um primeiro romance, nunca publicado, como um combate à solidão. Esse comentário exerce efeitos na leitura de Pedro Páramo, porque o isolamento parece ter deixado marcas na prosa do autor. E talvez a postura de combate tenha sido transferida para os personagens-cadáveres do romance: seguir falando, como escrever, também pode ser uma discreta luta para não estar apenas sujeito à solidão que estende os domínios da vida para ecoar na morte. Extrapolando a constituição do enredo e dos personagens, a narrativa tem um poder singular de traduzir parte da solidão como forma de sentir o mundo: a concentração de vida no passado, ao passo que o presente é o campo da esterilidade e da secura, o temor pelo completo apagamento advindo do profundo silêncio.
Uma última acepção de eco que valeria a pena mencionar é a de Italo Calvino[2] a respeito dos clássicos: a potência que segue reverberando em textos que nunca cessam de ser lidos porque sempre têm algo de outro para dizer.
[1] Alguns aspectos do conto. Valise de cronópio. Tradução de Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2013.
[2] Por que ler os clássicos. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das letras, 2007.