Os ecos de Rulfo

Publicado há 65 anos, o breve romance "Pedro Páramo" segue impactando leitores com sua linguagem árida e narrativa enigmática
Ilustração: Mello
03/01/2021

A solidão é estável: nenhum tropeço perturba seu ritmo contínuo e monótono, suas cores pálidas, seu rumor discreto e angustiante. A solidão relega à espera, mas uma espera que logo se revela inócua, já que nenhum acontecimento irrompe para quebrar a retidão dos dias. E daí o tempo se arrasta, pesado e pegajoso. Em Pedro Páramo, Juan Rulfo parece dar a materialidade de um povoado abandonado à solidão: um lugar esquecido e inóspito, vazio durante o dia e, à noite, repleto de almas em busca de um vivo que possa rezar por elas.

A estrutura do livro também remete a uma busca em vão: começa com a narração em primeira pessoa de Juan Preciado, que vai até o povoado de Comala para procurar pelo pai, Pedro Páramo, e termina com a morte de Páramo. Como a morte desse personagem — o ponto final do romance — é muito anterior à chegada de Juan — o início da narrativa —, fica a sensação de esvaziamento também de propósitos que possam movimentar uma existência. A história de Pedro Páramo é exemplar nesse sentido: movido pela vingança e pela ganância, com violência ele constrói a grandeza da fazenda Media Luna, no entanto nunca consegue alcançar o que mais queria ter, o afeto de sua última esposa, Susana, que, inválida e fincada numa cama, dedica os dias às lembranças do amor por outro homem.

O romance é povoado, sobretudo, por mortos. Os vivos restantes em Comala são basicamente um casal incestuoso de irmãos, o que não deixa de ser uma condenação ao fim da linhagem, à desaparição. Pensar em como se dá a preservação de presença dos ausentes parece uma tarefa difícil, até por uma constituição narrativa que não isenta a existência dos fantasmas de espanto ao mesmo tempo que não faz de suas aparições coisas da ordem do mal-assombrado ou do sobrenatural. É uma premissa ilógica, potente e capaz de expressar o que a vida carrega de contraditório. A capacidade de assustar por parte dos fantasmas está menos no medo pela presença deles em si do que nos estatutos que a morte pode ter para os vivos. O solitário Pedro Páramo no final da vida, por exemplo, expressa o pavor de fantasmas porque teme um acerto de contas com si próprio: “Porque tinha medo das noites que enchiam a escuridão dos fantasmas. De encerrar-se com seus fantasmas. Disso tinha medo”.

Um primeiro caminho para se aproximar dos mortos vivos de Rulfo poderia se dar com o amparo de Julio Cortázar. O escritor argentino propõe certa inadequação do termo “fantástico”, que não diria muito por si mesmo já que é mais uma negação da interpretação do realismo como a ambientação em “um mundo regido mais ou menos harmoniosamente por um sistema de leis e princípios, de relações de causa e efeito, de psicologias bem definidas, de geografias bem cartografadas”[1]. As almas penadas de Rulfo estão fora do alcance de leis claramente associadas à dinâmica da realidade perceptível, contudo, é na distância desse registro que elas precisamente falam sobre a vida, em seu caráter mais palpável. A morte e a inquietude dos finados dizem sobre a finitude, as recordações, o absurdo que é seguir em frente quando perdemos alguém que norteava nossa existência.

A lacuna entre a geografia bem cartografada e a construção do povoado de Comala parece ganhar forma com o recurso recorrente das imagens mediadas por comparações conjugadas no subjuntivo, que delineiam sensações com beleza ímpar: “Não, não era possível calcular a fundura do silêncio que produziu aquele grito. Como se a terra tivesse se esvaziado do seu ar. Nenhum som; nem o do suspiro, nem o da batida do coração; como se até o ruído da consciência tivesse parado”, ou “seu corpo impedindo a chegada do dia; deixando aparecer, através de seus braços, fiapos de céu, e debaixo dos seus pés réstias de luz; uma luz borrifada como se o chão debaixo dela estivesse inundado de lágrimas”. A comparação, carregada de lirismo, e a escolha pelo modo verbal destinado à expressão de desejos ou da irrealidade são como que operadores capazes de transformar o espaço seco, inundando-o de imaginação.

Outro caminho de interpretação seria o que leva em conta a estrutura de Pedro Páramo. O narrador Juan Preciado leva o leitor até o povoado, e, como quem encontra desavisadamente o texto, também ele não está acostumado com o prolongamento da presença de defuntos. Inicialmente, Juan não compreende, não sabe distinguir quem é de carne e osso e quem é uma alma vagante. Ao entender que está ouvindo grunhidos e histórias dos mortos, se assusta e se espanta. Em seguida, ele mesmo deixa de existir e a narrativa perde a condução de sua perspectiva para ser encaminhada por fiapos de vozes finadas, costurados delicadamente e encadeados por um nexo que vai se revelando aos poucos, junto ao prosseguimento da leitura. De certo modo, como Juan, vamos nos acostumando com a presença dos mortos, curiosos para conhecer suas respectivas vidas e, assim, entender um pouco sobre suas existências como fantasmas.

Passos ocos
A abertura do romance apresenta a intenção de Juan Preciado de conhecer o pai. A missão lhe é delegada pela mãe, natural de Comala, que acabara de morrer. Pouco antes de chegar ao povoado, Juan descobre que Pedro Páramo morreu há muito tempo. Depois do espanto inicial e de sua própria morte, o jovem é apresentado à história do pai pela polifonia fúnebre.

Ao chegar em Comala, Juan se depara com o completo isolamento do lugar: “Havíamos deixado o ar quente lá de cima e fomos nos afundando no puro calor sem ar. Tudo parecia à espera de alguma coisa”; “Ouvia meus passos caírem sobre as pedras redondas que empedravam as ruas. Meus passos ocos, repetindo seu som no eco das paredes tingidas pelo sol do entardecer”. Este é o povoado que se tem diante dos olhos, cenário tomado pela aridez, pelo calor sufocante, por restos de um tempo passado. Já a Comala que os mortos mostram a Juan é um lugar vivo, animado por histórias de destruições e amores, ganâncias e afeições, culpas e gestos.

Ao honrar o desígnio da mãe, Juan, como portador de traços da genitora, leva o corpo dela de volta à terra natal e efetivamente conhece o pai, por meio da ação de Pedro Páramo no povoado, pela forma que sua presença é guardada pelos mortos, pelo sentido posterior que a desolação do lugar assume ao passo que a trajetória de Páramo vai sendo contada. A aridez de Comala é resultado direto da ambição e da crueldade do personagem, e o isolamento do cenário vai sendo aderido a uma narrativa por meio das vozes dos finados que habitaram o lugar.

Os murmúrios e o deserto
Não deixa de ser enigmático e curioso que nenhum dos Páramo, nem o pai de Pedro nem o único filho que carrega seu sobrenome, encarnem como fantasmas para narrar a história de Comala. E a ausência deles no coro dos mortos provoca questionamentos sobre a natureza da condenação que impede o descanso final.

A palavra eco parece uma pista importante. É o termo usado por Juan para expressar o vazio que ele encontra durante o dia em Comala e reaparecerá para falar dos fantasmas que vagam pelas noites do lugar, como um eco que fica preso no cômodo onde um personagem fora assassinado ou, de modo mais geral, como a única presença que preenche o povoado. Eco como a reverberação de uma onda sonora faz pensar que a sina dos mortos é um prolongamento de quando eram vivos. Também diz sobre o vazio do cenário, que nomeia o personagem central do romance: Páramo, um planalto deserto.

A presença dos fantasmas como ecos, então, induz a leitura de certa repetição de um estímulo emitido ainda em vida, amplificada pelo isolamento. Juan — que vai até Comala para conhecer o pai por causa de um desejo da mãe — como fantasma escuta relatos sobre a vida de Pedro Páramo e divide a sepultura com Dorotea, uma mulher que passou a vida procurando por um filho que nunca existiu. Eduviges, a hospitaleira personagem que sempre recebia os forasteiros, vive após a morte guardando um quarto vazio em uma casa repleta de objetos que as pessoas deixaram antes de partir de Comala, ainda com a esperança de voltar um dia para reavê-los. Susana, a melancólica esposa de Pedro Páramo, passa a eternidade se recordando de tempos felizes e perdidos, como já fazia nos delírios que antecederam sua morte.

Dorotea diz a Juan que “a única coisa que faz com que a gente mova os pés é a esperança de que ao morrer nos levem de um lugar a outro”. As palavras da personagem levariam a crer que a vida é uma tentativa de construção de algo que sobreviva à morte, a lembrança alheia de nossa existência como o que poderia conferir o sentido necessário para levantar e se mover. E a sobrevida, nessa direção, talvez seja um lamento pela ausência de um vivo que possa recordar.

Já a voz finada de Susana coloca que a lembrança de tempos passados é um recurso para esquecer a solidão. É uma perspectiva valiosa já que a personagem é o que Pedro Páramo nunca pôde dominar como posse, o ponto limite de seu poderio, e a recusa dela e a sua morte formam o princípio do fim de Comala. De acordo com essa alma penada, os ecos dos fantasmas seriam como um inventário dos fragmentos de histórias, que resguarda o lugar remoto do completo apagamento, uma forma de expressar a impermanência, a rebeldia do tempo, de relatar que o vazio já fora povoado e animado por pulsões humanas.

No prefácio desta nova edição, Eric Nepomuceno, tradutor do romance — e de tantos outros autores capitais da literatura latino-americana, como García Márquez e Eduardo Galeano —, apresenta dois títulos provisório de Pedro Páramo: Los desiertos de la Tierra e Los murmullos. As mudanças indicam o insistente trabalho de lapidação, aspecto enfatizado por Nepomuceno, desse texto tão enxuto e enigmático, bem como ajudam a compreender a construção da tonalidade de aridez, tão pungente na narrativa, e de determinado recorte de campo semântico do livro — sussurros, infecundidade, ar rarefeito, lugar longínquo.

Ainda no prefácio, é apresentado um fiapo da voz de Rulfo que justificava a escrita de um primeiro romance, nunca publicado, como um combate à solidão. Esse comentário exerce efeitos na leitura de Pedro Páramo, porque o isolamento parece ter deixado marcas na prosa do autor. E talvez a postura de combate tenha sido transferida para os personagens-cadáveres do romance: seguir falando, como escrever, também pode ser uma discreta luta para não estar apenas sujeito à solidão que estende os domínios da vida para ecoar na morte. Extrapolando a constituição do enredo e dos personagens, a narrativa tem um poder singular de traduzir parte da solidão como forma de sentir o mundo: a concentração de vida no passado, ao passo que o presente é o campo da esterilidade e da secura, o temor pelo completo apagamento advindo do profundo silêncio.

Uma última acepção de eco que valeria a pena mencionar é a de Italo Calvino[2] a respeito dos clássicos: a potência que segue reverberando em textos que nunca cessam de ser lidos porque sempre têm algo de outro para dizer.

[1] Alguns aspectos do conto. Valise de cronópio. Tradução de Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2013.

[2] Por que ler os clássicos. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

 

Pedro Páramo
Juan Rulfo
Trad.: Eric Nepomuceno
José Olympio
175 págs.
Juan Rulfo
Nasceu em Jalisco, México, em 1917. Os dois livros que publicou — a coletânea de contos Chão em chamas (1953) e o romance Pedro Páramo (1955) — foram o suficiente para fazer do autor um dos grandes nomes da literatura em língua espanhola. Traduzida em mais de 32 idiomas, sua obra conta com vasta herança crítica, entre seus célebres comentadores estão Octavio Paz e Susan Sontag. Faleceu em 1986, na Cidade do México.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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