Os dois lados do círculo

A fusão e confusão de ritmos na fronteira entre a linha (prosa) e o círculo (poesia)
01/04/2006

Escritores cuja escritura navega na confluência de águas aparentemente distintas — a narrativa e a lírica —, seqüestrando e embaralhando os elementos próprios de cada enxurrada?

Prosadores que fazem prosa com jeito de poesia?

Poetas que fazem poesia com jeito de prosa?

Prosadores que estruturam suas narrativas com a matéria-prima da poesia (rimas internas, assonâncias, mergulho subjetivo, ambigüidade discursiva)?

Poetas que estruturam seus poemas com os elementos próprios da prosa (personagens, enredo, ação, narrador)?

Que é a prosa? Que é a poesia? A proesia, que proeza é?

Para Octavio Paz metro e ritmo não eram a mesma coisa.

No ensaio Verso e prosa, o celebrado poeta joga habilmente com os dois termos tradicionalmente ligados à sua especialidade, subvertendo a definição convencional de prosa e poesia.

Para dom Octavio, textos como Alice no país das maravilhas, Finnegans wake e os contos de Borges são boa poesia, não prosa.

Isso me faz lembrar que para Graciliano Ramos os poemas de Álvaro de Campos e os de Maiakóvski, principalmente Hino ao crítico e A plenos pulmões, eram boa prosa, não poesia.

Mas talvez não seja bem isso.

Talvez os textos citados não sejam exemplos respectivamente de prosa ou poesia, mas de outra coisa. Algo que, por ser mestiço (filho bastardo da épica com a lírica), bem que merecia outro nome.

Essa interpenetração entre a prosa e a poesia é algo muito antigo que estava perdido desde o Renascimento e só foi recuperado no modernismo: tradição que voltou como ruptura.

Raul Bopp e Gullar.

Lobo Antunes e Mia Couto.

Clarice e Rosa.

Adília Lopes e Gonçalo Tavares.

Prosa poética, poesia prosaica?

Há quem goste desses nomes, eu não. Tanto no primeiro quanto no segundo os termos continuam separados.

A interpenetração entre a prosa e a poesia renovou as questões cruciais (cruz: horizontal + vertical) dirigidas à humanidade e à linguagem.

Que é o cosmo? Que é o caos? O caosmo, que é?

A separação pertence à escuridão? A união pertence à claridade? O clarescuro da separunião, a quem pertence?

Quem sempre diz sim ou quem sempre diz não jamais visitará Sião?

Há poetas que não lêem prosa de ficção, há prosadores que não lêem poesia: a noite não conhece o dia?

Que é a prosa? Que é a poesia? A proesia, que proeza é?

Que é o silêncio da inércia? Que é o som do frenesi? Que é esse silêncio ensurdecedor, essa frenética imobilidade?

Quem define o homo sapiens? Quem define o texto eterno? O antigo testamento do homo textus, quem define?

A prosa é macha? A poesia é fêmea? E na proesia, quantos sexos cabem?

A ira de Deus ou a volúpia do diabo? Luxo ou luxúria, evolução ou revolução?

Absoluto ou relativo, imutável ou transitório? Ficar com os dois lados da mesma moeda, o absolutivo e o imutório, por que não?

Isso seria sinal de astúcia ou de estultice? Seria indício de inteligência ou dois dedos de pura demência?

Que é a carne? Que é o discurso? Não somos todos, leitores e escritores, discursos encarnados à espera de encadernação?

Não somos todos escritores adormecidos pela escritura, leitores despertados pela leitura?

Que é o monólogo? Que é o diálogo? Que é o cego falando sozinho para a platéia de surdos-mudos interligados pela internet?

Que é a violência? Que é a solidariedade? O soco bem dado na boca do estômago é argumento ou atrevimento? É fala ou ato falho?

A prosa é a cidade, é a festa pública? A poesia é o campo, é o ritual privado? A proesia, que é, quando acontece, onde está, por que sorri tanto?

Será que sua essência é essa batalha campal em praça pública, será que ela é essa destruição criadora de prédios e bosques?

Humor negro ou mau humor colorido?

Vida profana ou morte sagrada? Qual é a mais dolorida?

A prosa é do senso comum? A poesia é do nonsense incomum?

A prosa é a tese sintética? A poesia é a antítese analítica?

Que é a timidez? Que é a audácia? Todo herói mascarado tem vergonha de sua dupla identidade, de sua diabólica santidade?

Só a prosa aprisiona o real? Só a poesia abre as portas da percepção?

A prosa é a fusão de gêneros na era da fissão do átomo? A poesia é a passagem do raso da razão para o fundo da intuição?

Ora, então estão juntas, a prosa e a poesia, a proesia: essa fusão e confusão de gêneros no ponto em que a razão se afoga.

Ou, nas palavras de dom Octavio, proeta do noturno meio-dia: essa afirmação que se nega sem cessar e, ao se alimentar de sua própria negação, afirma-se, signo após signo, ao infinito.

A grande questão é: se a proesia é uma só, como explicar que a poesia manchada de prosa seja tão diferente da prosa manchada de poesia?

Como explicar que O inútil luar, A máquina do mundo e U veneno de la beleza y de la felicidad de las mininas sejam tão diferentes do Catatau, das Galáxias e da Cinevertigem?

Contradição? Inconsistência? Leviandade?

Contradistendade?

A proesia, qualquer que seja, sempre provoca essa suspeita de que todas as categorias culturais precisam ser constantemente reformuladas.

Inclusive a própria definição de proesia: essa fusão e confusão de ritmos na fronteira entre a linha (prosa) e o círculo (poesia).

Entre a marcha e a dança.

A melodia e a harmonia.

A realidade e o sonho.

*****

É noite. A lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia…

Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha…

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia…
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel…
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas…

Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.

Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
— Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha.

E embalde a lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia…
[Bandeira : O inútil luar]

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
[Drummond : excerto d’A máquina do mundo]

Hoje quando amaneci eu ainda bomitava bocê, amore,
como en un poema du Jamil Snege.
Durante toda la mañana continuei vomitando bocê y parecia que eu
non ia parar de te vomitar nunca mais.
Cuanto mais yo te bomitaba mais eu me sentia leve.
Mesmo assim bocê continuaba entalada em mio estômagu.
Continuei a te bomitar por la tarde.
Y el dolor de cabeça non pasaba.
El dolor de estômagu non pasaba.
Era noche nuebamente.
E yo te bomitava ainda.
Vomitaba solamente água.
Felizmente yo ainda era jobem.
Non tenía quarenta anos todabía.
Tenía tempo pra continuar te bomitando.
Y continuei a te bomitar.
Porque se eu non te vomitasse, se deixasse bocê apodrecer em mim,
sei lá, morreria enbenenado.
Por eso yo non tinha mais remédio além de continuar te bomitando.
Amor bichado, amor estragado, amor com data de bencimento vencida, sei lá, mi dá un feroz dolor di barriga.
Depois de tanto vomitar bocê, amore, comecei a cagar bocê.
O sol non tinha ainda aparecido.
Era uma feroz disenteria no escuro.
Yo te cagaba copiosamente.
Bocê salía con dificuldade.
Non queria salir.
Pero salía, apesar de toda la dificuldade.
Era una cólica etrusca.
Non ia terminar de te cagar tan cedo.
A veces paraba de te cagar por algun tempo.
Y empezaba a bomitar bocê nobamente.
A bomitar tus cachos.
A bomitar tus mechas bermelhas.
Mais una noite sem bocê, amore, y mio cuerpo en transe.
Depois vai aparecer u sol.
Enton irei pru quintal.
Dou bom dia pru sol.
Y começo a mijar bocê, amore.
Mijar bocê, confuso.
Mijar bocê como un débil mental.
Mijar bocê como un passarinho.
[Douglas Diegues, excerto de U veneno de la beleza y de la felicidadi de las mininas: primeiras páginas]

Não traduzo nem leio: giro e jazo. Um círculo de giz em volta de meu juízo, uma nuvem, uma caligem, um bafo me embacia o entendimento para que Brasília… Ergo. Lentes e dentes de vidro. Fedor de antas e araras, pela inhaca se conhece a peste que grassa. Uma fera urra dando a luz. A onda está parindo Artischewsky? Esse pensamento sem bússola é meu tormento. Quando verei meu pensar e meu entender voltarem das cinzas deste fio de ervas? Ocaso do sol do meu pensar. Novamente: a maré de desvairados pensamentos me sobe vômito ao pomo adâmico. Estes não. É esta terra: é um descuido, um acerca, um engano de natura, um desvario, um desvio que só não vendo. Doença do mundo! E a doença doendo, eu aqui com lentes, esperando e aspirando. Vai me ver com outros olhos ou com os olhos dos outros? AUMENTO o telescópio: na subida, lá vem ARTYSCHEWSKY. E como! Sãojoãobatavista! Vem bêbado, Artyschewsky bêbado… Bêbado como polaco que é. Bêbado, quem me compreenderá?
[Leminski: excerto do Catatau]

Cheiro de urina de fécula de urina adocicada e casca de banana de manga rosa quando esmagada no chão o calçamento desliza nos pés como se você estivesse entrando por uma região viscosa um aberto de vagina em mucosa pedrenta tudo cheirando vida ou morte ou vidamorte um cheiro podre de orgasmo rançoso e peixe e postas de carne ao sol a muleta solavanca um aleijão que come farinha com dedos apinhados cor cafre café ocre moca o peito apoja debaixo da fazenda rala e emborca para uma zona tórrida de coxas colantes e grelo fio-de-mel agora é a mulata de olhos bistrados que reolha um espelho de lata e esmalte e correm para o oval de reflexos fósforos faíscas um cio remontado de cachorros também cheiros gritos trilos psius o fartum da rua em chaga exposta
[Haroldo de Campos: excerto das Galáxias]

quem me dá, quem me dá esse destino de apólogo da miséria urbana, antropólogo do cimento, esteta da palavra moderna que brota do arrependimento; da culpa caudalosa e ancestral que vem de holandeses tão lindos que comeram as pernambucanas nas praias do Recife quando os tubarões não chegavam e os portos não avançavam por mangues cheios de comidas… quero ser o perfeito defensor dessas causas perdidas, curar as dores das barrigas que não degustam os manjares possíveis somente aos nobres paladares dos sociólogos da corte que cortam o raciocínio em começo, os meios e os fins; tudo tem finalidade, essa a grande verdade e eu não venho aqui para defender nem para explicar, confundir é o meu lugar, lugar de 500 anos de solidão que não explicam a contradição entre o país real e o imaginário, o país original e o falsário, o país do que acontece do que podia ter acontecido se o índio não tivesse comido a banha do bispo Sardinha morto no açougue das almas, morto no azougue com palmas no auditório quase vazio de nossa história, uma história que não é contada no cinema, esse o nosso dilema…
[Ricardo Soares: excerto da Cinevertigem]

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho