Quando recebeu o prêmio Jabuti por À sombra do cipreste (Palavra Mágica, 1999), em 2000, Menalton Braff foi tratado como um desconhecido, inclusive neste Rascunho. E era. Antes disso, havia escrito dois livros que quase ninguém leu, por uma editora que poucos conheciam, com um pseudônimo que passou em branco pela história.
Alguns meses depois do prêmio, o autor foi classificado por aí como o “novo Raduan Nassar” ao lançar o romance Que enchente me carrega? (Palavra Mágica, 2000). Apesar de Braff já ser então reconhecido como o ganhador do Jabuti, isso ainda lhe era insuficiente para valer uma definição própria.
A leitura de Que enchente… leva automaticamente para a comparação a Nassar, não apenas pela proximidade do estilo e da linguagem. Desconsiderando-se os dois livros escritos com o sugestivo pseudônimo Salvador dos Passos, Braff seria então um autor consagrado com apenas duas, mas excelentes, obras. Como Raduan Nassar.
A coincidência foi um prato cheio para aqueles que adoram definições. Mesmo que elas fossem para caracterizar Braff, que as odeia, como já informara por meio do personagem Firmino, em Que enchente… (“Das coisas que mais detesto é que alguém me defina. Quanta gente se perde na vida por culpa de uma definição! Chega um sujeito qualquer, sem responsabilidade nenhuma, e inventa os limites, descreve o universo numa frase, bota uma camisa-de-força num cavalo selvagem. Pronto, fode tudo!”).
Pois Braff, querendo ou não, deu o troco naqueles que um dia o chamaram de Desconhecido ou de o Novo Raduan Nassar. Seu recente romance, Castelos de papel, só permite uma definição: Menalton Braff é um grande escritor, independentemente do prêmio Jabuti ou da comparação com qualquer outro autor.
Não que tais comparações sejam necessariamente desonrosas. Pelo contrário. Que enchente… tem realmente muita similaridade com os dois livros do talentoso Nassar, cuja boa influência já foi admitida por Braff. Assim como Um copo de cólera e Lavoura arcaica, o romance anterior de Braff foi escrito de uma forma intensa, com poucas vírgulas para o leitor respirar. O recurso é apropriado para desaguar a enchente de pensamentos e angústias do personagem Firmino, um sapateiro que tenta (em vão) mostrar ao mundo que existe arte em sua profissão e que a mulher não deveria tê-lo abandonado.
Com Castelos de papel, Braff mostra o mesmo vigor, mas muda um pouco o estilo, distanciando-se da metralhadora verbal à la Nassar. O trato com a linguagem continua refinadíssimo, mas há uma pausa poética que lembra a dos contos de À sombra de cipreste, recolocando Braff como um autor de lirismo na dose exata:
“Mas era provavelmente aquela sensação, anunciada despudoradamente por todo o corpo, que sentiu acusada pelo olhar duro-penetrante do sorveteiro, quando se aproximou com a carteira na mão. Os olhos azul-cinza, as rugas profundas do rosto, o cabelo branco e liso em desalinho, o macacão de zuarte surrado, aquela cruz de ferro fechando a entrada do peito, tudo nele uma peça de acusação. Parecia muito cansado. Parecia uma alegoria da derrota.”
Vale deixar claro que o objetivo aqui não é afirmar que, ao reaproximar-se do estilo que lhe rendeu o Jabuti, Braff quisesse evitar nova comparação com Nassar. E se quisesse, pouco importaria. A qualidade literária de Castelos de papel é superior a qualquer tipo de ilação ou intenção.
Que enchente…é uma obra de certa forma egocêntrica, direcionada por Firmino. Os outros personagens só ganham vida pelos olhos e pensamentos do protagonista, que sempre controla a narrativa e funciona como marionete do autor no domínio da linguagem escolhida. Firmino é a mão e a voz de Braff do começo ao fim do livro.
Em Castelos…, aos personagens é permitida um pouco de liberdade, ainda que a obra seja centralizada em Alberto Ribeiro, a chave do romance. Os coadjuvantes até têm direito à participação constante nos diálogos, muito bem explorados pelo autor para que o leitor dê uma respirada durante as reflexões de Alberto.
Mas que o leitor não se deixe levar por estas tomadas de ar, pois, se isso acontecer, será surpreendido ao final do livro. E mesmo após algumas releituras da última página, terá dificuldade em compreender que o caminho fácil sugerido pelo autor desemboca no labirinto angustiante de Alberto, camuflado pelos conflitos paralelos da obra.
Alberto, na verdade, é um Firmino de fora para dentro. Enquanto o protagonista de Que enchente… era um personagem interior, que questionava o mundo a sua volta de forma unilateral, Alberto percebe por meio de fatores externos como sua vida se transformou, que o que havia construído não passava de castelos de papel.
Empresário bem-sucedido, apesar da precária formação, Alberto sente seu poder ruir depois que se aposenta. A sucessão de fatos ao seu redor o conduz a um olhar interior, a uma descoberta de que era respeitado pelo que fora, não pelo que é. Primeiro é o filho que desafia o patriotismo do patriarca ao desejar deixar o Brasil. Alberto nega-lhe a ajuda pedida para partir para o Canadá. Na verdade, o que o pai quer é manter o filho e toda a família sob sua égide, num exercício ilusório da continuidade de sua ascendência sobre todos que o cercam.
Depois é o seqüestro de um amigo empresário, que faz Alberto recear pela própria segurança. Ele sente-se ameaçado por aquele olhar duro-penetrante do sorveteiro, imaginando que fosse um antigo funcionário a persegui-lo. Temendo um seqüestro, Alberto contrata um pelotão de segurança e decide voltar à empresa onde ainda é o maior acionista, para tentar encontrar a ficha do sorveteiro nos arquivos.
O encontro com o passado é uma experiência difícil para Alberto. O passado inspira devaneios, reflexões, angústias e remorsos. A gentil secretária e a possibilidade de terem sido amantes é um tormento para Alberto. Ele bem queria que o affair tivesse acontecido, mas, como era genro do dono da empresa, conteve o desejo. Não exatamente por amor ou respeito à esposa, e sim para não colocar em risco suas ambições profissionais. Dona Ester, a secretária, por sua vez, tardiamente se questiona se não deveria ter sido mais ousada nos sinais de aceitação que emitia ao ex-patrão. Lamenta-se por ter sido discreta demais no assédio ao homem por quem ainda suspira.
Quando conhece o esforçado novo office-boy da empresa, Alberto relembra seu começo na companhia em que acabou passando a maior parte de sua vida. Alberto vê no olhar do garoto a força necessária para construir uma carreira sólida, como ele fez, mesmo tendo que atropelar pessoas e situações de maneiras que a ética não recomenda. O boy, que respeitosamente lhe arruma um ventilador, no entanto, não faz idéia da trajetória daquele senhor que agora perde tempo com arquivos empoeirados numa sala abafada. Um homem outrora poderoso, que antes caminhava pelos corredores cercado de assessores, mas que agora aguarda com ansiedade a chegada de uma simples xícara de café.
O Alberto de Castelos de papel é uma sucessão de pistas falsas comparado ao Firmino de Que enchente… Enquanto a angústia do sapateiro é revelada de maneira clara, apesar da intensidade estonteante do texto, a linguagem mais leve e lírica de Castelos… é traiçoeira, escondendo a profundidade do personagem. Todos os conflitos em Castelos…são gerados por Alberto ou por causa de Alberto. Os outros personagens desfilam aparentemente soltos, mas não sobreviveriam sem o protagonista. São pequenas peças de um quebra-cabeça que vão se encaixando à medida que Alberto vai tecendo seu drama.
Mas ambos — Firmino e Alberto — guardam uma similaridade universal: são essencialmente humanos. Dessa forma, seja um sapateiro, seja um empresário poderoso, eles se igualam na inquietação pelo reconhecimento, ou pela perda dele. Firmino quer ser o que nunca será. Alberto deseja voltar a ser o que nunca mais será.
O talento de Menalton Braff com o texto não é novidade. Nos livros anteriores, ele mostrou uma delicada firmeza, com uma rigidez estética na construção das frases. Perambulou do lirismo de À sombra do cipreste à avalanche verbal de Que enchente me carrega? sem nunca perder a identidade própria de seu texto. Em Castelos de papel, Braff mistura os estilos sem prejuízo à linguagem. Mas a surpresa fica mesmo na construção dos personagens, talhados na medida certa para enriquecer o romance. A liberdade lhes é concedida, mas sempre sob o controle ardiloso do autor (por vezes iludindo o leitor), pois o desfecho do livro não poderia ser outro senão a volta a Alberto em seu devaneio final. (“A pasta seguinte, uma das últimas, anoitece os olhos de Alberto, que ricocheteiam pelas paredes e armários do arquivo morto, mas retornam incrédulos à imagem que o perturba há mais de duas semanas.”)
Neste romance, Menalton mostra que tem sobre história e personagens o mesmo domínio que já revelara sobre a linguagem. O ex-desconhecido Braff comprova em Castelos de Papel que é mesmo um grande escritor, o que vale mais que qualquer definição que se possa tentar lhe atribuir.