Infelizmente, o clichê é inevitável. Quando pensamos na Índia, pensamos logo em vacas andando pelas ruas sem serem incomodadas, pessoas de turbante, quando são sikhs, ou com jóias coladas no rosto, no caso de mulheres, ou hindus em poses esquisitíssimas meditando à beira do Ganges. Pensamos também em pobreza, muita pobreza, e uma sensação de caos praticamente onipresente. A Índia, para quem nunca foi para lá, é assim mesmo, cheia de imagens prontas.
Claro que, como em qualquer lugar do mundo, sob o manto dos clichês corre a vida humana, exatamente igual a todas as outras. Quer dizer, não exatamente igual, mas muito parecida. Há que se considerar as diferenças culturais, principalmente aquelas que dizem o que é pecado e o que não é. A religião, não importa o que digam os ateus e céticos de plantão, ainda é a fonte primordial do que conhecemos por ética. E em um país onde as religiões parecem se encontrar e se misturar e dar origem a outras milhares, ainda que na maior parte dos casos umas intolerantes às outras, pode-se esperar milhares de conflitos por causa delas.
A questão das religiões também passa pela questão das castas. Diz o clichê que a sociedade indiana é dividida em castas, e que a ascensão de uma para outra é proibida, ou altamente dificultada. A divisão em castas explicada por motivos religiosos seria então a causa da aceitação da pobreza extrema por parte dos indianos. Quem sai do país, poderia adquirir um olhar crítico sobre essa divisão, que parece irracional para quem não a conhece ou não a estuda.
Há ainda outros clichês, mas talvez seja aconselhável citar um ou outro, apenas para não chatear o leitor. A Índia sofre de superpopulação, de fome; chove nas monções de inverno, é seca nas monções de verão, cada uma com seis meses exatos; há um conflito muito grande com o Paquistão por causa da Caxemira, sendo que os dois países têm armas atômicas; os sikhs, do Norte da Índia, vez ou outra se rebelam em busca de independência; sikhs não são muçulmanos, apesar do turbante, e tampouco hindus; e, ponto comum de todo o Terceiro Mundo, a corrupção grassa na Índia como crescem rãs no Brasil. (Será uma das explicações da pobreza?)
Todo este longo circunlóquio foi para chegar a Um pai obediente, do indiano Akhil Sharma. Como já mencionei em alguma edição anterior deste Rascunho, sou um leitor de orelhas e contracapas. Elas servem de introdução para o que está por vir, podem ser uma advertência em caso de entrada em locais nunca conhecidos.
O que esperar então de Um pai obediente, a partir do comentário de Joyce Carol Oates, escrito na contracapa? “Uma tragicomédia sobre a Índia contemporânea contada com sutileza e em maravilhosos pormenores por um talentoso e jovem autor”, diz Joyce, provavelmente o fragmento de um texto maior. Na minha interpretação, esta frase significa que o livro servirá como um portal para uma civilização desconhecida, que se bate entre a manutenção das tradições e o avanço do Ocidente, ou melhor, dos costumes ocidentais representados no cinema e na televisão, entremeada de um ou vários conflitos pessoais entre a honra e a lealdade, entre o dever e o sentimento, tudo coroado por um pouco de humor e cinismo, já que a Índia foi colonizada pelos britânicos. Se há estes conflitos, porém, os há em pequena escala.
A história de Um pai obediente gira em torno de Ram Karan, um funcionário corrupto do Departamento de Educação Física de Velha Déli, na Índia. Não que ele pessoalmente seja corrupto, mas ele coleta “doações” para o seu superior, o senhor Gupta, funcionário do Partido do Congresso, um sistema de fazer inveja a qualquer partido brasileiro e suas estranhas técnicas de captar doações eleitorais. A vida corre lentamente e sem grandes surpresas, até que Rajiv Gandhi, filho de Indira e primeiro ministro da Índia, é assassinado. Seu superior passa então de fiel escudeiro do Partido do Congresso, de Gandhi, para candidato do BJP, partido hinduísta, levando consigo o dinheiro arrecadado.
Na vida pessoal (e na minha opinião), Ram Karan não vale uma paisa, unidade divisória da rupia. Quando sua filha Anita tinha 12 anos, Karan a estuprou sistematicamente durante meses, até que sua mulher Radha descobriu. Neste instante, a filha é enviada para a casa de parentes, a outra filha, Kusum, também, e uma relação se manterá até a morte de Radha, com o sentimento de culpa bem escondido no peito de Ram. Anita tenta seguir sua vida, se casa, e tem uma filha. Quando o seu marido morre, ela retorna para a casa do pai, tentando levar uma vida normal com seu estuprador, que ao mesmo tempo é seu pai. Antes que se diga que ela é uma mulher fraca, na Índia de hoje, segundo Sharma, as chances de uma viúva com filhos casar de novo são mínimas. Por isso, ela permanece junto ao pai.
Tudo tem um mínimo de normalidade, até que Ram, bêbado, vai se aproximando de maneira perigosa de Asha, a filha de Anita e sua neta. Antes que algo aconteça, Anita entra em seu quarto e o impede. Ram se desculpa dizendo que está bêbado, e que não poderia ser imputado de um crime que não aconteceu, pois afinal não chegou a molestar sexualmente sua neta. Claro, não o fez por ter sido interrompido.
As conseqüências intricadas entre o crime familiar e a vida corrupta de Ram são o tema do livro. À medida que a adesão de seu chefe ao BJP, com as conseqüentes ameaças de retaliação (leia-se assassinato) do Partido do Congresso, cresce a raiva e o descontentamento de Anita com seu pai, que só silencia com dinheiro. Novamente, compra-se a discrição com rupias, muitas rupias.
Um pai obediente é um bom livro. No entanto, todo o circunlóquio feito no início foi para justificar uma opinião, a de que falta algo ao longo do livro. Sharma nos dá a impressão de que vai falar da Índia, seu país natal. No entanto, vemos na orelha do livro que ele cresceu em Edison, Nova Jersey, nos Estados Unidos. De profissão, ele é banqueiro de investimentos. E em toda a história, parece que falta algo de sincero, de verdadeiro.
Os dramas raciais da Índia aparecem, mas de leve. A corrupção, apesar de ser o motivo da existência de Ram, aparece, mas parece tratada de maneira superficial. Os contrastes entre a Índia paupérrima e a riquíssima são explorados, mas pouco. A situação de guerra permanente entre os partidos indianos recebe uma análise superficial.
Nesse ponto, começo a perceber o meu problema, e que é meu, e não do livro. Se eu não tivesse lido as orelhas ou a contracapa, partiria para a história com um outro espírito, e encontraria um belo drama, muito bem amarrado, escrito em uma linguagem clara e concisa. A história de Ram é contada sabiamente, desde o início de suas perversões sexuais. Também é linda a história de Anita, e toda a dor e o sofrimento que teve ao longo de uma vida de muito pouco amor. Todos os personagens são bem elaborados, e Sharma não deixa o leitor antever em momento algum o que virá a seguir.
No entanto, eu esperava um romance sobre a Índia moderna e seus conflitos. Sharma nos deu um bom livro sobre pessoas que vivem na Índia, não sobre seu país natal. O que mais uma vez prova que até os bons livros não são para todos os leitores.