Os anjos e santos de Eliot Weinberger

Aos 72 anos, o tradutor, ensaísta e escritor americano continua na ativa, destilando seu multitemático e vasto cabedal de conhecimento não acadêmico
Ilustração: Eliot Weinberger por Oliver Quinto
01/07/2021

Será que ainda existe espaço (e necessidade), no planeta, para a erudição sem fronteiras, bem escrita, sutil, bem-humorada? Me refiro àquele saber meio renascentista, polímata, poliglota, nesse nosso novo mundo encaixado nas molduras do lugar de fala, de academicismos e suas notas de rodapé e dos inúmeros pós (colonialismo, nacionalismo, modernismo, estruturalismo, humanismo…). Aqui no Brasil já se foram há tempos os eruditos Rubem Braga, José Geraldo Vieira, Paulo Rónai e Otto Maria Carpeaux. Ainda há alguns teimosos na ativa, gente como Ruy Castro, Sérgio Augusto e mais um ou outro, mas eles são cada vez em menor número. Em terras d’além mar a situação não é muito melhor, pois já nos deixaram Octavio Paz, George Steiner, Isaiah Berlin, Umberto Eco… Mas, mantendo viva a chama da esperança, Eliot Weinberger, aos 72 anos, continua na ativa, produtivo e agudo como nunca.

Weinberger é multitarefa, multitemático e senhor de um vasto cabedal de conhecimento não acadêmico, que jamais se encaixaria num departamento universitário típico, pois mergulha sem pudor em tudo o que desperta sua curiosidade, indo de estudar e traduzir poesia clássica chinesa a biografar Maomé, de estudar a história de Adão e Eva a produzir ensaios sobre tradução, de traduzir poetas indianos a literatura latino-americana, de escrever ensaios sobre a Irlanda medieval a como as pedras aparecem em diferentes culturas e tempos (isso, aliás, num texto em que é citado o poema de Drummond), de falar sobre o Iraque invadido ao governo Obama… e a lista segue. E, como nos escritos de Jorge Luis Borges (de quem Weinberger é fã, tradutor e um incansável divulgador nos Estados Unidos), às vezes fica difícil para o leitor saber onde começa um poema e termina um ensaio, ou vice-versa.

Seu texto sobre laranjas e amendoins, por exemplo, que dá título a um de seus volumes de ensaios (Oranges & peanuts for sale, New Directions, 2009), tem um parágrafo inicial delicioso, que vale transcrição na íntegra (tradução minha):

As laranjas vieram da Ásia, mas ninguém sabe o lugar exato. Os chineses as mencionam em seus escritos mais antigos; a palavra, em sânscrito, é naranga. Há quem diga que eram cultivadas na Mesopotâmia; há quem diga que os egípcios as comiam; há quem diga que há laranjas na Bíblia, mas há quem diga que lá não há laranja alguma. Os romanos as pegaram dos persas, e construíram, para protegê-las, as primeiras estufas com lâminas de mica: “orangeries.” Júpiter deu a Juno uma laranja como presente no dia de seu casamento, como símbolo de seu amor eterno, mas com o fim do Império as laranjeiras morreram e desapareceram da maior parte do Mediterrâneo. Os mouros as conservaram na Espanha; os Cruzados as levaram de volta à Itália. Colombo levou sementes de laranja em sua segunda viagem. Os portugueses as transportaram ao Brasil; não muitos anos depois, ninguém sabem como, os primeiros viajantes ocidentais nas profundezas do interior reportaram ter se deparado com laranjeiras selvagens. Bernal Díaz del Castillo plantou pessoalmente as primeiras sementes de laranja no México, em Tonalá, na semana de 12 a 20 de julho de 1518. A laranja não é uma fruta, mas uma baga; eu não sei por quê. La mar no tiene naranjas, o mar não tem laranjas.

O livro-ensaio de Weinberger sobre tradução, chamado 19 ways of looking at Wang Wei, with more ways (“19 jeitos de se olhar Wang Wei, com mais jeitos”, em tradução livre), cujo posfácio é de Octavio Paz (de quem Weinberger foi amigo, tradutor e colaborador), e que usei em meu romance Poesia chinesa, é uma das mais instigantes reflexões sobre tradução de poesia que eu já vi. Nele, Weinberger pega um pequeno poema de Wang Wei (699-759), poeta da dinastia Tang, e apresenta e comenta vinte e nove diferentes traduções para o inglês e outras línguas ocidentais. Entre os tradutores há poetas e acadêmicos, incluindo Gary Snyder, Kenneth Rexroth e o próprio Paz (que aparece com duas versões). Tudo o que se discute em traduções de poemas está aqui: deve-se priorizar o conteúdo? A forma? Até que ponto o tradutor pode ser considerado coautor, ou será somente um porta-voz do original? Tradutores que são também poetas se saem melhor do que os acadêmicos? Para ilustrar o que eu digo, vejamos as duas versões de Octavio Paz para o poema, separadas uma da outra por doze anos:

En la Ermita del Parque de los Venados, versão de 1974:

No se ve gente en este monte.
Sólo se oyen, lejos, voces.
Por los ramajes la luz rompe.
Tendida entre la yerba brilla verde.

Versão de 1986:

No se ve gente en este monte,
sólo se oyen, lejos, voces.
Bosque profundo. Luz poniente:
alumbra el musgo y, verde, asciende. 

Nas duas primeiras linhas, a única mudança foi a troca de um ponto por uma vírgula, que alterou o ritmo, mas não o conteúdo. Nas duas últimas linhas, contudo, a mudança foi tão grande que chega a parecer que se trata de um outro poema. Se incluíssemos na comparação as versões para o inglês, o francês e o alemão que há no livro, a impressão de que se trata de muitos poemas originais, e não de um só, seria ainda maior.

No Brasil foram publicados apenas dois livros de Weinberger. Um de sua veia mais política, Crônicas da era Bush — o que eu ouvi sobre o Iraque (Record, 2006), e As estrelas (Editora 34, 2019), de apenas 52 páginas, em edição bilíngue com excelente tradução de Samuel Titan Jr., um “típico” Weinberger: nesta obra, usando seu arsenal de erudição e num texto literalmente poético, o ensaísta “estuda” o tema: “As estrelas, o que são?/ São lascas de gelo refletindo o sol;/ são luzes à deriva nas águas do domo transparente;/ são pregos cravados no céu…” Crônicas e Estrelas são duas ótimas introduções à obra do ensaísta, mas representam muito pouco para se ler em português diante de sua vasta produção.

A erudição de Weinberger é tamanha que poderia ser até sufocante, não fosse ele tratar dos temas com habilidade e leveza. O estilo é límpido, pouco adjetivado.

O mais recente livro de Weinberger é Angels & saints (um dos livros do ano de 2020 do Times Literary Supplement), que é nada menos do que uma obra-prima. Numa caprichada edição em capa dura, ilustrada com belíssimas reproduções de desenhos do abade beneditino Habanus Maurus (780-856), o volume é dividido em quatro partes: Anjos, Santos, A vida após a morte e um epílogo, assinado pela professora Mary Wellesley, com um guia que explica as ilustrações. Das três partes escritas por Weinberger, a primeira tem 57 páginas; a segunda, 76; a terceira são dois parágrafos curtos, somando nada mais do que seis linhas. Eis o começo do livro (tradução minha):

Quando soldados armados chegaram para prender Jesus, um de seus discípulos desembainhou uma espada e decepou a orelha do servo de um alto sacerdote. Jesus disse a ele para abaixar a arma. “Você pensa que eu não poderia pedir ajuda a meu Pai, que me socorreria imediatamente com mais de doze legiões de anjos?” Uma legião romana naquela época somava cinco mil homens, mas Orígenes de Alexandria, no século III, revelou que uma legião celeste tinha 6.666 anjos. Vinte legiões dessas significariam uma modesta porção do que a Bíblia chama de “Exército do Céu.” A Revelação sustenta que existem “dez mil vezes dez mil vezes, e milhares e milhares” de anjos. Os Hebreus dizem apenas que eles são incontáveis. Bernardino de Siena, no século XV, disse que há mais anjos do que estrelas no céu, grãos de areia nas praias, ou todas as formas corpóreas. Os cabalistas do século XIV, transformando palavras em números, calcularam que há exatos 301.655.722, embora o Zohar diga que 600 milhões foram criados no segundo dia da Criação, e outros na sequência. Marsilio Ficino, no século XV, expandindo Orígenes, disse que há de fato 6.666 anjos por legião, e que há 6.666 legiões por ordem, e nove ordens, mas que o número total (que seria de qualquer forma de 399.920.004) permanece incalculável…

A erudição de Weinberger é tamanha que poderia ser até sufocante, não fosse ele tratar dos temas com habilidade e leveza. O estilo é límpido, pouco adjetivado, lembrando Borges, no qual a ironia é sugerida, mas raramente explicitada, e os milagres são relatados em seus valores de face, sem juízo de valor ou questionamentos. Em seguida ao trecho citado acima, aparecerão comentários de teólogos conhecidos, como Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Lutero (não que os menos famosos deixem de ser citados), com a discussão sobre o papel dos anjos, os tipos em que são classificados, a aparência, a quantidade de asas que cada um tinha e assim por diante.

Mas logo depois Weinberger parte para um formato que é pura poesia, como se pode ver no capítulo 5, com uma sequência de nove páginas que começa assim:

Anjos pairando por aí:

Iahhel,
o anjo dos filósofos e dos reclusos;
                                                         Heiglot,
                                                         o anjo das tempestades de neve;
Melchisedec,
o que alimentou os animais na arca de Noé;
                                       Memuneh,
                                       o que avia os sonhos;
                                                           Kerubiel,
cujo corpo é cheio de carvões em chamas;

Jalula
o que leva consigo a taça do olvido
de modo que a alma possa beber
e esquecer tudo aquilo que um dia soube;

E nessa toada a coisa prossegue, com o anjo dos rios, o da França, o que cuida da construção de barcos, o que guarda das sete chaves dos tesouros do Senhor, o do silêncio, o que traz os ventos do mar, o que embebedou Noé, o que protege as árvores frutíferas, o da morte dos reis, o da luz, o que consegue curar a estupidez e o que devolve os passarinhos aos seus donos, entre muitos outros.

Quando o leitor estava achando que a parte dos anjos já mostrara o bastante, vem a dos santos, com uma estrutura um pouco diferente: em vez de começar com as tentativas de definição canônicas sobre o que seriam, afinal, os santos, como fez com os anjos, Weinberger parte direto para as biografias de personagens que são, na grande maioria dos casos, completamente desconhecidos (não espere encontrar aqui celebridades como Santo Antônio ou São Jorge). As biografias por vezes rendem algumas páginas, mas na maior parte dos casos limitam-se a uma linha ou pouco mais. E a ironia contida, nada adjetivada, é a mesma, deixando o leitor a se perguntar, com um quase sorriso no canto da boca, o motivo de, afinal, aquela pessoa ter sido canonizada. Alguns exemplos: Brígida de Kildare (Irlanda, morta em 523) costumava pendurar seu manto num raio de sol; David (País de Gales, 500-589) tinha o dom das língua e quando viajou, em peregrinação de Gales a Jerusalém, não precisou de interpretes ao longo da jornada; Vedast (França, morto em 540) ressuscitou um ganso; Severo de Androcca (Itália, morto em 530), que ao chegar atrasado para uma extrema-unção, trouxe o defunto temporariamente de volta à vida, para que a morte pudesse transcorrer da maneira apropriada; Panaceia de’Muzzi (Itália, 1368-1383) foi morta com uma roca aos quinze anos de idade por sua madrasta má, que a flagrou rezando em vez de estar cumprindo suas tarefas domésticas.

E finalmente chegamos à terceira parte, a da vida após a morte que, como eu disse antes, tem apenas meia-dúzia de linhas. E que da qual eu me permitirei nada falar aqui, para não levar anticlímax ao eventual leitor que chegar a elas. O que digo, apenas, é que ali está a coroação do estilo pseudo sério e quase nonsense que impera ao longo do livro.

Fica a dica para as editoras brasileiras: não percam tempo e publiquem mais Weinberger por aqui. Aproveitem este Anjos & santos, que ainda está fresquinho e vem colecionando elogios mundo afora, e atraiam mais leitores para a obra deste ensaísta de erudição infinita. Porque, eu não tenho dúvida, no Brasil violentamente pró-tosquice em que estamos vivendo, não só ainda há espaço para autores assim eruditos e raros, como eles têm um papel mais fundamental do que nunca.

André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho