O mês de novembro é, para os proustianos, especial. Eles reafirmam a máxima segundo a qual a arte é mesmo longa e a vida, breve.
Proust morreu em 18 de novembro de 1922, em Paris. Ano importante para a literatura. O mesmo ano da Semana de Arte Moderna, no Brasil; da publicação de Ulysses, de James Joyce; da escrita de O castelo, de Franz Kafka.
No caso dos proustianos, a vida é longa e extensa, como extenso é o livro que Proust, de certa forma, escreveu por toda a sua vida, já que suas tentativas anteriores carregam cenas, passagens, estratégias que atingiriam a forma plena nos sete livros que compõem Em busca do tempo perdido.
A cada ano que passa os estudiosos do autor francês, e os seus devotos, sentem-se tímidos para chamar de romance o livro, pois ele é incomum na proposta de ser um romance. Muitos são os motivos pelos quais este desconforto ocorre, mas alguns de seus motivos centrais são o seu inacabamento e a mistura de diversas modalidades discursivas: memória, ficção, autobiografia, comentário, crítica de arte. A única certeza que temos acerca deste conjunto de livros é que se trata, sobretudo, de uma grande obra de arte.
Thomas Mann, quando leu outro grande livro inacabado, O homem sem qualidades, de Robert Musil, disse que alguns livros são tão originais que extrapolam a natureza da categoria na qual se encaixariam. Vale para Musil, vale para Proust. Vale para os dois heróis de monumentos inacabados.
Em 2022 teremos cem anos da morte de Proust, e a suspeita de que sobre ele já se disse tudo o que se tinha para dizer paira entre os críticos literários e pesquisadores, estudantes e professores, exegetas e hermeneutas, filósofos e linguistas, estilistas e historiadores, sociólogos e tutti quanti. Parece, ao contrário, que sobre Proust e sua obra sempre se terá muito a dizer. As ciências humanas ainda se inquietam diante do seu livro, suas cartas, seus fragmentos e tentativas de juventude, seja como enigma ou como encanto.
Dia 18 de novembro, para os proustianos, é uma data plural em sua significação. Para alguns, Proust não é um mito em torno do qual paixões se agitam, mas um escritor cuja obra deve ser analisada com o contumaz rigor e critério de um estudo que se queira de alto nível. Para outros, Proust é uma instituição, um monumento da cultura e da língua francesas, o único rival — ou par possível — para James Joyce, no século 20, ou membro incontornável da tríade de um breve século, que conta com o irlandês, o francês, mais Franz Kafka. Para a maioria, Proust não é um autor, e seu livro não é só uma obra, mas um período de suas vidas.
Constituem, no caso de Proust, autor e livro, um binômio inseparável porque poucas vezes vida e obra se confundiram tanto quanto em Proust e na voz que acompanha os seus leitores com singular intimidade e confissão, com entrega tão intensa que nem percebem estes leitores que estão, ali, diante do maior personagem da história da literatura, seja por suas inúmeras nuanças, ou por ser a única personagem que fala por três mil páginas.
Para alguns proustianos, o dia 18 de novembro é uma data; para outros, um marco; para muitos, um instante de reserva íntima, pois Proust não é o mistério que é por sua engenhosidade apenas, mas pelo poder modificador que sua obra opera em seus leitores. Sua extensão, sua multiplicidade de temas e questões, seus 227 mais que verossímeis personagens fazem com que o seu livro se transforme em um período da vida de quem se coloca neste itinerário pela experiência. Sempre, após ler Proust, recordam-se os leitores do primeiro contato com a obra com sentenças do tipo “na época em que eu lia Em busca do tempo perdido”.
Os leitores de Proust, ao se depararem com essa data em uma chamada de jornal, uma revista que os recorde; ou até mesmo quando a data é um dia inesquecível para os seus devotos ou estudiosos, são todos remetidos ao passado do tempo da leitura, ao tempo da busca. Nasce um fenômeno de super experiência estética quando se lembram do dia da palavra “fim” no tempo ordinário do acamado que depositou suas últimas forças na sua arte. Para quem se lembra dele neste dia, a obra se torna ponte temporal, como para aquela voz sem nome que toma um chá mergulhado em um biscoito de nome feminino, e tem ali a pista para uma felicidade sem fim, para uma época, um correr de frases que fazem pensar, ver e rever em comunhão — tal como está nas últimas páginas o uso cúmplice da terceira pessoa —, iluminar não o que a literatura proporciona àquele “eu”, mas sim a qualquer um de “nós” que tenha feito a travessia: revela, a literatura, para Proust, ou para o narrador, os seus leitores, “a nossa vida, a verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida realmente vivida”. Temos aqui uma peripécia que confundiria Aristóteles em sua Poética, pois é anti-trágica: o dia da morte se torna a recordação da vida compreendida para um leitor de Proust.
A quase total ausência de nome para essa voz que se confessa para os seus leitores cria um efeito fatal: o livro vira espelho do consciente e do inconsciente, e o desejo desta voz de artista que se pronuncia em texto é atingido em plenitude: lemos a nós mesmos quando lemos Proust. Por isso, talvez, ele não seja só um autor, mas um grande amigo.
Merci, Marcel.