Onde está Burt Lancaster?

Em “Dança da chuva”, Dennis Lehane comprova mais uma vez a influência do romance e do cinema noir norte-americano em sua obra
Dennis Lehane presta homenagem às clássicas referências do cinema e da literatura noir.
01/03/2007

Em “Dança da chuva”, Dennis Lehane comprova mais uma vez a influência do romance e do cinema noir norte-americano em sua obra

Um dos grandes desafios do romance policial contemporâneo é mostrar originalidade dentro de uma estrutura consagrada pelos grandes nomes do gênero e reconhecida por seu grande público leitor. Alguns autores optam por eleger modelos do passado com os quais dialogar: o modelo de Dennis Lehane é, sem dúvida, o romance e o cinema noir norte-americano.

Ao contrário do romance policial de enigma imortalizado por Arthur Conan Doyle, no romance noir dos anos 20 a análise dedutiva que leva à resolução do mistério não é o mais importante. Além de não ser mais detentor de um método científico de raciocínio, o detetive passa mais tempo nas ruas, envolve-se com suspeitos e testemunhas e é bastante falível, tanto nos métodos quanto em sua vida pessoal. É cínico, e embora trabalhe no limite da legalidade, ainda se mantém ético, à sua maneira. Os crimes que investiga são menos frutos de uma única mente perversa e diabólica do que decorrência de relações moralmente deterioradas, dentro de uma sociedade corrupta em todas suas estâncias e instituições. No cinema, as histórias noir ganharam notoriedade em Hollywood a partir dos anos 40.

Dennis Lehane presta homenagem às clássicas referências do cinema e da literatura noir. A começar pelo fato de seu detetive-narrador, Patrick Kenzie, ser fã de filmes antigos: sobram citações a Humphrey Bogart, Burt Lancaster, Tony Curtis além, é claro, ao detetive Sam Spade. Tais referências ajudam na ambientação narrativa, a criar um “clima” familiar ao leitor, e deixam evidente que tanto Lehane quanto seu personagem narrador têm consciência dos clichês a que estão recorrendo. Em Um drink antes da guerra, primeiro romance de Lehane, o detetive diz à dupla de policiais que o interroga: “Ora, rapazes, vocês têm um manual de clichês da polícia, é?”. Ou seja, se é para recorrer aos clichês, que se tenha a decência de assumi-los.

Lehane também aprendeu com a literatura noir duas de suas principais características: a primeira delas é o cinismo do narrador, que facilmente se converte em frases de efeito e piadas de gosto duvidoso. Algumas vezes, elas são responsáveis por descrições eficientes de personagens e momentos de alívio cômico. Outras, não. No mesmo Um drink antes da guerra, Kenzie “comete” o seguinte comentário sobre os políticos: “Eles são parlamentares eleitos. No dia em que falarem toda a verdade, as putas vão dar de graça”. Felizmente, sua parceira, Angie Gennaro, reconhece o mau gosto do narrador para as analogias: “Como sempre, suas comparações são uma maravilha. O produto de uma educação refinada, isso é o que você é”.

A segunda lição aprendida com os clássicos noir é o tom de pessimismo na descrição da cidade e da sociedade norte-americana, de maneira geral. Na Boston de Dennis Lehane, há a onipresente tensão racial, o ódio escondido sob os atos mais cotidianos, a corrupção disseminada por diferentes camadas sociais, além do simples e banalizado gosto pela violência. Deste modo, Lehane demonstra uma manifesta consciência na manipulação dos lugares-comuns do gênero e atualiza de modo bastante eficaz o clima de pessimismo noir. Neste sentido, é muito inteligente o uso da geografia da cidade: há sempre fronteiras e territórios a serem violados, além do saudoso olhar sobre o bairro da infância.

Todos esses elementos estão presentes em Dança da chuva, lançado nos EUA em 1999, e o último romance protagonizado pela dupla Kenzie/Gennaro até o momento. Desta vez, separado da parceira, Patrick Kenzie é contratado para cuidar de um caso de assédio sexual. A jovem que o contrata, Karen Kichols, se diz perseguida por um tipo mau-caráter. O caso corre bem: o detetive, na companhia de seu “cão de guarda” Bubba Rogowski, dá um susto violento no molestador. De modo que, meses depois, quando escuta um recado da mesma Karen Nichols em sua secretária eletrônica, Kenzie não vê motivo para responder imediatamente. Para sua surpresa, porém, a moça comete suicídio. Sabemos que a culpa é sempre um bom propulsor para narrativas policiais. Tornados “pessoais”, os casos podem ser investigados além do que exigiria qualquer compromisso estritamente profissional. E Patrick Kenzie se convence de que um retorno àquele telefonema poderia ter mudado o rumo dos acontecimentos.

Imagem distorcida
Iniciada a investigação, ele descobre que a imagem que fazia da suicida não condiz com a verdade. Quando a conhecera, Karen Nichols era a típica “mocinha com quem o herói casa no final do filme. Conhece o tipo? Não a garota sexy e fogosa que termina por criar problemas, mas a boa moça. Do tipo que nunca lhe escreveria uma carta de rompimento, se você estivesse na guerra”. Em poucos meses, porém, sua vida se transforma por completo: traumatizada por um grave acidente sofrido pelo namorado, ela perde tudo o que possui: emprego, carro, apartamento, o respeito familiar.

Dizer mais sobre o enredo pode estragar o prazer de ir se descobrindo as relações ocultas entre os personagens e o rápido desdobramento da ação. Até a metade do romance, há um churrasco da máfia, uma ou duas cenas de tortura e outras tantas mortes violentas. Violência que, aliás, não deve espantar os leitores de Lehane, acostumados com um sem número de armas e tiroteios. Desta vez, há ainda um vilão marcante, frio e sádico como poucos.

Patrick Kenzie é um detetive da tradição norte-americana, que prima mais pela ação do que pelo raciocínio: é violento e chantagista, embora tenha lá os seus princípios (muito diferente, por exemplo, do ético e observador Espinosa, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, ou do avoado Adamsberg, da francesa Fred Vargas). Mas apesar de Kenzie estar se tornando mais soturno a cada uma de suas histórias, ele ainda consegue manter os comentários irônicos sobre si mesmo: a certa altura da trama, ele se pergunta de onde vinha sua inspiração para “bancar o durão”. É fácil responder:

Ela ligou de uma cabine do saguão do hotel Park Plaza. Para que ela ficasse bem à vontade, fiquei palmilhando os pavimentos de mármore, admirando os velos elevadores com suas portas de cobre, os cinzeiros de cobre à esquerda das portas — e lamentei ter passado a época em que os homens usavam chapéus de feltro, bebiam uísque no almoço, riscavam palitos de fósforo na unha do polegar e chamavam os outros de ‘otários’.

Para onde é que você foi, Burt Lancaster, e por que levou embora quase tudo o que havia de bom?

O saudosismo de um modelo romântico e idealizado de detetive se deve, ao menos em parte, ao clima generalizado de desesperança que atinge não apenas o narrador, mas a maioria dos personagens. A certa altura da trama, uma psicóloga explica que, em um mundo como o nosso, todas as pessoas são suicidas em potencial. Os motivos estão aí. O verdadeiro suicida é apenas a pessoa que levou sua coragem adiante. Em meio a reflexões como essa, o narrador também se arrisca alguns de seus comentários “filosófico-existenciais”:

Mas o mundo, segundo minha experiência, é como Las Vegas: você pode ganhar uma ou duas vezes, mas se voltar à mesa de jogo com muita freqüência, se exagerar um pouco nessa coisa de lançar os dados, o mundo vai pôr você em seu lugar e tomar sua carteira, seu futuro, ou os dois.

De fato, Kenzie é melhor agindo do que refletindo. Não à toa, os melhores momentos do livro acontecem na rua. É quando Lehane demonstra seu verdadeiro talento para manipular cenas de tensão, sem necessariamente abusar da violência. Duas cenas se destacam, neste sentido: uma que se desenrola em um café, e envolve uma insólita discussão sobre uma cadeira livre; outra, enquanto uma personagem se exercita em um parque, na companhia de seu cachorro. São locais públicos, comuns a qualquer grande cidade, que evocam no leitor um sentimento disfarçado de insegurança cotidiana.

Além disso, Dança da chuva mantém a bem-sucedida química entre dupla de protagonistas, Kenzie e Gennaro. E traz coadjuvantes excêntricos como Bubba, que neste livro revela-se uma peça-chave. Mais que um ajudante carismático, ele possui um código de ética sólido, ainda que bastante deturpado, e encarna bem a calculada oscilação entre violência e humor , que dá o tom do romance.

Dança da chuva, enfim, sem ser um grande romance, é um grande romance policial. Distinção antipática, é verdade, mas que, nesse caso, é bastante pertinente. O livro é excessivo em vários aspectos, da violência às reflexões “filosóficas”. Além disso, a maioria de seus personagens são tipos, e mesmo os protagonistas são caracterizados a partir de estereótipos do gênero policial. A grande vantagem é que Dennis Lehane não apenas demonstra domínio sobre tais estereótipos, como tem a malícia de ironizar seus procedimentos e influências. De modo que o livro se inscreve sem culpa dentro de uma tradição para, de fato, honrá-la.

Dança da chuva
Dennis Lehane
Trad. Luciano Vieira Machado
Companhia das letras
419 págs.
Dennis Lehane
Nasceu no Dorchester, subúrbio de Boston, em 1963. Escreveu oito livros, cinco deles protagonizados pela dupla de detetives Patrick Kenzie e Angela Gennaro. Seu romance mais famoso é Sobre meninos e lobos, adaptado para o cinema por Clint Eastwood. Lehane já confirmou presença na próxima Festa Literária Internacional de Parati, que acontece de 4 a 8 de julho.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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