Onde cantam e emudecem todos os sabiás

Importante mapeamento, Roteiro da poesia brasileira coloca em tensão aspectos da nossa história literária
Ilustração: Theo Szczepanski
01/01/2013

Completada recentemente, a coleção Roteiro da poesia brasileira, da Global Editora, apresenta-se como um dos mais ambiciosos projetos de mapeamento da produção poética nacional de que se tem notícia no país. Dividido em 15 volumes, o Roteiro abarca textos e autores inseridos em nossa história literária desde o remoto século 16 até os agoríssimos anos da primeira década deste novo milênio. A divisão dos volumes obedece a critério cronológico, casando-o na maior parte das vezes ao predomínio estilístico de determinados períodos (a mudança ocorre a partir do Modernismo, quando então os tomos passam a corresponder às décadas do século 20). Além da largueza temporal, o Roteiro revela-se amplo na medida em que os responsáveis por cada número da coleção estampam perfis e jornadas intelectuais diferentes. Assim, convém enumerar as partes do latifúndio (e a quem cabe cada uma delas): Raízes (Ivan Teixeira); Arcadismo (Domício Proença Filho); Romantismo (Antonio Carlos Secchin); Parnasianismo (Sânzio de Azevedo); Simbolismo (Lauro Junkes); Pré-Modernismo (Alexei Bueno); Modernismo (Walnice Nogueira Galvão); Anos 30 (Ivan Junqueira); Anos 40 (Luciano Rosa); Anos 50 (André Seffrin); Anos 60 (Pedro Lyra); Anos 70 (Afonso Henriques Neto); Anos 80 (Ricardo Vieira Lima); Anos 90 (Paulo Ferraz); e, por fim, Anos 2000, a cargo de Marco Lucchesi.

Raízes, que abre a coletânea, contempla a poesia dos séculos 16 e17. A junção temporal é interessante por quebrar o expediente historiográfico mais usual, pautado nas denominações Quinhentismo (para o século 16) e Barroco (para o 17). Mas a nomenclatura adotada não é tomada confortavelmente: a sugestão editorial leva Ivan Teixeira (cujo conhecimento sobre a literatura clássica do Brasil é magnânimo) a iniciar a apresentação com um questionamento acerca da possível inflexão evolucionista que título do volume sugere: “Apesar de seu inquestionável prestígio histórico e de sua força plurissignificativa, a metáfora pode ser discutida, pois, de certa forma, transfere a poesia do âmbito da cultura, a que de fato pertence, para o âmbito da natureza, com a qual se relaciona de modo indireto”.

Em seguida, também é contestado o rótulo Barroco: “Atualmente, esse termo vem sendo evitado, pois pressupõe uma unidade que, de fato, nunca existiu. Embora tenha, no passado, integrado o repertório de certa vanguarda crítica, tal categoria, tendo sido inventada para descrever configurações artísticas e outro momento que não o seu, é hoje considerada projeção de uma visão idealista da história da arte”. Feitas as colocações teóricas, a seleção do corpus segue o cânone, sempre de maneira valorativa, pois Ivan Teixeira, ao mesmo tempo em que justifica sua pesquisa, deixa claro que no período estudado não vigorava como atualmente a noção de originalidade, razão pela qual o que se vê hoje como imitação pode ser interpretado como um princípio artístico norteado pela idéia de assimilação direta, daí ser flagrante, por exemplo, a presença camoniana na Prosopopéia, de Bento Teixeira. Independentemente dessas questões, ficou desse tempo um saldo bastante considerável, seja pela figura de Anchieta, que em alguma medida conseguiu romper com a extrema funcionalidade pedagógica que o leva a escrever versos, seja pela de Gregório de Matos, como no poema Pica-Flor:

Se Pica-Flor me chamais,
Pica-Flor aceito ser,
Mas resta agora saber,
Se no nome, que me dais,
Meteis a flor que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o Pica,
E o mais vosso, claro fica,
Que fico então Pica-Flor.

Mais acomodada às convenções e, por essa razão, próxima da conduta dos manuais é a apresentação com que Domício Proença Filho abre o tomo Arcadismo. É necessário reconhecer que o espaço do introito não é o mesmo de uma tese, fato que normalmente conduz o apresentador à brevidade; mas comete um engano quem vê nisso um imperativo da superficialidade. O caso que ora abordamos limita-se, num texto carente de melhor coesão, ao esboço de um “contexto de época” e ao arrolamento — numa lista — de dez características do estilo, algumas delas, pela forma estanque com que são lançadas, questionáveis, como “preocupação com embelezar a feiúra da realidade” (oitava da lista), e outras de difícil entendimento, como “predomínio do dogma sobre o gosto” (a décima). Tal lista é disposta precisamente após um parágrafo em que Domício falava acerca da fundação da Arcádia, em Roma, em 1690, o que nos leva a concluir que os fatores estilísticos referem-se ao que se produziu na Europa, sendo que a coleção imprime em seu título o adjetivo “brasileira”. Quando começa efetivamente a tratar do Arcadismo local, o organizador do volume dedica-se inteiramente à redação de parágrafos que catalogam nomes e datas de academias, autores e obras, deixando apenas para o final uma única gota do matizamento que deveria ocupar espaço privilegiado no texto: a consideração das peculiaridades do Neoclassicismo que aqui se desenvolveu, o qual estampou de maneira sensível a força de uma cultura ainda não nacionalizada no discurso político, mas já bastante tonificada em âmbito artístico, que, nesse caso, é o âmbito que realmente importa. Assim o professor Domício Proença Filho intervém sobre a questão (trata-se do último parágrafo da apresentação): “Assinale-se que se concretiza, na literatura brasileira, um arcadismo sem o rigor do europeu: a poesia de tais autores envolve também traços de rococó e pré-romantismo, dimensões nativistas, sentimentalismo, além de configurar aspectos que não se vinculam aos princípios neoclássicos modelizantes”. Como exemplo do corpus inscrito no volume, destaco o soneto 7 das Obras, de Cláudio Manuel da Costa, com o qual pode ser que o poeta tenha enfeado alguma eventual beleza:

Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado,
E em contemplá-lo, tímido, esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado;
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!

Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era;
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!

Maior densidade reflexiva e melhor construção discursiva caracterizam o tomo Romantismo, entregue aos cuidados deAntonio Carlos Secchin. O poeta e ensaísta inicia seu texto pondo em tensão as circunscrições cronológicas do estilo, e segue vasculhando os fatores de aproximação e de distância entre seus principais representantes, cuidando ainda de sinalizar as contradições de Gonçalves de Magalhães, notabilizado como apregoador de novas idéias, mas que no campo literário manteve-se conservador de formas cristalizadas. Dentre todas as refutações feitas ao longo do ensaio introdutório (que conta com uma interessante observação de outras antologias de poesia romântica nacional), destacamos uma em que o furor nacionalista é percebido de modo bem mais sutil, dando a ver que nem todo sabiá gorjeia em tons nacionais, ainda que esteja (ou por isso mesmo) nas palmeiras do país:

Conhecida como a geração ultra-romântica, do mal do século, versão aclimatada das lamúrias de Musset, de Byron e de outros cultores do pessimismo, do tédio e do confessionalismo exacerbado em lágrimas, foi criticada pelo aparente abandono dos temas nacionais em prol de um viés cosmopolita da cultura. Mas, paradoxalmente, foi com tais poetas que as formas de expressão aproximaram-se de uma realidade menos tutelada pelos padrões lingüísticos lusitanos, que tanto constrangeram o discurso do grupo precedente. Além disso, devido ao enorme sucesso do lirismo azevediano, também certos protocolos de prestígio, como as epígrafes, deixaram de ser maciçamente franceses, ingleses e portugueses: passamos a dispor do aval de Álvares para epigrafar e legitimar as lágrimas dos seus numerosos epígonos. 

Como nosso espaço é curto e devemos destacar todas as peças da coletânea, citamos aqui Se eu morresse amanhã!, do autor da Lira dos 20 anos:

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
         Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
         Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n’alva
Acorda a natureza mais loucã!
Não me batera tanto amor no peito
         Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã…
A dor no peito emudecera ao menos
         Se eu morresse amanhã!

Coube a Sânzio de Azevedo organizar o lance dedicado ao Parnasianismo, esse estilo tão desprezado quanto desconhecido desde que entre nós triunfou a ideologia modernista. Na introdução, Sânzio, obedecendo a um critério didático, enumera dados componentes da estética parnasiana, mas não o faz de maneira engessada, dando espaço à necessária problematização classificatória: “Para se ver que há uma face ortodoxa e outra não-ortodoxa em nossos parnasianos, basta comparar em Bilac, por exemplo, a objetividade de A sesta de Nero e a subjetividade de As estrelas; o primeiro segue o modelo francês, enquanto o segundo é o que chamamos de parnasiano no sentido brasileiro do termo”, o qual, complemento eu, partilhava de um ideário mergulhadamente romântico, diferentemente do que se pode pensar diante das freqüentes afirmações de uma eventual ruptura com o Romantismo. Veja-se, por exemplo, em Alberto de Oliveira, o tom melancólico e cristão do comovente A casa da Rua Abílio:

A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falarão,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.

Lauro Junkes assina a organização de Simbolismo, estilo que principia a abertura de caminhos para nossa modernidade literária, e na apresentação reforça a contraposição dos simbolistas ao discurso objetivamente mimético e ao enquadramento da vida feito pela industrialização. Nisso, já seria de esperar, tem alto destaque o catarinense Cruz e Sousa, cuja obra equipara-se à dos grandes mestres do Simbolismo internacional:

Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
Que chaveiro do Céu possui as chaves
Para abrir-vos as portas do Mistério?!

Uma das designações mais problemáticas de nossa historiografia, o Pré-modernismo é tratado na coleção pelo poeta Alexei Bueno, que o sintetiza assim: “Trata-se, na verdade, de um conceito negativo, que só se pode definir pela negação, referindo-se àquilo que, sem ser ainda modernista, já não seria mais exatamente parnasiano ou simbolista”. O conceito é localizado temporalmente nas duas primeiras décadas do século 20, e é forjado a partir de uma perspectiva filiada ao Modernismo, a dotar de importância aquilo em que se poderia ver antecipação do que passou a ser sistematizado a partir da Semana de Arte Moderna. Mas, curiosamente, a expressão máxima do período se encontra na obra de um singularíssimo poeta, o paraibano Augusto dos Anjos, que assim se vê em As cismas do destino: “Recife. Ponte Buarque de Macedo./ Eu, indo à direção à casa do Agra,/ Assombrado com a minha sombra magra,/ Pensava no Destino, e tinha medo!”.

Um amplo panorama do Modernismo é traçado por Walnice Nogueira Galvão, que se dedica a observar concentradamente diversos fenômenos que fizeram as águas modernistas estourarem caudalosamente — revistas, manifestos, eventos e também outros gêneros literários que não apenas a poesia (mesmo porque a delimitação dos gêneros foi combatida veementemente na época) —, levando-a a chamar o estilo-movimento de “Revolução Modernista”. Considerando a quantidade de grandes nomes reunidos na mesma ocasião, este é inegavelmente o mais rico dos volumes do Roteiro (apesar de nem todos os nomes aqui apontados terem estreado na década de 1920), riqueza esta um pouco tolhida pela seleção dos poemas, que têm representatividade em geral apenas razoável. Além dos muito ilustrativos Oswald e Mário de Andrade, perfilam-se os nomes de Murilo Mendes — “Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade/ e ouvir um sabiá com certidão de idade”; de Vinicius de Moraes — “Meu Deus, eu quero a mulher que passa!”; de Cecília Meireles — “O pensamento é triste; o amor, insuficiente;/ e eu quero sempre mais do que vem nos milagres./ Deixo que a terra me sustente:/ guardo o resto para mais tarde.”; de Manuel Bandeira — “— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”; e, com maior destaque, o de Carlos Drummond de Andrade: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ No entanto lutamos/ mal rompe a manhã”.

Como se vê, alguns desses autores são convencionalmente associados a um hipotético segundo momento modernista, delimitado cronologicamente entre 1930 e 1945, e identificado por consolidar o Modernismo, levando-o além do impulso iconoclástico da eventual primeira fase, compreendida entre os anos de 1922 até o início do segundo momento. Essa segmentação está mais em acordo com um objetivo didático do que com a realidade poética que então se ia manifestando (sobretudo se se tomar à cronologia a precisão das estréias), tanto que os principais nomes do volume Anos 30, curado pelo grande poeta, ensaísta e tradutor Ivan Junqueira, são, em maioria, os que protagonizaram o número anterior. O que aqui se nota é um processo por meio do qual os poetas de maior expressão continuaram a imunizar a poesia das restrições tradicionais, por um lado, ao mesmo tempo em que passaram a imunizá-las das diminuições instituídas naquele período, conforme salienta o organizador: “O Modernismo tornara-se ecumênico e começara então a ensaiar, com os poetas da década de 1930, seus primeiros passos rumo à modernidade”. Para evitarmos repetições e também para controlarmos o espaço, destacamos aqui a aparição bibliográfica de Manoel de Barros e de Gerardo Mello Mourão.

Dada a força da presença modernista, a década de 1940 é estigmatizada como retrógrada, uma vez que nela surgem poéticas distanciadas do estatuto pró-22. Por essa razão, em Anos 40, o jovem pesquisador Luciano Rosa pauta seu ensaio introdutório por uma percuciente problematização da rotina classificatória que perturba a arte tomada pela historiografia: “Refratários a categorizações definitivas, o fato é que esses poetas — antimodernistas, neomodernistas ou neoparnasianos, como preferem outros — compõem um panorama invulgar, no qual se interpenetram disposições líricas diversas, não raro impercebidas e lançadas numa espécie de vala comum cavada pela necessidade (ou desejo irrefreável) de classificação”. Isso se confirma pela densidade das obras de Bueno de Rivera, Lêdo Ivo, José Paulo Paes, Dante Milano e, fundamentalmente, João Cabral de Melo Neto, o grande regente do discurso poético, aqui visto num fragmento de Paisagem pelo telefone:

Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
(…)

Os Anos 50 foram decisivos para que o já então antigo projeto de emancipação literária do Brasil, uma vez que nela se viu e ouviu o originalíssimo estouro concretista. É pena que, neste volume, tornem-se mais evidentes questões em tudo antipoéticas (direitos autorais? Picuinhas pessoais?), uma vez que não aparecem textos de Décio Pignatari e de Augusto de Campos. André Seffrin, o organizador, não menciona as razões de tal omissão, e faz em sua apresentação um vasto apanhado de citações acerca da poesia da época, da qual destacamos um poema de Ferreira Gullar:

Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo — deuses frágeis —
eu colho a ausência que me queima as mãos.

O poeta e crítico cearense Pedro Lyra responde pelo estabelecimento de Anos 60, por meio do qual aponta um cenário marcado pela variedade: “A poesia da década de 1960 se define por sua grande diversidade: em vez de uma fisionomia unitária, padrão escola, exibe várias subfisionomias — nenhuma com força de dominante. É um amplo sincretismo de estilos e tendências (…)” (grifo do autor). Dele destacamos o fragmento inicial de A implosão da mentira, de Affonso Romano de Sant’Anna: “Mentiram-me. Mentiram-me ontem/ e hoje mentem novamente. Mentem/ de corpo e de alma, completamente./ E mentem de maneira tão pungente/ que acho que mentem sinceramente”.

A diversidade aludida por Pedro Lyra como típica da década de 1960 é, a rigor, um fato consumado da poesia brasileira do século 20. Isto se confirma nos Anos 70, volume tratado pelo poeta e professor Afonso Henriques Neto, que, ao explicar os critérios de seleção dos poetas para a antologia, assim se manifesta: “(…) poetas distantes do ‘espírito’ [contracultural] da década estão presentes em razão de terem publicado seu primeiro livro naquela época”. Mas o período em questão é comumente associado à poesia marginal, de dedo em “V” e cabelo ao vento, inclinada a fazer da poesia uma experiência cotidiana e sorridente, a qual encontra em Chacal o seu saltitante porta-voz:

uma
palavra
escrita é uma
palavra não dita é uma
palavra maldita é uma palavra
gravada como gravata que é uma palavra
gaiata como goiaba que é uma palavra gostosa

A década de 1980 é indicada por muitos como a que se inicia decisivamente o que hoje, já na segunda década do século 21, entendemos por poesia contemporânea. Isso é confirmado pelo poeta, crítico literário e jornalista Ricardo Vieira Lima, que na introdução ao volume Anos 80 cita como epígrafe um poema de Waly Salomão (“ — O que você quer ser/ quando crescer?/ — Poeta polifônico.”), para em seguida afirmar: “O poema minimalista transcrito acima simboliza, com argúcia e ironia, a saudável polifonia de vozes em que se transformou a poesia brasileira contemporânea, sobretudo a partir da década de 1980”. Isso se confirma na medida em que aparecem como bem representativos os nomes de Arnaldo Antunes e Paulo Henriques Britto, Adriano Espínola e Glauco Mattoso, Nelson Ascher e Alexei Bueno, de cujo poema Helena transcrevemos as duas estrofes finais: “Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,/ Compuseram seus ossos quebradiços,/ Deram-lhe à boca uns rubores postiços,/ Envolveram-na em faixas perfumadas.// Então chamas onívoras tragaram/ A carne que cindiu tantas vontades./ Quando sua sombra idosa entrou no Hades/ As sombras dos heróis todas choraram”.

O tomo Anos 90 é organizado pelo poeta mato-grossense Paulo Ferraz, que faz uma ampla e penetrante leitura do tempo em que se inscreve a poesia que lhe coube observar. Fruto do amadurecimento artístico dos autores que perceberam as limitações das posturas grupais ou decorrência da ordem individualista do tempo, o caminho único é uma tônica comum aos que pretendem se “descomunar”:

Malgrado aqui e ali se percebam afinidades e semelhanças que podem nos induzir a criar grupos inexistentes, é o empenho individual e a busca particular pela singularidade de sua voz que prevalecem. Dificilmente pode ser sustentada a idéia de uma geração, no mesmo sentido que houve em 1930 ou 1945, a não ser que seu conceito inclua o sincretismo, o ecletismo e a mestiçagem. Num país como o Brasil, a pureza, o equilíbrio, a harmonia, a certeza e a permanência parecem sempre valores um pouco alienígenas, por isso de quando em quando devem ser repensados.

Indo em frente, talvez seja lícito aventar que recentemente nos convencemos de que a poesia brasileira não possui uma linha evolutiva, mas várias, até mesmo dentro das escolas e movimentos que se supunham monolíticos e estanques (grifos do autor).

Nessa esteira, avulta o nome do carioca Carlito Azevedo, o qual suponho unânime entre os estudiosos do período no que diz respeito à poética de maior representatividade. Dele citamos Três encontros:

Quando menino
numa visita

ao zoológico
fascinou-me

o vazio
que vibrava

dentro da jaula
(alguém

à noite havia
atirado sobre

a temível
pantera negra)

— Fui reencontrá-lo
mais tarde

quando the particulars
of poetry

— e agora abriu este
que você abriu aqui —

requisitaram minha
total atenção

O derradeiro volume da coleção guarda especial interesse, por ser dedicado a uma radical contemporaneidade. Se as antologias cometem sempre o pecado da omissão e da parcialidade, por vezes elas conseguem se redimir por traçarem um vasto panorama do alvo de suas atenções. Tal é o que acontece com o volume Anos 2000, organizado e prefaciado pelo professor, ensaísta e poeta Marco Lucchesi. Dada a aguda atualidade do objeto da antologia — os poetas brasileiros que estrearam a partir do ano 2000 —, é perfeitamente factível e compreensível que a catalogação seja lacunar. Mas isso não torna o livro insuficiente ou débil em sua empreitada, pois Lucchesi congregou nomes de diversas partes do país (alguns, inclusive, radicados no exterior há tempo considerável, como a paulista Viviane de Santana Paulo), além de apresentar alguns temporãos, apesar da recente estréia (um bom exemplo é o da piauiense Joana Maria Guimarães: nascida em 1925, publicou seu primeiro livro 80 anos depois). Outro mérito do organizador do volume reside no fato de ele apresentar a atual poesia brasileira sem nortear a leitura dos textos dos 45 poetas arrolados: “Para uma antologia como a nossa, em que boa parte dos poetas apresenta obras em progresso, o horizonte de classificação não seria fácil nem tampouco atrativo. Mais que isso: precipitado e arrogante”.

Uma grande inquietação dos leitores de literatura decorre da necessidade de saber, em termos artísticos, o que se efetiva no hoje. Assim, é muito comum que pergunte pela hipotética existência de algum estilo ou movimento predominante nos dias atuais. A resposta é quase sempre infirmadora. Pelo fato de as escolas e as vanguardas literárias serem vistas agora como camisa-de-força dos autores e suas obras, formula-se a idéia das tendências confluentes, as quais fazem do nosso um panorama da diversidade (o vocábulo, de indiscutível importância simbólica, tem se tornado, também indiscutivelmente, um modismo banalizado). Sabemos que, apesar da existência real da pluralidade, os meios de legitimação literária costumam homogeneizar aquilo de que dão notícia. Mas aqui os nomes de Igor Fagundes, Henrique Marques-Samyn, AnaRüsche e Carlos Manes saltam como afirmação de poéticas autênticas e várias entre si. Do último citamos Alumbramento, que fala em tom menor para desmerecer a banalizada e normativa grita geral:

Os olhos são poucos
para o mundo.
Neste
já não se plasmam mistérios,
nem o humor subverte.

Como apelo íntimo,
persistem apenas
a flor inodora
das coisas envelhecidas

e a lucidez de uma voz
que prefere calar.

Esta é uma breve síntese da coleção Roteiro da poesia brasileira, que, conforme dissemos no início, é um denodado projeto para mapear o nosso já considerável punhado de séculos de produção literária. Por meio dela, podemos perceber que após tantas movimentações, a poesia de nosso país sempre se manifestou de maneira densa quando abandonou as pretensões de assessorar temas, modas ou verdades para se afirmar como poesia — apenas e totalmente como poesia.

Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho