O romance Não se pode morar nos olhos de um gato, da lisboeta Ana Margarida de Carvalho, teve um lançamento marcado por diversas premiações. O livro foi vencedor do Grande Prêmio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores em parceria com a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (APE/DGLAB), em 2016, e do Prêmio Manuel de Boaventura, em 2017. Além disso, no mesmo ano, foi finalista como Livro do Ano da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPA) e do Prêmio Oceanos.
Em seu segundo romance, Ana Margarida de Carvalho dialoga com as narrativas portuguesas das Grandes Navegações e, com um lirismo poético e bruto, retrata a vida dos náufragos que sobreviveram ao soçobro do navio que contrabandeava escravos de Portugal até o Brasil num período em que a venda de escravos era proibida.
Do contato com o título do livro surge o questionamento: o que é morar nos olhos de um gato? A frase é retirada do Poema do desamor, que foi escrito pelo poeta português Alexandre O’Neill e é a primeira das três epígrafes do livro. Ao longo de sua vida, Alexandre publicou textos que tratavam do sofrimento, do cotidiano e do amor.
No texto que serve de epígrafe, vemos os olhos do gato como um lugar de acolhimento, inacessível pelas situações instintivas, selvagens, como visto nos versos: “Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te// Não se pode morar nos olhos de um gato”. Ainda que os gatos e suas características felinas entrem sorrateiramente na história, pouca coisa além dos seus instintos são incorporados à narrativa.
Outra coisa que surge desses primeiros contatos vem da segunda epígrafe, a canção Canto dos torna-viagem, de José Maria Branco. Tal música propõe uma mudança de perspectiva nas histórias de navegação, valorizando o ponto de vista daqueles que foram explorados, colonizados, escravizados.
Partindo daí, Ana Margarida apresenta um “capítulo primeiro, em jeito de concluindo” em que uma santa narra a violência e a dureza presentes no cotidiano do navio. Os personagens, apresentados conforme sua classe, são vistos da perspectiva da Nossa Senhora de Todas as Angústias. A partir dela, vemos tipos como um corcunda desprezado por toda a tripulação, um capitão que tem mais amor pelos cavalos puro-sangue do que pelos homens esfomeados ou um apaixonado passageiro com cabelos cor de açúcar mascavo que fica a admirar a filha de uma fidalga. Nesse retrato, uma tensão crescente surge da longa calmaria que eles enfrentam no mar.
Famintos andam os homens do porão, a enterrar os dentes nos próprios braços ou na carne de outro braço que a boca alcance, membros empeçonhados dos ferros que os agrilhoam, tementes andam os que empunham os chicotes, que se sente o clamor a rugir lá de baixo, a crescer, a rebentar, lava humana em espasmos de clamor, a revolver-se sobre si própria, a agitar-se debaixo dos nossos pés, sem encontrar saída, e que nenhuma crosta pode conter. Olhem, que vos digo eu. Que mal é este na barca, no pavor da calmaria, a água dos tonéis a minguar. Leva-se a santa para a proa, atada ali a gretar, nem um fio do meu cabelo o vento fará levantar.
A escolha da Nossa Senhora de Todas as Angústias, nome que surge da aflição em observar homens castigando homens, dá o tom da abertura da narrativa. Fome, morte, punição, revolta. O próprio cabelo da santa tem como origem a cabeça de uma índia brasileira estuprada por mais de 20 homens e que foi escalpelada ainda com vida. São histórias de pecados, de abusos: “Há dias em que um homem para e na balança da sua vida não consegue pesar nem mais uma grama, nem mais uma lágrima de preta”.
Ao longo da tensão crescente que surge do navio congelado em alto-mar, os escravos se rebelam e o navio é incendiado e as águas começam a engolir a embarcação e seus passageiros. Das personagens apresentadas, somente oito vidas conseguem se salvar junto com a santa de madeira. A pergunta, que dá nome ao primeiro capítulo, se faz latente: “E se já vão mortos porque temem o naufrágio?”.
Presos em uma ilha, aos poucos vamos conhecendo o passado dos personagens ao mesmo tempo que acompanhamos suas táticas de sobrevivência e as necessidades de conviver com outros, opostos. O ritmo de vida passa a ser marcado por uma maré que avança e recua quatro vezes por dia, destacando quais momentos devem ser usados para vagar e caçar pela costa e quais os momentos de reclusão, onde todos são obrigados a se apertar em uma estreita gruta.
Ana Margarida reflete essa estrutura na trama do livro, seguindo o fluxo das marés. Em um vaivém entre o passado e o futuro das personagens, vamos descobrindo mais sobre os habitantes das ilhas, que deixam de ser estereótipos e passam a ser chamados pelos nomes próprios. Intercaladamente, acompanhamos os desdobramentos do naufrágio e descobrimos a vida e os antepassados daqueles sobreviventes.
Além das correntes, a dubiedade do mar também se reflete na situação que se instaura na ilha. Seriam águas acolhedoras, que salvam? Ou seria um poço profundo, que sorve e afoga? Na calma encontrada pelo arranjo estabelecido entre os membros daquela comunidade, quase civilizado, uma potência destruidora descansa nas sombras. Tal situação se mantém até o consumo de um “fruto” proibido, que viola as regras de convivência dos humanos com o mar, e a organização encontrada no paraíso/purgatório precisa ser rearranjada.
Nesse relato, marcas de uma simbologia religiosa saltam no correr da leitura. Em primeiro lugar, as nomeações dos tripulantes de acordo com suas classes nos remetem ao Auto da barca de inferno, de Gil Vicente. Nesta peça, o Anjo e o Diabo julgam quais pessoas devem entrar na Barca da Glória ou na Barca do Inferno, enquanto cada um dos sentenciados tem o passado exposto e o direito de se defender. Da mesma forma, a ilha se apresenta como um espaço de redenção e defesa onde, isolados, eles passam por situações extremas, remoem seu passado e sentem seus remorsos.
Os nomes das personagens e suas características também remetem às narrativas católicas. Além da Nossa Senhora das Angústias, temos o parto da Virgem, temos José e Maria. E, ainda que o paraíso seja violado, a chance de salvação aparece para os bons homens. Aos sobreviventes, resta viver.
Instintos
Da situação-limite em que os personagens estão, outro ponto forte que emerge da narrativa de Ana Margarida de Carvalho é o aflorar do lado animal dos homens e mulheres, uma percepção sobre a emergência dos nossos instintos.
Ao equiparar as mães — lobas, baleias, mulheres —, Ana Margarida sugere a existência de um ímpeto selvagem de alimentar a prole e organizar a comunidade. No que tange os homens náufragos, são mais úteis e aptos aqueles que revivem em si uma habilidade inata para caça e observação. Entregues a esses impulsos, aos poucos eles se transformam em uma espécie de coletivo — como uma matilha.
Caminhando em uma linha tênue entre a violência e o afeto, a comunidade apresenta um universo sem leis e conflituoso, onde cada um precisa enfrentar seus próprios pecados e buscar a sua salvação. Ana Margarida nos apresenta uma narrativa em que o importante é salvar a própria alma e permanecer um bom homem apesar de tudo:
Quando eu comecei a pôr vulto no mundo, já ele estava escangalhado assim, baloiçante e instável, como uma cadeira coxa. Não era agora o mais malfadado filho do meu pai que iria meter-se a carpinterá-lo melhor.