Olhos nascidos na negritude

Em "De onde eles vêm", Jeferson Tenório explora as diferentes perspectivas que formam e transformam a vida de um cotista negro.
Jeferson Tenório, autor de “De onde eles vêm”
01/11/2025

Diferentes autores enxergam a literatura de maneiras distintas. Alguns valorizam mais as técnicas de escrita; outros, a expressão do eu; muitos, o texto enquanto reflexão sobre a sociedade. A cada época, esses elementos são mais ou menos valorizados, num fluxo natural que reflete as preocupações do tempo. Hoje, época de polarização e tomada de consciência sobre tantos preconceitos ignorados há tanto tempo, a questão social ocupa o palco principal — mas isso não significa que os autores que manifestam essa preocupação deixem de considerar outros elementos da obra literária.

Jeferson Tenório é um exemplo disso. Questões sociais em torno do racismo são centrais em sua obra, mas sua preocupação com outros aspectos da escrita é perceptível, ainda que nem sempre esses elementos estejam equilibrados. Na história de Joaquim, protagonista do romance De onde eles vêm, encontramos momentos em que enredo e técnica se encaixam muitíssimo bem — e outros em que parecem entrar em conflito.

Joaquim, jovem negro, inteligente e de origem humilde, consegue entrar na universidade por meio das cotas e começa a dividir seu tempo entre os estudos e os cuidados prestados à avó doente. Na universidade, em Porto Alegre, tem contato com uma realidade completamente diferente da sua: não só a maioria esmagadora dos estudantes é branca, como sua situação social e o crescimento como um homem pobre parecem se destacar ainda mais naquele meio.

A maneira como o romance é narrado nos permite acompanhar a perspectiva de Joaquim e a ampliação de seus horizontes. Claro, ele não ignorava a desigualdade e o racismo antes de conhecer a universidade, mas seu contato maior com pessoas brancas e mais ricas faz com que sua percepção dessa realidade evolua, especialmente ao conhecer outros cotistas que, como ele, precisam navegar esse ambiente inóspito.

Estratégia narrativa
Assim como em O avesso da pele, a estratégia narrativa de Tenório é especialmente interessante no modo como lida com pronomes e pontos de vista. Se naquele livro o “você” aproximava os leitores da experiência narrada, aqui o interessante são “eles”, como anunciado no título do romance. Capítulos que giram em torno de Joaquim estão na primeira pessoa, mas, quando o foco são outras personagens, o romance passa à terceira, acrescentando informações que Joaquim não teria como saber ou que não dizem respeito a ele diretamente. É uma maneira interessante de abrir uma fresta à realidade de certas personagens — mas, como muitas delas, a estratégia é pouco utilizada.

À medida que o livro avança, essas excursões pelo mundo externo a Joaquim ficam mais e mais raras, chegando a fazer falta em alguns momentos. Enquanto algumas personagens são apresentadas desse modo e quase desaparecem em seguida, tornando-se símbolos pontuais pelo resto da narrativa (o professor que simboliza o estudo, o dono de sebo que simboliza a escrita), outras parecem nunca receber uma voz que, por vezes, faz falta.

Um exemplo positivo é Lauro, amigo negro e gay de Joaquim, que ganha destaque num dos capítulos em terceira pessoa. Num momento, vemos a visão de Joaquim sobre ele e a evolução de sua perspectiva, que passa a ser menos homofóbica com o tempo, a ponto de começar a ver Lauro como um irmão; em outro, a terceira pessoa revela um pouco mais de Lauro, enriquecendo a relação e o personagem. Ainda assim, fica claro que, mesmo na terceira pessoa, o ponto de vista apresentado ali parece carregar a visão de Joaquim ou, no máximo, buscar a “neutra” descrição de fatos, recusando-se a assumir a perspectiva da personagem narrada.

Essa estrutura narrativa parece se relacionar à posição social de Tenório. Ao tomar o lugar do homem negro, ele usa o “eu”, adotando o ponto de vista do personagem; ao falar de uma mulher ou de pessoas brancas, usa a terceira pessoa, e o ponto de vista é mais neutro — ou então permanece como estava, mais próximo de Joaquim. É uma maneira sutil e interessante de trabalhar uma tensão inevitável na literatura: de um lado, o texto do escritor nasce de um lugar de fala, e é impossível adotar perfeitamente o espaço de outro; de outro, é impossível escrever ficção sem tentar compreender, representar e, até certo ponto, ocupar pontos de vista além do seu.

Limitação imposta
A posição de Joaquim se manifesta até nas relações ficcionais que ele tem com os outros: há uma conexão mais fácil com outras personagens negras, pois há uma cumplicidade que nasce de sua compreensão instintiva de uma realidade que os amigos brancos não acessam da mesma forma. Ainda assim, desde O avesso da pele, a resistência do autor em assumir verdadeiramente o ponto de vista de personagens diferentes de si parece uma limitação autoimposta, dificultando qualquer aprofundamento na realidade dessas pessoas.

Assumir o ponto de vista de uma personagem é correr o risco de tornar o texto enviesado. Uma personagem realista tende a ver as próprias ações como justificadas, ou pelo menos a racionalizá-las. Quando se assume de maneira muito completa o ponto de vista de uma personagem, o leitor pode ter a impressão de que o romance “desculpa” ou “releva” as falhas dessa pessoa. É o que acontece aqui — apesar dos esforços do autor.

Joaquim é um homem egocêntrico, tende a pensamentos (e ocasionalmente comportamentos) agressivos e ao ciúme excessivo. Quando arrebenta um abajur por ciúmes de uma namorada, o romance parece tratar isso como algo compreensível, dadas as circunstâncias do personagem. Ele “pensa em pedir desculpas”, mas está nervoso demais — sabe como é. A namorada chora e se assusta, mas não estamos vendo o mundo a partir dos olhos dela, e sim dos dele; como ele não acha os próprios atos inaceitáveis, o romance também não parece achar.

Quando ele pensa sobre como seus relacionamentos estão ruins, isso é compreensível; quando isso leva a alguma consequência, apenas imaginada por ele ou não, isso é inaceitável. Se ele termina seu relacionamento ou trai sua namorada, o romance nos mostra o quanto sua vida é difícil, seu relacionamento complicado, o quanto se sente impotente; se são elas quem fazem algo assim, é uma injustiça inaceitável, uma desculpa para o ato ou as palavras violentas. O ponto de vista escolhido enviesa o romance em seu favor, como se ele tivesse razão mesmo em suas falhas, e a variação ocasional de pontos de vista não oferece voz a essas mulheres. A predisposição natural do leitor em se identificar com a personagem central mitiga o impacto negativo das ações de Joaquim, que se transforma em alguém “compreensivelmente” irritado.

Mesmo a questão racial, elemento central do livro, por vezes entra em conflito com os acontecimentos e pontos de vista de Joaquim. O trecho do romance que acompanha esta resenha mostra duas mulheres negras falando sobre as relações inter-raciais na presença de Joaquim. Nele, há um mergulho na fala do outro, um momento em que Joaquim ouve outro ponto de vista e parece se reconhecer na fala de suas amigas — mas isso não afeta seus pensamentos ou ações posteriores. Continuamos vendo o mundo de seu ponto de vista e não voltamos a vislumbrar a perspectiva das mulheres que conhece — as mesmas que precisam suportar e aceitar suas ações e arroubos —, nem o quanto isso impacta seus relacionamentos.

Falta
O romance busca discutir relações raciais do ponto de vista de um homem negro, com ocasionais inserções “delas”, mas a prevalência do ponto de vista desse homem curva a história em seu favor a tal ponto que, mesmo se pensarmos a fala de Saharienne que copio aqui como uma “chave de leitura”, o efeito muda muito pouco. A relevância do ponto de vista é tamanha que muitos conseguiram enxergar uma história de amor em Lolita, e muitas décadas se passaram antes que qualquer um questionasse a opinião de Bento Santiago sobre a esposa, Capitu. Jeferson Tenório, mesmo que demonstre no trecho ter consciência da questão, não nos mostra, nas frestas do olhar de Joaquim, que o mundo, na verdade, não é bem aquilo que o rapaz narra — isso faz falta.

Mas esse trecho também relembra que Joaquim é vítima de uma pervasiva e falsa sensação de inferioridade, de uma visão de si causada por uma sociedade racista e desigual, e desenhada de maneira cuidadosa pelo romance. Essa visão se manifesta mesmo no conflito entre a técnica “esclarecida” da universidade e o conhecimento ancestral do candomblé — algo que, ocupando relativamente poucas páginas, é relevante para personagem e livro. Ao buscar seu espaço na universidade, por mais inteligente que seja, por melhor que escreva, Joaquim questiona a si próprio como questiona a sabedoria de seus ancestrais, pois como seria possível competir com pessoas cujo crescimento foi tão mais privilegiado que o dele?

A vantagem que eles têm se mostra não só como um resultado direto de sua riqueza, mas também do fato de que vêm de outro mundo. Esse mundo, um lugar privilegiado, inacessível a Joaquim, é o que lhes dá a possibilidade de desenvolver sua confiança, de crescer sem medo e com o otimismo de que tudo, sem dúvida, ainda vai dar certo. Joaquim só conseguirá se aproximar dessa sensação, ainda que timidamente, depois de ganhar confiança em si mesmo e na sabedoria de seus ancestrais — reconhecendo-se como alguém que, mesmo vitimizado por nossa sociedade, é capaz de lutar para superar essas limitações.

De onde eles vêm
Jeferson Tenório
Companhia das Letras
208 págs.
Jeferson Tenório
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1977, e vive em Porto Alegre (RS). É escritor, professor e pesquisador. Formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é mestre em Literaturas Luso-africanas e doutor em Teoria Literária pela PUC-RS. Estreou na ficção em 2013 com O beijo na parede, eleito Livro do Ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Seu segundo romance, Estela sem Deus, foi publicado em 2018. Com O avesso da pele (2020), recebeu o prêmio Jabuti e consolidou-se como uma das principais vozes da literatura brasileira contemporânea.
Bruno Nogueira

É autor de Grito distante (romance) A síndrome do impostor (contos).

Rascunho