Olhares especiais

Poesia de Flora Figueiredo é feita de encantamentos e indignações
Para Flora Figueiredo, a poesia “flana além das constelações”.
01/08/2005

Não é preciso dizer como anda a produção de poesia no Brasil. Mas descontando-se essa verdadeira fábrica de mentiras instalada no país, ainda existem poetas que merecem respeito. São poucos, mas existem. Em São Paulo, um dos nomes que merecem destaque é o de Flora Figueiredo, que acaba de lançar Chão de vento. “Ninguém precisa procurar aqui aquela poesia cerebral, seca, ou experimentalismos que alguns consideram estéreis, embora haja lugar para isso na literatura”, diz o escritor Luiz Fernando Emediato sobre o livro. “O lugar de Flora é aquele lugar privilegiado dos poetas que também podem ser lidos pelas pessoas simples. Pessoas que gostam de palavras, de sons, de música.”

Autora de livros expressivos na poesia brasileira — como Calçada de verão, Amor a céu aberto, O trem que traz a noite e outros —, Flora Figueiredo dá um salto a cada novo livro. O mesmo ocorre especialmente com este Chão de vento, em que ela se deixa íntima de si mesma a colher os poemas possíveis em tempos áridos: “Sempre no mesmo lugar/ as cadeiras vazias questionam seu enredo/ Estão vazias dos que saíram cedo/ ou daqueles que resistem em chegar?”. O caminho percorrido por Flora Figueiredo, desde o primeiro livro em 1987, revela uma mulher que faz da poesia uma espécie de oração de fé, principalmente como mulher: “Hoje não vou/ que é dia ruim de decisão:/ o ninho apareceu cheio de ovos/ o vaso me presenteou com botões novos/ a luz fez alongamentos verdes sobre o mar/ Dia de emoção não é dia de ir/ Quem sabe amanhã amanhece chovendo/ e eu fico matemática”.

Flora segue o caminho do sonho dentro da efêmera possibilidade de sonhar, mas sem nunca se distanciar de uma realidade que se mostra nas ruas, nos rostos das pessoas, na falta de brilho em tantas coisas que brilhavam antes. Ela faz a poesia do encantamento, por opção e por ser assim. Mas ela observa que não só encantamentos povoam seus poemas, mas também as indignações que marcam este tempo de poucas alternativas para viver.

No livro Amor a céu aberto, de 1992, Flora Figueiredo deu uma pista do que pretendia como poeta em relação à poesia e à vida, ao usar como epígrafe versos de Artur da Távola: “Enquanto houver mulheres alegres ou tristes falando/ florando, fluindo e influindo amor/ a humanidade pode ter alguma esperança”. Tem sido assim. A cada livro, um salto, construindo poemas com alma de mulher, escrevendo retratos de instantes que não são vistos por olhares comuns, só por olhares especiais.

• Do seu primeiro livro, Florescência, de 1987, até hoje, sua produção poética deu um salto. Como era aquela poesia do início e como é esta poesia de Chão de vento?
Florescência veio com a ansiedade da tentativa, da observação. Veio como quem entra pisando na ponta dos pés, com medo de ser notado. Só que, reeditada várias vezes, a obra abriu a porta para o que viria em seguida. Chão de vento chega 18 anos depois e, com ele, a serenidade do amadurecimento. Nele, me percebo mais à vontade com a palavra e mais segura do meu estilo. Em comum, os dois têm o cuidado apaixonado com que trabalho o texto. Os temas foram se alterando a cada livro, mas o estilo está definido e sublinhado. Mario Quintana dizia gostosamente que “estilo é uma deficiência que faz com que o autor só consiga escrever como pode”. Chão de vento confirma minha impressão digital.

• Existe poesia produzida por homem e poesia produzida por mulher? Há alguma distinção nisso? Admiro a poesia escrita por mulher porque, a meu ver, possui olhar muito mais sensível e claro em relação às coisas. É assim mesmo?
A poesia é mulher. Por isso as duas se entendem tão bem, falam uma linguagem parecida, confidenciam ciclos. Tanto que, a primeira manifestação artística da mulher foi na poesia. Por outro lado, o homem sabe como desnudar a poesia com carinho e sedução. Não sinto supremacia de nenhum dos dois. A arte transcende o fator homem ou mulher. Ambos se invadem, se acasalam e terminam assexuados. Nenhum deles comanda. Coabitam latentes no processo de criação. O que pode ocorrer é que há fases em que o feminino se acentua na mulher, ou porque os hormônios conspiram, ou porque ela está numa plenitude feita de vivências e encontros consigo mesma. Chão de vento é seguramente um desses momentos.

• Como você o situa ao longo de sua produção poética?
Livros são porta-vozes de seu tempo. E a poesia não é feita só de encantamentos. Embora minha tônica seja lírica, nela, como denúncia de nosso momento de mundo, intercalam-se indignação e perplexidade. A linguagem de Chão de vento tem a tranqüilidade de quem, a despeito de críticas, está convencido de que a riqueza maior está na simplicidade. Os textos são muito cuidados, mas claros e palpáveis. Não posso entender uma poesia que seja tão inatingível a ponto de não fazer contato com o leitor. Assim, o leitor faz o papel de um convidado que se arruma todo, compra flores e, ao chegar, descobre que o anfitrião não está. Tenho na poesia a meta do encontro.

• Você tem dificuldade de promover seus livros junto à chamada mídia cultural?
O desaponto é da maioria dos poetas: o espaço da poesia é limitadíssimo e a mídia elege seus ícones, nem sempre com critério. Grande parte das livrarias acaba refém dessas escolhas e as prateleiras ostentam sempre os mesmos poetas, sem se abrir para outros autores. A grande compensação está no aplauso do leitor. Desta vez, o público que foi ao meu lançamento abarrotou a livraria onde estávamos. Ultrapassaram-se todas as previsões de venda. E eu não conhecia boa parte daquele público. Minha trajetória na literatura foi toda assim: não tive padrinhos. Fiz amigos no meio literário a partir do meu trabalho, e não o meu trabalho a partir de amigos.

• A poesia, afinal, serve para quê?
Do ponto de vista do autor, a poesia é a possibilidade de ir além de si mesmo. Ela prescinde de personagens. Flana além das constelações. Para o leitor, é a pausa para suspirar. Quando autor e leitor se encontram no texto, trata-se do instante mágico em que compartilham o sonho. Precisa mais?

Chão de vento
Flora Figueiredo
Geração Editorial
91 págs.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho