Olhar devastador

Resenha do livro "Pequeno arsenal", de Jorge Emil
Jorge Emil, autor de “Pequeno arsenal”
01/12/2004

Pequeno arsenal chama a atenção em princípio pela bela edição. A capa tem a foto de uma biblioteca cheia de livros e vazia de gente. Ela mostra basicamente o pequeno arsenal que Jorge Emil traz em sua bagagem. O projeto gráfico foi desenvolvido para que, mesmo antes de ler, saibamos que se trata de um produto de qualidade, bem acabado, atraente na forma e no conteúdo. O autor mineiro de 34 anos também é ator premiado por interpretar Ricardo III (1999) de Shakespeare, ou seja, está acostumado a trabalhar com bons textos, a discutir, digamos assim, a “riqueza” da miséria existencial. Foi esta experiência que o credenciou à vida de poeta. O exercício crítico, dialético, filosófico, ético contido nos textos de Jorge Emil são legado de Shakespeare e do teatro clássico grego em sua vida. Na primeira orelha do livro está registrado o entusiasmo com que o editor Elio Demier recebeu O dia múltiplo, primeiro livro de Emil: “os poetas brotam ainda nas ruas, vilas e lares e sobretudo nos endereços distantes, onde campo e cidade parecem a mesma coisa”. Que bom que a poesia ainda consegue empolgar alguém. Imagino que a sensibilidade do editor tenha sido premiada com o segundo volume do autor: Pequeno arsenal é um livro maduro de um jovem escritor que trouxe das referências e experiências de palco o cabedal necessário para ingressar neste mundo de revelações humanas. A falha trágica, poema que abre o volume, dá uma mostra da matéria-prima do autor: “Foste eleito pela qualidade/ Dos defeitos que te consomem./ Os erros da terra são todos teus./ Tu és único no Reino, homem,/ porque és o único erro de Deus”. A lucidez deste poeta em relação ao seu ofício é impressionante. No seu poema/crônica chamado Transferência, Emil coloca mais um tijolinho na construção de uma possível resposta àquela velha e instigante questão: pra que serve a poesia? Depois de descrever uma série de pequenas desgraças do quotidiano, emenda o poeta: “Ileso, pus o poema pra sofrer em meu lugar”. Jorge Emil acerta em cheio com seu olhar devastador sobre as limitações que a maioria dos mortais transforma em alimento para as lamúrias da vida. Vestíbulo é um poema que aponta um erro universal dos animais que pensam: colocar a felicidade sempre num local inatingível. “No futuro é que a vida/ ocorrerá. No presente/ sou o morto sem sepultura/ ou a criatura quase-existente./ Felicidade é “chegar lá”./ “Lá” é sempre mais à frente/ do passado malcontente/ e do presente malquisto./ Só o futuro é bem-vindo./ (Mas não virá, pelo visto. O futuro é findo. E ainda insisto.)”

 Transferência

O ônibus lotado
é uma alegria intermediária.
Maior prazer
será descer e pagar
— sem poder —
tantas altíssimas contas
debaixo de um sol imoral!
A praga que me rogaram
tem sabor de fruta fresca.
E amosamente
Espero a febre, o assalto.
Fui agraciado com a leitura de um mau livro
Da grossura de uma árvore
caindo sobre mim.
Ileso, pus o poema pra sofrer em meu lugar.

Pequeno arsenal
Jorge Emil
Bom Texto
70 págs.
Jeferson de Souza
Rascunho