Perdemos qualquer coisa que passou — como o fulgor cinzento do metrô nas passagens de superfície, por entre os verdes campos de ovelhas de sacrifício (manchando de vermelho o tapete do apartamento do Soho onde Vanessa dormira com os gêmeos, sem fazer amor).
O ano era o dos últimos anjos, na nova Comuna que gorou (e tinha de gorar), virando “as desordens francesas” do 1968 de operários gordos faltando — de má vontade — ao trabalho, enquanto esperavam ver, na verdade, as barricadas da Sorbonne liberadas na TV. Agora, é paradoxalmente mais difícil sustentar greves nas casas dos bairros proletários guarnecidas de pão, queijo, salame e vinho barato como forças não-dialéticas que nos colocaram “do outro lado”, nas democracias sociais do Ocidente.
Havia muita droga, mas nenhuma opção — e estações, subúrbios de usura e chicletes colados em edições raras dos poetas metafísicos que as calouros odiavam, sem novidade.
Mas John comia todas, como aquele seu xará — Donne —, o clérigo achado na casa suspeita da poesia, deitado com a luz toscana, pensando em Deus e trepando com a moça de mãos adocicadas do leite acabado de ordenhar. (A quem interessar possa: a última camponesa de lenço era uma puta vocacional pelo menos limpa de doenças, uma estudante nelore de direita, especialista em chupadas.)
Esta elegia é tardia, e se passa dentro do vidro de uma recordação que não tem mais importância.
Tudo, aliás, perdeu importância. Não se pode imaginar que a vida pudesse seguir no plácido cenário pintado pelos “anos sem emoção” (os anos dos quais falava o nosso mayor, o Deão da Sorte Americana disfarçado de “velha águia” ferida numa guerra que ainda não terminou).
Principalmente, a poesia perdeu importância. Ela se tornou uma xícara Tudor, no armário de cacos de porcelana ainda com as manchas de batom das damas que acorriam para o terraço de onde se vislumbrava os brilho de serviços de chá de qualidade, irisados na distância como o dobrar da prata na superfície do mar. (Qualquer mar.)
Um bom poema tem que referir um mar: o Egeu, o Mar Vermelho, o Amazonas (que não é um mar), o Mar da Tranqüilidade — na Lua — e o mar da dor do estômago que se dobra diante do corpo de Vanessa agora na morgue, assassinada aos 58 anos de loucuras dignas da Senhora H (que também acaba de morrer com o sol velho da poesia na morada do sangue).
São Paulo, Rio, Londres — os velhos tickets de embarque que ela guardou, de quando era amante de John Osborne (o jovem irado que o tempo suavizou), entre distâncias de árvore para árvore, no clima de Blow–up, e sendo de boa educação nunca perguntar sobre a esperança dos jovens-sem-esperança, os “Cordeiros de Liverpool”, o lenço de sangue confundido com ketchup na foto do parque onde resta Terence Stamp — envelhecido demais para os primeiros planos.
Foi quando escrevi os versos de que E.P gostou:
“É a hora do Peixe
e do pescador sem rede,
triste, doce como um rapaz
magoado num inverno,
suave e perigoso
como ele, e mortal
— mortal como quando aspira
a um mundo que tivesse
a difícil pureza
do seu desepero.”
Por que todos estão voltando da festa de copos partidos, as finas lâminas dos cacos metidas na carne da mãos magras e secas de sangrar?
Os pulsos quebrados do Cristo, a massa sanguinolenta do corpo feito rolar em Hóstia, na praia da morte de madrugada, entre os subproletários urbanamente selvagens das cercanias da Roma de PPP (o puta profeta Pier Paolo Pasolini).
Falta aí o trecho italiano, o coral perto da fonte de pombos, com Julie Christie segurando o colar de pérolas acima do colo iluminado quando o vento faz o chapéu branco voar para a água do Tirreno (cujo azul virava um cinza misterioso, nas fotos preto-e-branco bem reveladas). Aquele vôo partia com a bruma e nos fazia mergulhar, duas horas depois, na luz meridiana desde a chegada a Fiumicino, entre os respingos da fonte e, mais tarde, o cheiro da pedra debaixo dos pinheiros etruscos do filme que estavam começando a rodar: Maciste-Qualquer-Coisa contra os Filisteus que assassinaram o mundo e devem ter feito precipitar a sombra da morte sobre o coração ainda irado do dramaturgo que iria envelhecer o bastante para ver toda a raiva da juventude se apagar como a dormida brasa da oferenda a deuses impuros.
Fiquei algum tempo sem saber que Osborne havia morrido — e recebido as homenagens de praxe, pranteado por amigos de bochechas róseas no frio de Londres que levava a falar na “canção do tordo” e outras imagens desgastadas. E a notícia da morte de Hilda me pegou muito longe, ali no sertão onde a paisagem já não faz recordar um filme de Glauber Rocha (antes, pelo contrário, faz pensar nas pequenas bobagens do proto-fascismo de Ariano Suassuna), agora que a falsidade central obscurece todas as cartas jogadas a fim de trazer uma estatueta folheada pela Miramax para o Brasil.
(*) Esta elegia foi escrita na noite do dia 29 último (noite/madrugada de “Oscar”), menos em homenagem a uma certa concepção do cinema — hoje morta — do que em memória, estranhamente, de Hilda Hilst e John Osborne, o “jovem irado” que sacudiu o teatro inglês com Look Back in Anger. Se ninguém mais se lembra da peça renovadora e do filme do final dos anos 50, devo informar que Osborne foi uma das influências vindas do teatro para arejar também o cinema britânico, logo sacudido pelo movimento do Free Cinema de Tony Richardson, Richard Lester, Lindsay Anderson e Joseph Losey (com quem colaboraram ora Osborne, ora Harold Pinter), naqueles anos que iriam mudar — em qualquer coisa essencial — não só a Londres pré-Beatles… para sempre deslocada de lugar enquanto a maioria da juventude “não-irada” olhava para fora daquela cortina de Guerra Fria e chuva (FM).