Sacerdote que abandonou a vida eclesiástica para ingressar no jornalismo e na carreira consular, o mineiro Antônio Torres partilha com seu conterrâneo Joaquim Felício dos Santos e o maranhense João Francisco Lisboa a sorte do esquecimento, prêmio que o Brasil concede a alguns de seus melhores escritores.
Ao destino de Antônio Torres, contudo, temos de acrescentar um quê de estranhamento, pois foi autor prestigiadíssimo, principalmente no período de 1910 a 1930. Seu livro As razões da Inconfidência, por exemplo, lançado em 1925, teve a primeira edição, de três mil exemplares, esgotada em quinze dias. Publicada a segunda edição um mês depois, em maio, esta também se esgota — e uma terceira, com acréscimos, surge em julho. São números impressionantes ainda hoje, quando raramente um escritor nacional vende mais que dois milheiros.
O estudioso ranzinza dirá que tal sucesso se devia ao gênero aparentemente fácil em que Torres se especializou, a crônica, aos temas debatidos no calor da hora e ao estilo insolente, sardônico, destemido. Mas veremos que nosso autor é muito mais.
Antônio Torres se orgulhava de sua independência — e se colocava em frontal oposição a João do Rio, sempre pronto, segundo Ledo Ivo, a cortejar “desembaraçadamente os comendadores portugueses que costumavam abastecer-lhe os bolsos furados de dissipador incorrigível”. Não por outro motivo, Torres o considerava “uma das criaturas mais vis, um dos caracteres mais baixos, uma das larvas mais nojentas” do jornalismo carioca. E, com justificado orgulho, inclui a si mesmo, na nota que escreve à segunda edição de As razões da Inconfidência, em seleto grupo:
[…] Nós outros que não nascemos para viver a espojar-nos aí por estes cisqueiros em que tão felizes se acham os galináceos mansos, para os quais o supremo surto do voo não passa da altura de um poleiro; e será a suprema honra do seu destino – o ferver algum dia na panela dalgum rico, ricaço, ou simples caloteiro com fumaças de nababo.
Clareza e humor
Na contramão da eloquência nacional, Torres repete nos textos o rigor que pauta sua conduta. Em Da correspondência de João Epíscopo (1917), não basta mostrar a teimosia com que Antônio Austregésilo Rodrigues de Lima, neurologista escolhido para a Academia Brasileira de Letras em 1914, abusa do chavão “de oradores de comícios, chapa retórica inteiramente gasta”, mas é preciso tripudiar, de forma didática, sobre o “venturoso clínico”:
[…] A sua frase vai, volta, sobe, desce, anda, desanda, empaca, corre um centímetro, enguiça logo depois, resvala para a direita, escorrega para a esquerda, range nas engrenagens, emperra, torna a mover-se, embaraça-se imediatamente, faz novo e último esforço para voar e vai engastalhar-se definitivamente no beco sem saída de um ponto final. Aí o motor de V. Exa. dá uma descarga; o aparelho começa então a funcionar, trepidando; a frase volta ao ponto de partida; tenta tomar nova direção; anda um instante, vibra e paf! novo empacamento! V. Exa. força a manícula; abre a caixa de gases; a frase sai zimbrando (como diria o Sr. Coelho Neto), às curvetas e ziguezagues, em linhas quebradas e sinuosas, e, cansada, arquejante, impotente, despedaça-se no ímpeto de uma derrapagem. Trilam apitos; corre gente, acode a polícia, grita a multidão: Não pode! Não pode! Prende! Lincha! Nisto se ouve tilintar aflitamente a campainha e é a Assistência que chega para socorrer o leitor desfalecido!
Um estilo assim, despojado de rodeios e pleno de humor, só poderia alcançar sucesso. Justo sucesso.
Sua ironia sobranceia a crônica A Academia em sessão, no livro Verdades indiscretas (1920), na qual celebra o caráter enciclopédico, infrutífero e inofensivo da Academia Brasileira de Letras, pois “da única sessão em que os acadêmicos se reuniram para resolver coisas, saiu um monstro: a reforma ortográfica”. Faz tempo, portanto, que as sumidades nacionais não conseguem refrear seus ímpetos reformativos e populistas, como Torres explica:
A pretexto de facilitar o ensino da escrita, nivelou a Academia os intelectuais e os vendeiros. Que nos importa a nós, senhores, que o vendeiro ali da esquina escreva cachorro com x? Devemos acompanhá-lo? Não. Deixemos-lhe a inteira responsabilidade da sua grafia lusitana…
A Academia pensa de modo contrário. Uma vez que o vendeiro ache dificuldade no emprego do ph, o que os intelectuais devem fazer não é disseminar a instrução a fim de instruir o vendeiro mas, sim, desaprender a sua ortografia e escrever com ele! Chama-se isto — simplificação ortográfica.
Destituído de pretensões socializantes e demagógicas, Torres se deleitaria com a medalha Machado de Assis que a Academia Brasileira de Letras concedeu a Ronaldinho Gaúcho e Vanderlei Luxemburgo em 2011 — e certamente perguntaria por que a instituição não substitui o fardão bordado com fios de ouro por camisetas, calções e chuteiras. Antecipando-se ao esquete, no início do século 20 ele suplicava, inutilmente, aos acadêmicos: “Fique quieta a Academia. Nada de estroinices, nada de brincadeiras inconvenientes […]”.
Em Prós e contras, de 1921, sua Crônica culinária, provocação bem-humorada ao senador Francisco Sales, é aula de política e gastronomia, práticas, bem sabemos, inseparáveis. Torres assegura que o cardápio proposto consegue converter possíveis adversários até mesmo aos paradoxos do anfitrião. Mas o que surge a cada linha é a descrição límpida, visual, econômica:
[…] Assim, pois, abatido pela manhã o porco, um grande porco de toucinho de palmo, retira-se-lhe o lombo, puro, sem nenhuma gordura. Deita-se esse lombo em água limpa, que se renovará a quando e quando, até que não haja nele vestígio de sangue. Faz-se uma salmoura de vinagre, cebola, sal, folhas de louro, pimenta e alho, tudo bem moído e misturado num almofariz. Despeja-se essa salmoura numa vasilha conveniente, na qual, em seguida, se coloca o lombo; toma-se um furador com a mão esquerda; com a direita, empunha-se heroicamente uma colher; e, à proporção que a esquerda vai furando o lombo a esmo, a direita, com a colher, vai-lhe derramando molho por cima, tendo-se o cuidado de repetir essa operação em cada uma das faces dele. […]
Resta ao conviva, antes de comer o lombo, “farejar o ambiente em torno, recolher-se alguns momentos dentro de si mesmo, agradecer a seu deus, seja qual for, o dom da vida do porco e meditar sobre a alegria de viver…”. Guimarães Rosa — em carta ao diplomata Raul de Sá Barbosa, que organizou e prefaciou ótima antologia de Antônio Torres, publicada pela Topbooks — estava certo: o cronista não tinha apenas “verve, muita cultura e uma coragem danada”, mas também “pena e estilo sem ferrugem”.
Portugueses
Entre os inimigos de Antônio Torres está Portugal, que ele chamava, carinhosamente, de “carro fúnebre de 3ª classe”, acusando o país de ser a “única colônia inglesa que não tem moral nenhuma”. Seu ódio nascia dos crimes que a metrópole cometera no Brasil e do controle, verdadeira censura, que alguns portugueses milionários exerciam sobre a imprensa.
As razões da Inconfidência é a melhor reunião de suas críticas implacáveis — livro que, segundo Torres, tem “a vantagem de não ter sido descoberto por nenhum português”. A cada página, encontramos o desprezo pelo perigo de assumir uma posição pública ferina; passado quase um século, quando o jornalismo se transformou, em nosso país, num coro de felizes anuentes — com algumas honrosas exceções —, seus textos audaciosos produzem efeito medicinal.
É claro que ele exagera — e qualquer leitor de mediano bom senso não se sentirá obrigado a concordar plenamente com Antônio Torres. Mas não podemos esquecer que, ao atingir o colonizador, ele pretendia também denunciar aspectos do caráter brasileiro, como o provincianismo e o “horror à responsabilidade”. De qualquer forma, não importa se os comentários expressam apenas excessiva indignação, pois o estilo envolve, persuade.
Assim, na crônica Os portugueses julgados por outrem e por eles mesmos, lista as críticas que mais aprecia: “de todas as nações da Europa, […] é Portugal a que, na época do descobrimento e da colonização do Brasil, menos tocada havia sido da civilização moderna” (Louis Agassiz); “o povo mais rústico da Europa” (Camilo Castelo Branco); Richard Burton, depois de visitar o Brasil, escreve sobre “a sujeira da civilização portuguesa, que polui os seus (isto é, os nossos) rios cor de prata e conspurca até a pureza das nossas florestas virgens”; para o escritor Fialho de Almeida, “excetuando talvez um terço de Lisboa, e um quinto ou sexto de Coimbra e Porto, o resto do país vive na coação da força retrógrada, emparedado em imundícies de gueto”; e, dentre outros exemplos, inclusive um trecho do Canto V dos Lusíadas, salienta o texto do anúncio publicado em Buenos Aires, no qual certa companhia de navegação esclarece, com orgulho, que seus navios, rumo à Europa, não paravam em portos brasileiros, deixando os clientes “livres do incômodo de viajar com portugueses embarcados em Santos, Rio de Janeiro, Bahia e Recife”.
Uma simples dotação orçamentária — a contribuição do governo brasileiro à Cátedra Luís Vaz de Camões no King’s College de Londres — serve para Torres destilar sua ira. Inclemente, trata a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, realizada pelos lusitanos Sacadura Cabral e Gago Coutinho (que Torres chama de “Coutinho Gago”) como uma “viagem de cágados”. Na crônica O capítulo Sacadura”, análise cáustica da retórica portuguesa, ele comenta:
Antes de Sacadura e Gago virem ao Brasil, o Atlântico já tinha sido atravessado em verdadeiros raids de Londres a Nova York, e vice-versa, por aviadores britânicos e norte-americanos, em percursos de poucas horas. Se havia, pois, algum problema para resolver nesse sentido, já o haviam conseguido fazer os homens de língua inglesa. Mas os portugueses acharam ser necessário arrombar a porta aberta. Pelo que, saíram os dois lusíadas de Lisboa a 31 de março de 1922 e — coisa extraordinária! — chegaram ao Rio a 17 de junho do mesmo ano, depois de arrebentarem duas ou três máquinas! Conseguiram com essa proeza homérica demonstrar, à luz mais pura da alta matemática, que um aeroplano pilotado por aviadores portugueses leva para vir de Lisboa ao Rio tanto tempo como uma baleeira, guiada por pescadores escandinavos, para viajar de Gotemburgo à Terra do Fogo. Realmente, um grande progresso na arena científica.
Um mestre da zombaria, é inegável, apreciador da “frase limpa, enxuta, que o resguardava do ritmo oratório”, como bem sintetizou Gilberto Freyre (citado por Raul de Sá Barbosa).
Amor
O centro de As razões da Inconfidência é a palestra que Torres proferiu na Associação dos Empregados do Comércio, em 21 de abril de 1925, verdadeiro anátema contra os portugueses. Ali encontramos, segundo a definição de Amadeu Amaral Júnior, o “panfletário devastador”. Nada escapa à sua ira: dos impostos acachapantes que a metrópole cobrava — e que hoje pagamos a nosso próprio governo — à monstruosa condenação de Tiradentes. Peça de retórica, sim, mas cuja sobriedade empolga: ele despreza a verborragia e concretiza o fragmento de Arquíloco: “Tenho uma grande arte:/ firo duramente/ aqueles que me ferem”.
Se é verdade que o furor justiceiro de Antônio Torres contra Portugal não tem mais lugar no Brasil contemporâneo, também é certo que suas lições de história precisam ser continuamente lembradas e seu estilo — coeso, congruente, desenvolto — merece o qualificativo “modelar”.
Raul de Sá Barbosa conta que, no início da carreira jornalística, período de insegurança e pobreza, Torres chegava a dormir “nas redações em que escrevia, embrulhado, às vezes, se fazia frio, na bandeira nacional”. Talvez tenha se aprofundado aí, mais que a aversão aos colonizadores, o seu indiscutível amor pela língua portuguesa.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Gastão Cruls e A Amazônia misteriosa.