Ode ao indivíduo

Antonio Fernando Borges homenageia Machado de Assis em romance criativo e várias leituras possíveis
Fernando Borges discute a importância do indivíduo
01/11/2002

Havia muito tempo eu não lia um livro como Braz, Quincas & Cia., de Antonio Fernando Borges. Escolhi-o para escrever neste Rascunho por pura intuição. Pensei cá com meus botões que, um livro com um título destes, não poderia ser de todo ruim. E quem acompanha meus textos neste periódico bem sabe o quanto tenho lido coisas por mim consideradas ruins. Um título?, você diz. O cara escolheu o livro por um mero título? Nem tanto. Confesso que, desde que li as inúmeras resenhas elogiosas de Que fim levou Brodie?, fiquei interessado na obra do autor estreante. Ainda que isso soe muito esotérico, tenho de confessar que Algo me dizia que estava diante de um grande autor.

Um grande autor, sem dúvida, foi o que encontrei em Braz, Quincas & Cia. — ainda que um autor para leitores bastante diversos. Qual não foi minha surpresa ao ler os primeiros textos sobre o livro de Borges. Todos eles se detinham somente na suposta “homenagem” a Machado de Assis. E nisso pautavam seus elogios. Ao que parece, o bom leitor preferiu somente passar os olhos pelas folhas do romance, admirando a paisagem, mas não reparando na riqueza de seu subsolo.

Claro que há muitos modos de se ler um livro, e seria muita pretensão minha dizer que este ou aquele modo é o correto. O que é inadmissível, contudo, é a omissão da grande questão levantada por Borges em seu livro, ou seja, a permanência, a sobrevivência do indivíduo em detrimento do coletivo.

Para tanto, Antonio Fernando Borges conta uma historinha bastante instigante. Um escritor já velho e um tanto quanto decadente recebe de um velho arrogante uma incumbência: verificar se o livro Os Perigos do Individualismo: Um Tratado, de J. Deus & Silva, é verdadeiro. Ele tem uns poucos dias para se decidir se aceita ou não o trabalho, ao fim dos quais procura o empregador e descobre que ele simplesmente não existe. Dá-se início, então, a uma investigação que vai levá-lo a descobrir uma espécie de complô iniciado por seu avô suicida, no início do século 20. É interessante que este avô do personagem seja irmão de um tal Tio Maria, que ao leitor mais ou menos esclarecido fica patente tratar-se de ninguém menos que Machado de Assis, considerado por muitos o maior escritor brasileiro de todos os tempos.

O livro, em sua forma, lembra razoavelmente a obra-prima machadiana, Memórias póstumas de Brás Cubas. Até porque o personagem, nas primeiras páginas, nos dá uma pista falsa: ele está morto, tal qual o protagonista de Machado. A morte daquele, contudo, é bastante palatável, porque física mesmo; a morte deste, no entanto, é uma pequena alegoria da situação do homem na sociedade contemporânea.

Interessante perceber como Borges é capaz de recriar o estilo machadiano com perfeição. Prevalecem no romance os períodos curtos, marcados por aguda ironia. Também fica evidente certa paráfrase à prosa machadiana nos capítulos curtos e nas constantes conversas do narrador com quem o lê.

E é aqui que terminam as ditas e reditas homenagens a Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho. Antonio Fernando Borges não faz um rapapé simplório; prefere, por outra, utilizar-se dos elementos consagrados por Machado de Assis para contar ele próprio uma história de nossa precária sociedade, que insiste em reduzir o homem a grupos.

Digo, por isso, que Braz, Quincas & Cia. é uma ode ao indivíduo. É uma verdadeira homenagem a uns poucos homens, velhos ou jovens, que fazem questão de se manter alheios ao bombardeamento de informações que, em vez de criarem cidadão cujas diferenças sejam salientadas, acabam por aniquilá-las e transformar todos os homens em meros “seres gregários”.

Além disso, Borges faz um elogio, talvez anacrônico, à maturidade e à velhice sadia. Nada de personagens que esbanjam vitalidade e testosterona por seus poros juvenis; apenas a sabedoria dos homens maduros, que fazem questão de salientar suas peculiaridades.

Esta filosofia de reconstrução do indivíduo em detrimento do coletivo nos liga, diretamente, a uma das figuras mais polêmicas e atualmente mais odiadas deste País: Olavo de Carvalho. Em entrevista ao Rascunho (e confirmando as “suspeitas iniciais”), Antonio Fernando Borges assumiu que conhece a filosofia de Olavo de Carvalho, mas faz a ressalva de ter escrito este livro muito antes de conhecer a obra do filósofo.

Por que fazer um livro que é uma ode ao indivíduo?, pode perguntar o leitor mais ingênuo. Afinal, reza o lugar-comum que vivemos numa sociedade cada mais “individualista”, não é mesmo? É justamente para desmascarar esta falsíssima afirmação que se lê prazerosamente Braz, Quincas & Cia. porque, ao contrário do que diz o senso comum, é evidente que vivemos sob a ditadura reducionista que elege como estrutura básica da sociedade não o singular, e sim o plural.

O leitor deve estar acostumado a ver o nome de uma personalidade qualquer citado num jornal ou numa revista, seguido de inúmeros apostos que o localiza em grupos. Fulano de tal é gay, evangélico, marxista; já Sicrano é heterossexual, católico e fascista. Reduz-se, pois, o homem, a um punhado de idéias genéricas, sem levar em conta características que diferenciam, por exemplo, este que vos escreve de seu editor. Apesar de homens, de críticos, de curitibanos, enfim, de uma série de características que nos igualam, tampouco somos iguais, sequer concordamos quanto à pauta deste periódico, para se ter uma idéia. Logo, apesar das semelhanças inúmeras, somos, em essência, indivíduos providos de idéias completamente diversas, que nos fazem únicos.

Neste universo agregador, de homens reduzidos a meros particantes de grupos os mais homogêneos possíveis, os jovens, obviamente, são protagonistas. Nada pior do que jovens em bandos. São completamente desprovidos de individualidade. São meras partes de um todo que adquire uma personalidade coletiva. “E, quanto mais juvenil, mais horrivelmente gregário e coletivo é o ser humano”, escreve Borges.

Interessante é uma passagem em que o protagonista, numa confeitaria tradicional do Rio de Janeiro, supostamente freqüentada, no passado, pelo Tio Maria, tem seu lanche atrapalhado por uma destas hordas de jovens que entram abruptamente num local qualquer, falando alto, fazendo algazarra, impondo sua existência nada individual. Ele está lá, sentado calmamente, quando se sente, claro, incomodado com aquele barulho. Afinal, como qualquer pessoa de bom senso, quer é sossego em suas refeições, ainda mais num lugar que se pretende a tradicional como aquela centenária confeitaria. Por isso, como uma pessoa sensata, reclama ao garçom que, faz as vezes de mensageiro e vai passar o recado repressor aos jovens. Os moleques, contudo, como são maioria, ordenam ao garçom que aquele velho se retire. No que são prontamente atendidos.

Esta cena peculiar mostra muito bem outro ponto de contestação em Braz, Quincas & Cia.: a ditadura da maioria. No Brasil, por uma destas distorções inexplicáveis, democracia passou a ser o governo da maioria, e não o governo do povo. Assim, uma parcela da população, 50% ou mais segundo a lei eleitoral, manda nos desígnios dos demais, sem consulta de quaisquer tipos. São grupos se sobrepondo a grupos que, por sua vez, se sobrepõe de forma tirânica a indivíduos, reduzindo-os a um absoluto e passivo silêncio.

Uma obra que possa ser considerada prima, apesar de o termo estar mais do que desgastado, chama a atenção de leitores cuidadosos pelos detalhes. São estes detalhes, aliás, que podem decidir se um livro é de fato bom ou apenas mais um embuste editorial. E Braz, Quincas & Cia. dá ao leitor atento uma verdadeira fartura de detalhes que, ora nos remetem à prosa machadiana, ora apenas salientam o aspecto meticuloso do livro. No primeiro caso, temos o simples artifício de, tal qual Machado de Assis, não se fazer menção explícita a logradouros. Usa-se, para tanto, um recurso bastante comum ao realismo do oitocentos; os asteriscos. O bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro, torna-se G***; a confeitaria Colombo torna-se C***. É um adendo a mais para se saborear este romance.

No nome dos personagens também é que se revela a genialidade do autor. O exemplo mais crasso disso é o nome do autor do suposto panfleto literário Os Perigos do individualismo: Um Tratado. O sobrenome do autor é Deus & Silva, assim mesmo, com “e” comercial. Há duas leituras possíveis — e as duas interessantes — para este sobrenome. A primeira pode sugerir um antagonismo entre as palavras Deus, ou seja, o Uno, o Indivisível e Supremo, e Silva, o mais comuns e coletivo dos nomes brasileiros. Outra leitura pode sugerir que, alguém que escreva um tratado exaltando a coletividade, pense no nome Silva, expoente do anonimato, como um deus. Daí o tal Deus Silva.

Estas são pequenas peças que se encaixam para formar um livro conciso, de frases para lá de bem cuidadas, de um conteúdo muito mais profundo do que a simples homenagem a Machado de Assis, como apontada por alguns. Um livro que, definitivamente, põe Antonio Fernando Borges, autor do também ótimo Que fim levou Brodie?, livro de estréia ganhador do Prêmio Nestlé (se bem que isso não significa lá grandes coisas…) na galeria dos grandes prosadores brasileiros com alguma coisa de útil para falar em seus romances. Casos cada vez mais raros.

Crônica de uma simples entrevista
Ligo para Antonio Fernando Borges assim que termino de ler Braz, Quincas & Cia. Confesso que ainda estou sob o impacto de uma prosa tão inteligente e animadora. Afinal, são meses e meses lendo livros que não passam de títulos a mais na obra de autores que parecem ter esgotado o que dizer. Ele atende apressado. Apresento-me e ele pede um minutinho para fechar a porta. Fala naquele sotaque carioca bem conhecido e é verborrágico e nada escorregadio em suas respostas. Se bem que, à primeira pergunta, reluta em aceitar a definição do entrevistador, louco, como todo entrevistador, por simplificar um livro. Pergunto, pois, a ele se Braz, Quincas & Cia. pode ser lido como uma ode ao indivíduo, se ele acha esta leitura possível. Sim, possível, porque não há leitura correta para um romance. Ele hesita, à primeira pergunta. Por certo sabe que esta coisa de indivíduo não é lá muito aceita em uma sociedade essencialmente coletiva como a nossa. Ronda o termo “indivíduo”, dá voltas e por fim conclui que, antes de ser uma ode ao indivíduo, o livro é uma crítica à sociedade massificadora em que vivemos, com sua apologia à juventude e a grupos. Como eu suspeitava.

Não quero parecer animoso, por isso vou logo dizendo que conheço a filosofia de Olavo de Carvalho. Antes, uma pesquisa me dá subsídios suficientes para saber que Antonio Fernando Borges conhece a filosofia daquele que exalta o indivíduo. O escritor, aliás, já escreveu artigos para um jornal eletrônico chamado O Indivíduo, dedicado a discussões contra a mesmice da correção política que impera na coletividade. À menção do nome de Olavo, percebo que Borges sente algum receio. Afinal, o filósofo não dispõe de muitos admiradores, ainda mais entre jornalistas. Aviso o entrevistado, contudo, que conheço a obra de Olavo e que até simpatizo com ela. O gelo é completamente quebrado e Borges assume que, sim, conhece e admira a obra de Olavo, mas que suas idéias sobre a individualidade antecedem o contato com o filósofo. Portanto, nem pensem em considerar Borges como um “discípulo” de Olavo de Carvalho, como se costuma dizer por aí.

Nada modesto, Borges sabe que seu livro tem qualidades inerentes. Por isso assume que teve um cuidado especial para reproduzir certo ritmo machadiano, assim como as constantes conversas com o leitor. Ah, que bom, finalmente um escritor que não reduz o próprio talento a evasivas que apenas mascaram a grandeza do ego.

Pergunto, ainda, sobre o reducionismo do livro a uma homenagem a Machado de Assis, ao que ele responde com certo risco, dizendo saber que essa é uma possibilidade, diante do quadro um tanto quanto dramático da crítica brasileira. O livro não é só uma homenagem a Machado de Assis, não é mesmo? De modo algum. O livro é, ainda uma crítica ao culto à juventude. Sobre isso, Borges diz que realmente vivemos numa sociedade pautada pelo elogio do jovem, este ser nada pensante, este ser que resume sua existência a adequar-se ao grupo.

A impressão, ao desligar o telefone, é ótima. Finalmente um escritor despretensioso, cujo desdenho para si mesmo advém de seu inegável e conhecido talento. Tomara que a impressão perdure.

Braz, Quincas & Cia.
Antonio Fernando Borges
Companhia das Letras
171 págs.
Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho